Capítulos 15 e 16
[Sandra]
15 - Quase foi...
Dei mais uma espiada no relógio do celular. Ônibus atrasado. Que novidade!
Justo hoje, estava mais atrasado do que de costume. Daí, eu ia ter que correr para a sala de aula, e perderia a oportunidade de conversar com ele, antes...
Merda.
Merda, merda, merda.
Irritada, eu bati o pé. Empurrei o celular desajeitadamente para dentro da mochila. Se eu tivesse um relógio de pulso, não precisaria ficar fazendo isso o tempo todo...
Lembrei de que meu pai era tipo contra celulares. Ele instituiu outra tradição, a do relógio. Uma tradição bem idiota, eu diria, desde que Manuela ficou se exibindo com o dela. Mas, agora... Meu aniver estava chegando... E o papai não iria estar presente. Nem na minha formatura, nem para o resto da minha vida.
Eu queria que o papai estivesse aqui, para me dar a porcaria do relógio.
Manu achava que era a única a sofrer com o que aconteceu. Aquela egoísta! Só porque se autoproclamou a queridinha do papai; monopolizando a sua atenção sempre que podia. Ela me roubou momentos com ele. A rainha do baile só pensava em si mesma.
Senti um gosto amargo na boca.
De repente, escutei o motor do trambolho chegando. Quer dizer, o barulho antecedia o trambolho. De modo que levei mais alguns segundos para ver o busão fazendo a curva.
Mega hiper atrasado!
A porta se abriu diante de mim. Olhei feio para o motorista, que devolveu o olhar com cara de tédio.
-Pegou congestionamento, é? - perguntei.
-Não. - Foi a resposta indiferente.
-Então, o que aconteceu para atrasar tanto?
-O ônibus saiu no horário - disse ele, dando de ombros.
Alguém me cutucou e disse para eu subir logo, senão a gente iria se atrasar mais ainda.
Bufando por sobre o ombro, eu me certifiquei de fazer o Bruno entrar na minha frente.
Ele deu uma risadinha e se agarrou nas alças como se fosse o seu playground.
Eu adoravo o nosso irmãozinho, mesmo sabendo que ele adorava a nossa irmã mais velha. Fiquei observando enquanto ele passava por baixo da catraca, como lhe foi ensinado, e seguia meio cambaleante, enquanto eu apresentava o cartão de estudante.
Bruno atirou-se no banco mais próximo, impulsionado pela força do ônibus - mais precisamente, pela força da guinada que o motorista fez questão de dar, enquanto a gente ainda estava de pé. Eu quase caí por cima da catraca. Xinguei-o de retardado e me sentei ao lado do Bruno.
A paisagem foi se modificando lá fora, à medida que o veículo avançava. Eu olhava sem prestar atenção... Os pensamentos agarrados no problema. Não era justo! Por que a gente tinha que se mudar para onde Judas perdeu as botas, as calças a camiseta, enfim, a roupa toda?
Minha vida estava em Floripa. Os meus sonhos e objetivos; os meus planos; enfim, tudo girava em torno de continuar morando aqui. Eu estava me saindo muito bem nos estudos. Era a melhor aluna da minha série. Até fiz disciplinas do terceiro ano como aluna ouvinte. Claro, tendo o cuidado de evitar a turma de Manuela. E agora, o quê? Eu teria que simplesmente começar do zero na Jaculândia?
Não, isso não era justo.
E ele...? Eu não queria nem pensar na dor de lhe dizer adeus. Tá certo que não havia nada de oficial entre a gente... Eu não tinha o direito de me sentir triste. Estava apenas ajudando-o com os deveres.
Eduardo é um garoto inteligente e sensível, por trás da fachada de bad boy. Do tipo que afasta todo mundo do seu convívio, para não se magoar. Um típico lobo solitário, como nos livrinhos que minha irmã gostava de ler... E que eu desprezava com todas as forças do meu ser!
Não demorou e descobri que Edu conhecia todos os clássicos da literatura. Podia até recitar algumas passagens de cor, das obras mais importantes jamais escritas. Não vou negar: isso me excitava para caramba. Minha irmã dizia que eu era um ET, porque, normalmente, as garotas se excitavam com os bíceps e tanquinhos dos caras... Eu, ao contrário, me excitava com atitudes e conhecimento.
ET, tudo bem. Eu aceitava isso.
