Capítulos 17 e 18

17 - O bolinho do Merecimento


A sirene soou, sinalizando o recreio de quinze minutos, e eu fiquei oscilando entre a tristeza e a ansiedade de que Eduardo fosse se materializar como que por encanto.

De repente, quando minhas esperanças estavam quase mortas e destroçadas, ele surgiu. Lindo como sempre. Mas estava com o rosto machucado e parecia muito triste. Ele deve ter participado de outra luta clandestina. Será que estava muito ferido, além do rosto? Eu lutei contra a vontade de correr para ele e perguntar como estava se sentindo.

Ele não veio até mim imediatamente. Parou no meio do caminho, quando um garoto pentelho teve que se colocar entre nós. Os dois conversaram.

Milton era o nome do garoto, o único com quem ele batia papo, de vez em quando, além de mim. Eu não gostava do Milton porque ele só tinha olhos para o Eduardo e me ignorava ostensivamente. Como se eu fosse nada. Não que isso me importasse, mas já que ele estava vendo que eu e Eduardo éramos amigos, ele podia ter um pouquinho mais de consideração.

Minha irmã diria: É querer demais, né, Sandra? Garotos como o Milton são subservientes com garotas peitudas e montadas. Ou com garotos populares, já que ele podia sugar um pouco da popularidade do cara. Claro que o Edu sacava todo mundo. Ele apenas tolerava o garoto inoportuno.

Observei o seu rosto, enquanto a conversa se estendia. E eu ansiosa pra falar com ele. Era o meu último dia! Cai fora, Miltooonnnn!!!!

Eduardo demonstrava uma tranquilidade que estava longe de sentir. De repente, seus olhos me encontraram e se prenderam aos meus. Então, seu rosto se iluminou e ele sorriu. Eu me derreti toda (por dentro, é claro, já que eu tenho uma reputação de durona a zelar).

Eduardo se despediu do Milton e veio falar comigo.

-E aí? - disse ele, a título de cumprimento; ato contínuo, sentou-se ao meu lado.

Inspirei profundamente para tentar esconder e acalmar o coração acelerado.

-Pensei que você não viria mais hoje - comentei, com uma indiferença que estava longe de sentir.

Ele meneou a cabeça, daquele jeito preguiçoso que me deixava de pernas bambas.

- Eu não poderia faltar, depois de todo o trabalho que você teve em me ajudar com... - e apontou para a pasta azul que trazia sob o braço - este trabalho. Hoje é o último dia para entregar.

-Sim, é o último dia... - eu disse, com tristeza, e não estava me referindo ao trabalho.

Ele me olhou mais atentamente. Eu baixei a cabeça, e continuei: - Tirando o trocadilho e a tentativa de bancar o engraçadinho... É sério, estou muito orgulhosa do seu esforço.

Ele ficou sem jeito. Eu era a única que conseguia tirá-lo daquela pose de tranquilidade suprema. Ganhando tempo, Eduardo coçou a cabeça.

-Ora... Obrigado! - ele então voltou a me analisar. - Você tá estranha. Aconteceu alguma coisa?

Nossa, direto ao ponto.

-Deixe-me ver a capa que você bolou no canvas?

Ele hesitou um instante, franziu o cenho e me passou a pasta. O trabalho de astronomia ficou impecável, com as estrelas de nossa galáxia cuidadosamente classificadas por seus tipos identificados, e um breve ensaio comparativo entre a Via Láctea e Andrômeda. E a capa era como um retrato em três D de tudo isso, com letras claras para fazer contraste com a escuridão do espaço.

Eu disfarcei a emoção e o orgulho que sentia por ele; apenas acenei com a cabeça, coloquei o trabalho de volta na pasta e devolvi a ele.

Eduardo ergueu a mão lentamente, encarando-me de um jeito entre divertido e preocupado. Nossos dedos se tocaram e eu tive um sobressalto.