Não que eu ignorasse os bíceps maravilhosos do Edu. Mas como já disse, não foi a primeira coisa que me chamou a atenção. Mesmo porquê, no começo o ano letivo, eu estava ligadona no Philos, um garoto inteligente, que competia comigo pelas notas.
Eu me encontrava quilômetros à frente do Philos - deixemos bem claro. Mas, essa competição toda para ver quem era o CDF da sala, gerou uma certa tensão entre a gente. Uma tensão que combinava atração com desafio. Eu desconfiava de que ele fosse o @Paladinodaverdade.
Contudo, desde que Eduardo veio transferido da academia militar, para o IPC, o lance excitante de competir com Philos e desvendar o mistério do Paladino deixou de ter importância. Percebi que Philos era uma pálida imagem do que eu achava excitante, comparado ao aluno novo.
O Philos, com a sua atitude arrogante e jeito de ser metido a besta, perdeu todo o encanto diante da sabedoria e simplicidade do Edu. Agora, eu me perguntava: Como pude gostar daquele cara?
O próprio Paladino, apesar de admirá-lo como uma referência para a minha juventude revolucionária, deixou de ser assim tão interessante.
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Sim, Eduardo era um garoto vivido, simples, mas também era intenso; e provocava em mim emoções intensas.
No começo, eu sabia muito pouco sobre a sua vida. O lobo solitário mantinha a privacidade guardada a sete chaves. Descobri é que o pai veio transferido de uma base da Força Aérea, no Rio, e que a família morou em vários estados, por conta de uma vida militar itinerante.
Ele tinha um irmão mais velho e, aparentemente, não se dava bem com ele. Isso me atraiu como um ímã, pois espelhava a animosidade entre mim e Manu. Por meio da convivência e do exercício da confiança, descobri que a relação entre ele e o irmão era muito pior.
Não demorou, Edu começou a se sentir atraído pela minha privilegiada inteligência. Eu era de longe, a aluna mais inteligente do instituto. Não tinha dúvidas quanto a isso, nem quanto ao meu futuro brilhante (agora ameaçado pelas decisões descabidas de minha mãe).
De qualquer maneira, acho que Eduardo se sentiu desafiado pelo meu cérebro. A gente começou trocando farpas nada amigáveis. Essas farpas se converteram em camaradagem, quando ele precisou de ajuda em um dever de álgebra avançada.
Ele não pediu ajuda. Eu me ofereci. Acho que tive pena, sei lá... Foi numa manhã chuvosa, nunca esqueço, quando ele apareceu na escola todo machucado. Tínhamos prazo para entregar os deveres, que teriam nota com peso duplo - peso de prova. Eu acabei ajudando com sua tarefa pendente.
Eduardo ficou grato. Uma coisa levou a outra e nos tornamos o que se pode chamar, em meu conceito, de amigos. Foi assim que eu comecei a observar certos comportamentos.
Ele aparecia machucado na escola, com mais frequência do que eu julgava ser normal... Comecei a desconfiar de que estivesse sendo espancado pelo pai militar. Os machucados eram de surra, eu não tinha a menor dúvida. Outra coisa: muitas vezes, a atenção dele não estava na aula.
Com o tempo, Eduardo começou a se abrir comigo, e eu descobri que o pai nada tinha a ver com a sua situação. Eduardo participava de clubes da luta. E comigo, assim ele me disse, estava quebrando a primeira regra: "nunca falar sobre o clube da luta".
Na verdade, não era algo nos moldes tão conhecidos de um clube da luta, como foi eternizado no filme de Edward Norton e Brad Pitt. Eram lutas clandestinas, sim, que movimentavam muito dinheiro. Talvez tanto ou mais que as festas clandestinas. E aconteciam em lugares abandonados, de difícil acesso.
Eu fiquei indignada. Meu conceito dele caiu lá no pé...
Argumentei, dizendo-lhe que se não precisava de dinheiro, por que se destruir daquele jeito? Poderia ter sequelas permanentes.
Mas daí eu soube a triste verdade: ele estava lutando para pagar as dívidas do irmão mais velho, viciado em jogo. O cara devia muita grana para um agiota perigoso.
O irônico de tudo isso era que o pai achava que Eduardo era a ovelha negra da família. O outro filho agia como um santinho do pau oco; em quem o pai depositava todas as suas esperanças.
-O velho não vai aguentar se descobrir a verdade sobre o Gil - disse-me Edu, na ocasião, sentindo-se miserável.