Toda aquela emoção me fez lembrar do presente que fiz para ele, ontem a noite. Um passatempo que me era caro e especial. Eu não fazia meus bolinhos para qualquer um. Só cinco pessoas nesta vida ganharam um de meus bolinhos. Minha mãe, meu pai, minha professora na quinta série, Philos (do qual me arrependi profundamente mais tarde), Bruno e agora... Eduardo. O sexto ser humano a provar o meu bolinho. E a resposta é não. Manuela jamais comeria um dos meus bolinhos, ainda mais que ela desdenhava deles.

Tirei a embalagem da mochila e estendi, sem conseguir falar nada.

-O que é? - o sorriso dele se ampliou. Seus olhos revelavam curiosidade e confusão a um só tempo.

Pigarrei, forçando as palavras a saírem.

-Eu fiz pra você - disse, para seu total espanto.

Eduardo sabia que eu não era dada a demonstrações de afeto, e estranhou. Com razão. Mas, como eu estava indo embora, não era hora para timidez nem economia de sentimentos, muito menos pisar em ovos, como dizia a minha irmã. Do contrário, eu acabaria me arrependendo do que não tive coragem de fazer.

Ele abriu a embalagem com cuidado, farejou o bolo de nozes com recheio cremoso de brigadeiro e deu uma mordida. Fechou os olhos e suspirou.

- Meu Deus, cara, que delícia! - engoliu e disse: - O que eu fiz para merecer um presente tão gostoso! - antes que eu respondesse, ele apontou a mão que segurava o bolinho e acrescentou, em tom de acusação: - E aliás, eu não sabia que você tinha essa habilidade.

-É um presente de despedida - encolhi os ombros e baixei os olhos para a prega da minha saia preta. Não tive coragem de encará-lo, naquele momento.

Pela visão periférica, notei que Edu ficou paralisado, meio que me olhando fixo. - Como é que é? Que história doida é essa?

O tom de revolta na voz dele foi como um bálsamo. Teria acabado comigo se tivesse dito algo do tipo: "Ah, puxa, que maus! A gente se vê por aí!"

Com um suspiro trêmulo, comecei a explicar:

-Minha mãe decidiu que a gente vai voltar para São Longino do Sul, e eu não tive direito a voto. Hoje é meu último dia na escola.

-E você só fala isso agora?

-Eu só fiquei sabendo ontem - rebati.

-Mas... - ele não concluiu, deixando o bolinho ao lado, no banco. - Você não pode ir! Não pode! Eu...

Ele se calou, deixando-me em suspenso, com aquele começo de frase inacabada.

-Eu...? - provoquei, pois queria um desfecho.

-Eu... - repetiu ele, penteando o cabelo rebelde com os dedos. - Vou sentir muita a sua falta.

Fiquei um pouquinho decepcionada, porque esperava que ele fosse se declarar, coisa e tal... Idiotice minha sonhar com uma coisa dessas. Cai na real, Sandra!

Ainda bem que a Manu não veio pra escola. Assim, não poderia ver a minha cara de tacho, nem debochar de mim.

-Também vou sentir sua falta - respondi, contida. - Por isso, fiz o bolinho.

Ele lançou um olhar para o bolinho, que já não lhe parecia tão apetitoso. Isso me ofendeu e magoou. Achei que ele não gostou do que o bolinho simbolizava.

O sinal soou e eu me levantei. Ele me imitou. Num impulso, agarrei sua mão e disse: - Independente do que aconteça daqui para frente, promete para mim que não vai mais lutar!

Ele me olhou, segurando a minha mão entre as suas. - Acho justo que você saiba, pois foi quem me deu a maior força e me fez ver as coisas de um jeito diferente... - Ele engoliu em seco e eu achei que minhas pernas tinham virado geleia. Ele levantou a cabeça bruscamente e continuou: - Você sabe, eu só lutava para pagar as dívidas do meu irmão, ou iriam matá-lo. Ontem eu ganhei o o último campeonato. Não haverá mais lutas clandestinas para mim. A partir de agora o Gil vai arcar com as consequências de suas encrencas. Não poderá mais fingir que é o bom filho, enquanto meu pai pensa mal de mim.

-Isso! Ele precisa andar com as próprias pernas - eu o apoiei, com entusiasmo. - Você tem um futuro brilhante pela frente, Eduardo!

Ele ficou vermelho. Sério, muito fofo!
-Você acha? - ele perguntou de um jeito inseguro. Um jeito que ele jamais deixaria outra pessoa ver.

-Claro que sim! Você é inteligente demais para se deixar prejudicar assim! Iria acabar mal, se continuasse tentando livrar o seu irmão das responsabilidades que são dele, não suas.

Ele concordou com um gesto de cabeça. - Você foi a primeira pessoa que acreditou em mim, como pessoa. - Levantou os olhos e me fitou. - Jamais esquecerei isso. Jamais esquecerei você.

A gente seguiu junto para a sala e assim ficamos até o final do período. Ele me acompanhou à secretaria, onde eu deveria pegar os espelhos de transferência. Dona Vânia sorriu para nós e disse que o pedido de São Longino já tinha chegado e vinha acompanhado de - pasmem! - uma lista de materiais e atividades que eu e meus irmãos deveríamos desenvolver para entregar já no primeiro dia de aula.

Que raio de escola era aquela?

Como formulei a pergunta em voz alta, Dona Vânia respondeu:

-Querida, ouvi falar muito da EEB. Geraldine Becker. É uma das melhores do país. Os professores são muito exigentes e quem se forma lá tem um currículo e tanto.

Ao ouvir a palavra currículo, eu me interessei em pesquisar sobre a escola que, segundo Manuela, era o suprassumo da Jaculândia. Eu sorri lentamente. Algo me dizia que ela teria uma grande surpresa com aquele lugar. Pelo menos eu já estava prevenida e iria fazer todas as tarefas que me pedissem para ficar atualizada com o resto da turma.

Enquanto esperávamos Dona Vânia colocar os espelhos dentro dos envelopes com o timbre do IPC... Adivinha quem eu via saindo sorrateiramente da sala da diretora-tarântula, com um sorriso matreiro nos lábios? Ela não me viu, porque a secretaria ficava num corredor transversal; deixando apenas parte da recepção à vista para quem estava do outro lado do balcão.

Fiz menção de chamá-la, mas desisti. Era óbvio que Manuela estava agindo na clandestinidade. Estreitando os olhos, me peguei tentando entender o que minha irmã Barbie estava aprontando...? Ah, mas eu vou descobrir! Ah, se vou!

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Eduardo me acompanhou até o Jardim, onde Bruno estava esperando com sua mochila vermelha às costas, mais abarrotada do que quando ele chegou. Provavelmente, a professora Eunice tinha guardado o seus brinquedos e livrinhos que ficavam na sala.

Bruno se levantou da escada, com uma cara tão triste que partiu o meu coração. Eduardo percebeu o clima, inclinou-se para o menino e perguntou:

-Quer tomar um sorvete?

-SOVETE! - gritou Bruno todo feliz.
Eduardo virou-se para mim, esperando a minha resposta. Ele manipulou a situação para ficarmos mais tempo juntos. Sabia que eu não poderia dizer não, diante da alegria do moleque. Estava óbvio que ele queria ficar mais tempo comigo.

-Claro - respondi, sonhadora, mas num tom que deixava claro que eu era difícil... Muito difícil.

Ele sorriu de orelha a orelha e me estendeu a mão.

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[Manuela]

18 - Viver para contar

Não me percebi tipo pensando, saca? Eu me percebi energizada como uma personagem de histórias em quadrinhos.

Lá estava eu, pé ante pé, segurando firmemente a barra de ferro que segurava a porta do ginásio. O plano se desenhou de forma instintiva, depois que saí da sala da diretora Periguete - com missão impossível cumprida graças a um gostoso e misterioso anjo da guarda... Avistei a barra encostada à parede, assim, dando sopa. Devia servir para manter as lâminas da porta paradas no lugar, tipo, para que não batassem.

Simplesmente passei a mão e me escondi na despensa dos materiais de limpeza, esperando a aula de educação física acabar.

Os garotos deviam estar entrando no vestiário, agora. E minha presa estava entre eles. Pelo menos, foi o que alguém comentou e eu ouvi, quando estava quase deixando o IPC. O desgraçado voltou para as aulas, como se nada tivesse acontecido.

Então, dei meia volta... Sim, eu estava possuída pelo espírito do Steven Seagal, do Chuck Norris, e o mais importante de todos: do Charles Bronson; o dono daquele olhar parado e mortal, num rosto com expressão imutável. Aquela expressão era a minha.

Eu iria vingar a morte de Cam!

Ninguém poderia me deter!

Segurei a barra com mais força. De repente, ocorreu-me que até poderia pegar o cara de surpresa, mas daí, os outros iam cair de pau em cima de mim. E teríamos uma repetição do que aconteceu com Cam.

Não, eu queria VINGANÇA e sair inteira, sem provas contra mim. Livre para viver e contar. E agora, eu era a Paladina da Justiça, não a Paladina da Verdade.

Vasculhei as coisas ao meu redor e achei o isqueiro. O faxineiro fumava, eu sabia. Volte e meia aquele lugar vivia cheio de xepas e fedendo à fumaça. Com o isqueiro na mão, eu localizei o rádio a pilha que ele costumava ouvir, enquanto estava limpando as salas.

Hum... Novo plano. E este era muito simples. Eu não precisava da barra, jogaria o rádio ligado na baia molhada do Marcos... E ele seria eletrocutado. Na hora.

Fulminado! Com um belo permanente nos cabelos para o enterro. Mortinho da silva. Eu iria mandar uma coroa de flores em forma de V, de vagabundo. Escrito no cartão: VA (vagabundo assassino).

Claro que eu não estava pensando direito. Nem nas consequências, nem no certo ou errado, nem na minha família. Eu só estava possuída, entende? Acho que a maioria dos crimes cometidos deve ser desse jeito. Tipo... Dois caras chegam com o carro ao mesmo tempo numa ponte de mão única. Nenhum dos dois quer dar a vez para o outro passar... Um deles é possuído, pega uma arma e dá facada no outro motorista.

O caso foi real, portanto, não fiquem com essa cara.

É que eu simplesmente achava o cúmulo que fosse tão comum um garoto matar alguém do convívio escolar, e depois voltar a frequentar a escola, como se nada tivesse acontecido... A banalização do crime, entende? Só porque o filho da mãe é menor de idade? Tipo: Ops! Matei! Foi mal! Estuprei! Mas foi sem intenção! Roubei, e daí? Eu sou uma "cliancinha", não sei o que faço. Caraca, o Bruno é uma "cliança".

Não esse VS.

Que ideia tosca dizerem por aí que, se o bandido comete um crime aos dezesseis anos e meio, ou dezessete e nove meses, é porque - coitadinho! - ele ainda não sabe o que tá fazendo!?! O pobrezinho ainda está em processo de formação...

E aí, senhoras e senhores, quando ele completa dezoito anos cravados, uma chave de sabedoria gira em sua mente, e ele fica apto a arcar com suas ações e a saber tudo o que deveria saber sobre o convívio em sociedade. Convenhamos! Se não sabe aos 12, aos 15 e aos 17, não será aos 18 que ele aprende por encanto!

Aos 18, ele simplesmente vai repetir tudo o que aprendeu anteriormente, reforçado pela atitude permissiva da sociedade até então - os adultos sempre passando a mão na sua cabeça. Ninguém muda assim, da noite para o dia. Educação não é um processo quantitativo, mas qualitativo e cumulativo.

Ah, mas tadinho, Marcos é menor de idade. Ainda não aprendeu as regras da civilização.

Sei... Bom, eu também sou menor de idade, não sou? Vou usar essa lógica a meu favor. Eu saí da despensa e fui até a porta do vestiário masculino. Podia ouvir as risadas e gritos dos rapazes em meio ao som das duchas poderosas. Eu estava prestes a puxar a trava de segurança, quando o meu braço foi agarrado com força, mas sem machucar. Olhei assustada para aquela mão forte e bronzeada. Levantei os olhos e me deparei com o misterioso gostosão do ônibus que me deu a senha do computador da diretora Periguete.

-Caramba, você tá em toda parte? - perguntei, mais irritada do que assustada.

-Não. - Respondeu ele, sério, embora parecesse estar sorrindo (por dentro, sabe?). Mas sei exatamente aonde você está.

Eu não conseguia ler sua expressão por trás dos óculos Ray-ban. Hum... Ele estava perigosamente sexy.
Gostei do estilo.

-Deixe-me lhe dizer o que vai acontecer, se você entrar neste vestiário. - Ele inalou o ar, como em busca de paciência. - Você vai se atrapalhar com o rádio, que não vai causar o efeito que espera ao cair no chão molhado.

Eu me atrapalhei tentando esconder a barra e o rádio caiu no chão com um estrondo.

Ele fingiu não notar e continuou falando:

- Marcos e os outros caras vão se virar contra você. Você vai tentar aproveitar a surpresa e usar a barra que está segurando - ele olhou para baixo, na direção da minha outra mão, escondida às costas, antes de erguer o queixo e me fitar. - Vai conseguir quebrar a perna de Marcos, mas a satisfação não dura muito, porque eles vão cair de porrada em cima de você. Vão quebrar a sua cara, desfigurá-la, na verdade. Você vai ficar com o maxilar torto para o resto da vida. Também vai ficar paralítica, amargurada, com sequelas e remédios. Está bom pra você?

Eu pisquei, diante de tamanha eloquência.

-Nossa... Claro que não está bem! - disse eu, entendendo que ele estivesse divagando sobre o que poderia me acontecer, e querendo bancar o engraçadinho, no processo. No entanto, ele parecia estar falando muito a sério.

-Claro que... - ele meneou a cabeça, olhando para o alto, como se uma imagem passasse por sua mente. - Se você tropeçar no cadarço, que acontece numa das suas realidades alternativas, você cai de cara no chão, a barra rola para longe. Marcos se vira para você e ri um monte da sua cara. Você se arrasta até a barra e sem imaginar que daria um tiro tão certo, acerta a cara dele, enquanto ele se inclina pra você, fazendo a ponte do nariz dele entrar no cérebro e matá-lo antes que desabe no chão.

-Então, eu tenho alguma chance de meu plano dar certo - abri um sorrisão.

-Sei... - ele murmurou. - Um dos amigos dele vai pegar a barra, e quebrar a sua cara, e você ainda será detida por assassinato de um cara cujo pai é podre de rico. Sua mãe vai ficar na miséria, individada, tentando pagar um advogado decente pra você. Porque mesmo que fique no reformatório, a família vai ser processada no civil. Ela vai dar azar, porque vai pegar um advogado trambiqueiro, que ficará com todo o dinheiro que ela nem possui, mas vai emprestar, e o sujeito não fará força nenhuma para conseguir impedir que sua mãe vá presa por causa disso. Seus dois irmãos serão recolhidos pelo Conselho Tutelar, até que o seu avô seja notificado e vá buscá-los. Depois de alguns anos, sua mãe terá que sobreviver entre bandidas perigosas na prisão feminina. Haverá uma rebelião entre as presas, por causa de uma pandemia de COVID-25, e vai morrer não do vírus, mas de uma bala perdida, antes de fazer 40 anos.

Ele parou de falar.

Eu franzi a testa.

-Cara, você devia ser escritor de novelas. Que imaginação, hein? - Ele entortou o lábio inferior, ligeiramente mais cheio que o superior, dando-lhe um ar de "sensualidade discreta". Era nessas horas que eu curtia os caras mais velhos... Quando me deparava com um tipo assim, meio maluco, misterioso e gostoso. Sacudindo a cabeça, para espantar os pensamentos mais sacanitas, eu acrescentei: - E a propósito, o que é COVID - 25?

-É uma variação de COVID-19.

Eu fiquei na mesma.

- Boiando aqui.

-COVID-19 é um vírus que vai se espalhar muito rápido em 2020, e se tornará uma grave pandemia, nos moldes da gripe espanhola. Ou seja, daqui a exatos dois anos.

-Ahnn - o bonitão era "Maluquinho da Silva Xavier". - Não sei se você percebeu, mas estamos em 2018.

Ele me encarou como se eu fosse sem noção. - E o que foi que eu disse? Daqui a dois anos.

-Mas estamos em 2018! - insisti.

-Estamos, né? - Ele concordou, com um sorriso. - Por isso mesmo, não posso te deixar fazer o que está pensando em fazer. Você tem que seguir o plano, entendeu?

-Que plano, exatamente? - Eu olhei para ele, de boca aberta, então, sacudi a cabeça. - N-n-não precisa me contar, nem quero saber...

-Se você for até lá - ele começou a falar, ignorando o meu protesto - jamais estará apta a ir morar em São Longino. Portanto, não irá encontrar o taquiônio; tudo isso entre nós irá se transformar num paradoxo. E eu não te ajudei para que fizesse besteira justo agora. Você precisa partir e achar o objeto.

Ele segurou minhas mãos entre as suas, fazendo a barra cair e rolar no chão para junto dos seus pés.

-Ahn...

-Não. - Ele insistiu. -Não vou deixar que faça o que pretende, nesse exato instante.

-É... O quê? - comecei a achar que o gostoso estrangeiro não era doido de pedra. Ele devia estar bêbado ou chapado.

-Se quer ajudar sua amiga, deixe-me fazer o que tem que ser feito.

-Como assim, ajudar a minha amiga? Ela tá morta!

Ele concordou com a cabeça. - É, está. Mas você quer justiça, não quer? E quer sua família em segurança. Farei isso por você, mas será do meu jeito. Você tem que confiar em mim.

Então, ele tirou os óculos e eu recebi o impacto daquele olhar azul de piscina em dia de sol... O danado tinha uma cor de olho que convidava as garotas a se inclinarem para admirar.

Mas comigo não, violão!

-Qual o seu nome? - perguntei, na defensiva.

-Steve - ele respondeu, no mesmo tom brusco.

Steven Seagal?

- Steve Nielsen - ele completou.

-Tá... Steve... Nieeeeelsen... Vou te dar um voto de confiança, só Deus sabe por qual razão...

Além do mais, com maluco, a gente não discute, só concorda.

(Eu não ia falar isso pra ele, claro...).

-Ótimo! - ele pareceu bem aliviado, o que era ótimo. - Agora você tem que ir embora e...

-Tenho uma condição - eu o interrompi, levantando o dedo - ... Eu quero ver!

Ele me encarou por um instante, aborrecido. De repente, seu olhar se aqueceu, como se admirasse a minha audácia, por assim dizer.

- Fechado, intrépida pirata.

Hum, acho que eu estava me sentindo mesmo como a Juna.

Steve levantou a mão e tocou a minha testa com o indicador, na maior intimidade. Uma contradição total com sua postura meio... militar.

-Você vai só ver - disse ele, em tom de alerta, olhando no fundo dos meus olhos. - Deixe tudo por minha conta.
-Fechado - eu o imitei, meio indecisa se era a melhor opção deixar tudo por conta dele. Mas era melhor do que ficar paralítica, mamãe virar presidiária, ou morrer de COVID-35...

Credo, a imaginação dele era contagiosa!

O tal Steve virou de costas para mim e abriu a porta do vestiário. Eu o segui.
As costas a minha frente eram largas, de modo que eu não podia ver muita coisa. E pra não ficar secando a bunda dele - bem bonitinha, por sinal -, eu fiz menção de contorná-lo. O esperto me barrou com o braço musculoso. Virou-se rapidamente e me envolveu em seus braços... Foi como ser abraçada por um urso cheirando muito bem. Ele foi me empurrando para o lado e até me prensar com delicadeza entre ele e a parede. Soltou-me devagar e puxou o biombo (que eu nem tinha visto). Devia servir para separar a área do banho da área onde ficavam os armários.

-Você vai permanecer aqui e só vai olhar. - Ele disse, apertando meus braços de leve. - Tá legal?

-Tá legal - respondi, não querendo soar tão trêmula diante daquele peitoral incrível à altura dos meus olhos.

Ele me lançou um último olhar, do tipo desconfiado, e voltou em seus passos para a porta. Ele a travou; então, percebi que o esperto tinha pegado a minha barra de ferro, sem que eu visse. Ele a usou para prender as duas alças da porta. Assim, quem viesse pelo lado de fora, não conseguiria entrar. E quem estava dentro, não conseguiria sair tão rápido, a não ser que removesse a barra.

Ele voltou para o meu lado, baixou os olhos para mim e com uma expressão de advertência, prosseguiu lentamente em direção aos chuveiros.
Caraca, aquilo tudo era surreal!

Fiquei ali, parada, assistindo "de camarote". Ansiosa para ver o que aconteceria a seguir. Um dos garotos percebeu a figura enigmática do americano, parada entre as colunas das baias. E não foi o único. Logo alguns deles estavam encarando o desconhecido.

Alguém disse:

-Tá perdido cara?

-Quem é esse? - um deles sussurrou para o garoto da outra baia.

-Não sei... - o seu interlocutor encolheu os ombros, soltando uma risadinha trêmula. - O mané deve estar perdido, ou procurando alguém.

-Quer alguma coisa, cara? - ele levantou a voz, tentando parecer valente diante dos outros. Mas eu vi o quanto estava assustado.

Steve não respondeu. Olhou baia por baia com a tranquilidade de um tigre caçando. E qualquer um ali deveria ter percebido que ele não só não estava perdido, como era alguém perigoso de se provocar. Dava para ver que era um guerreiro.

Talvez um assassino...

Provavelmente, os dois.

Vai ver era um agente secreto.

Vai ver o nome dele nem era Steve.

Eu localizei Marcos na baia do meio à sua direita, no mesmo instante em que Steve o avistou. Ele se virou e se aproximou.

O assassino de Cam nem reparou na presença de Steve. Foi o alvoroço ao redor e os colegas petrificados ao lado dele, que o alertaram. Ele saiu de baixo do jato de água, com o rosto ainda cheio de espuma e se deparou com Steve parado, avaliando-o em silêncio.

-Acho que agora você terá uma luta justa - disse Steve.

Os demais se recuperaram e tentaram avançar nele, mas o misterioso-gostoso-anjo-da-guarda-de-plantão (Steve Niiiieeeelsen) simplesmente os rechaçou, como quem limpa a caspa do ombro da camiseta.

Não que ele parecesse ser o tipo do cara que tivesse caspa.

Se a analogia não foi clara, eu traduzo: ele derrubou um por um sem esforço. Girou no ar e deu uns chutes - tipo Bruce Lee - que me arrancaram uma risada surpresa. Desculpa, mas eu estava adorando o inesperado desfecho para a minha aventura.
Ele estava lá como uma fada madrinha realizando o meu desejo. Tá, uma fada madrinha misturada com exterminador do futuro. E o mais impressionante é que ele não atacou ninguém. Foram eles que partiram pra cima dele. Os arrogantes... Só porque os papais pagam academia de caratê pra eles.

Enquanto Steve girava e derrubava, eu fiquei observando os bíceps, as coxas e a bunda... O cara era muito bem condicionado fisicamente. Um tesão. (Pausa para secar o gostosão americano).

Tirei o pacote de bolacha recheada da mochila e abri, enquanto os garotos voavam pra todos os lados. Tava chovendo garoto pelado! Bang! Batiam na parede! Bang! Batiam no chão! Os que não voavam, saíam correndo na direção da porta, nus.
Eu quase me senti tentada a tirar a barra presa nas alças, pra ver a cara de todo mundo diante daquela manada de garotos pelados.

Os riquinhos estavam apavorados! De repente, quase me engasguei com a bolacha. Nota mental: não coma bolacha recheada Negresco quando estiver gargalhando. Pode entrar pelo buraco errado.

Um dos pelados histéricos conseguiu tirar a barra das alças e o grupo saiu porta afora, com os documentos balançando ao vento - sim senhor, uma grande manada pelada e escandalosa! O vigia da escola logo estaria ali. Talvez, viesse com a polícia... Olhei na direção de Steve, preocupada. Marcos estava encolhido no canto da baia, apavorado - e protegendo as partes íntimas. Agora éramos só nós três no banheiro, subitamente silencioso, com apenas o som da água escorrendo.

Steve fez o gesto universal - aquele eternizado por Keanu Reeves em Matrix: "Pode vir".

Marcos não foi. Ao contrário, começou a chorar feito um bebê.

-Você não é nada corajoso sem os seus amiguinhos, não é? - comentou o meu gostosão.

Steve se virou para mim, entediado.

-Ainda quer que eu dê uma lição numa criatura tão patética?

Marcos então reparou na minha presença e me lançou um olhar dissimulado e rancoroso.

Steve me olhava como se quisesse que eu participasse da cena. Pois bem...

-Não, - fiz a minha própria versão de uma cara de tédio - mas deixe claro o que vai lhe acontecer, se tentar alguma coisa contra mim.

Steve era bom com jogos.

-Então é isso, cara... - Steve se inclinou para o nosso bebê chorão. - Se eu souber que você tentou qualquer coisa contra a Manu, e eu sempre fico sabendo de tudo, vou te caçar como a um cão e vou te achar, onde quer que esteja. Quando você menos esperar... - ele fez uma pausa, fingindo estar refletindo sobre o assunto. - Quando estiver sentado na privada, no aconchego do seu lar, pense em mim, porque eu posso e vou aparecer a qualquer momento e em qualquer lugar.

Steve aproximou-se um pouco mais; Marcos se colou à parede como uma lagartixa.

- De um jeito ou de outro, você não vai se safar do que fez. - Steve baixou a voz, num tom ameaçador. - Entendeu?

-S-sim.

Steve endireitou as costas, virou-se, e se afastou sem olhar para trás. No caminho, pegou-me pelo braço, levando-me à reboque, rumo à saída. Assim que deixamos o vestiário, ele tomou um caminho alternativo; a calçada que dá para os fundos do colégio. Ele atravessou a horta, diante do portão, e parou: - É aqui que nos separamos. Você deve sair por lá - ele apontou para o estacionamento - e contornar o prédio.

-Espera - segurei o seu pulso, quando ele fez menção de se afastar. - Vou te ver de novo?

Ele deu um sorrisinho matreiro, aproximou o rosto do meu, e eu achei que iria até rolar um beijo. Senti sua respiração quente e o hálito de menta. Mas ele se afastou devagar, recolocando os óculos escuros.

-Pode apostar que vai.

Então, foi embora.

Deixei escapar um suspiro, sentindo-me meio confusa (ou confusa inteira); voltei pela calçada que contornava o estacionamento até a porta de entrada do prédio. Algo se agitou em meu íntimo. O meu coração palpitou como há muito tempo não fazia. Era um misto de nervoso e de euforia.

Fiz o caminho de volta a parte da frente do instituto, sorrindo como uma boba. Fingi não perceber o rebu que estava rolando em torno da entrada do vestiário masculino.

-Estão todos doidos? - dizia o vigilante, tentando acalmar a manada de garotos pelados que o encurralava junto à porta. - Não tem ninguém aqui! Vistam suas roupas, pelo amor de Deus!

-Alucinação coletiva - eu gritei para ele, rindo. O cara apenas me encarou; de certo, lembrando-se do dia em que eu o procurei para relatar que estranhos estavam invadindo o colégio. Ele me mandou para a psicóloga. Meu sorriso se ampliou, quando eu disse: - Precisam de terapia, todos eles!

Acenei em despedida e continuei andando, sem olhar para trás.

-Ela tava lá! - gritou um dos garotos. - Ela viu tudo!

-Eu? - lancei um olhar por sobre o ombro, fazendo cara de bocó. - Não sei de nada, não... Aconteceu alguma coisa interessante?

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