-E você decidiu assumir o papel de filho bad boy, para poupar o seu pai? - Eu o confrontei. - Isso é ridículo. Cai na real, pensando que o errado é você ou o outro, seu pai sofre do mesmo jeito. Mas se soubesse a verdade, pelo menos teria como intervir corretamente.
Edu balançara a cabeça, desalentado e explicara em detalhes sobre a dívida de Gilberto. E da ameaça de morte que o agiota fez, se ele não pagasse. Parece que o agiota em questão era também um traficante de drogas. Ele tinha um modo operante eficaz de comércio. Facilitava o endividamento dos viciados em drogas e jogos, detectando quem pertencia às famílias ricas, para arrancar mais dinheiro. Ele usava o medo do escândalo para chantagear.
Gilberto estava muito encrencado.
Com o tempo, consegui fazer Eduardo entender que não podia arruinar o próprio futuro, e pior, matar-se, por causa das coisas que Gilberto fazia. Ele não estava ajudando o irmão assim, apenas acobertando e fazendo com que Gilberto achasse que sempre conseguiria sair impune. Afinal, tinha o irmão para amortecer o impacto de seus problemas. Se ele não fosse confrontado agora, algum dia, ele iria ser. Edu não poderia estar sempre por perto para lhe salvar o rabo. Gilberto acabaria enfrentando coisas até piores.
Eu fui franca com ele, como sempre. E acho que era uma das qualidades que ele buscava em mim.
-Você não conseguirá impedir que as consequências dos atos dele o alcançem. Melhor que o seu irmão enfrente e aprenda agora, enquanto pode, do que acabe arrastando você e outras pessoas para o buraco.
Eduardo começou a me ouvir, embora fosse um tanto cabeça-dura para seguir conselhos de quem quer que fosse. Além do mais, ele estava comprometido por meio de um acordo verbal com o agiota/traficante. Precisava participar das lutas ou ele também teria que arcar com as consequências.
O cara pretendia ganhar muito dinheiro com as habilidades de luta de Eduardo; devido ao seu treinamento na academia militar, onde estudou. Edu era faixa preta em caratê e um excelente boxeador.
Ele me contou que abandonou a academia porque descobriu que não queria seguir a carreira militar, como o pai e o irmão mais velho.
Acredite se quiser, Gil estava estudando para ser um oficial da Aeronáutica. Caso descobrissem o seu vício por jogos, ele seria expulso. E o detalhe é que Gil estava na reta final da graduação. Eduardo queria garantir que se formasse e seguisse carreira.
Uma vez a reputação manchada, Gilberto não teria uma segunda chance na carreira militar.
Eduardo pretendia concluir o curso técnico em engenharia. Exatamente, como eu. Mas os problemas do irmão o estavam seguindo para onde quer que ele fosse. Para mim, a sua matrícula no IPC foi uma clara tentativa de se afastar do convívio tóxico de Gil, embora eu ache que ele não admitisse isso nem para si mesmo.
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O que seria dele, quando eu me fosse? Pensei, pela enésima vez.
Ah, Sandra você está se achando. Até parece que um garoto como o Edu, rico, bonito e interessante, precisa de uma "nerdona" como você!
As garotas mais bonitas da escola arrastavam um bonde pelo Edu. Dulce fazia coisas idiotas para que ele reparasse nela. E ele reparou! (De um jeito condescendente, que eu jamais gostaria de me tornar objeto, mas reparou!)
Tantas outras pagaram mico (bem, para mim, era mico). Até Manuela ficou interessada nele, por um tempo. E o pior, Edu demostrou que achava a minha irmã atraente.
Como eu iria competir com uma garota do tempo?
Sabe, era assim que a gente chamava aquelas lindas e elegantes jovens que apresentavam o clima, na televisão. A Globo teve a Maju Coutinho, por um tempo, a Anne Lottermann, entre tantas outras mulheres de físico invejável, de diferentes redes de televisão... Elas ficavam lá, postadas ao lado do mapa do Brasil para anunciar seca, enchente, ciclone bomba entre outras catástrofes.
Pelo menos, as catástrofes eram apresentadas com elegância e leveza, isso a gente tinha que reconhecer. Né?
Manu era como as garotas do tempo. Isso só aumentava o meu rancor. Tá, eu sei que eu estava sendo injusta. Ela não tinha culpa de ser... Bonita, elegante, inteligente e popular. E devo admitir, cá entre nós, que a minha irmã era muito inteligente (nunca vou dizer isso a ela, enquanto eu viver). Ela tinha as qualidades que, eu sabia, Eduardo apreciava bastante.
Ele e noventa por cento do eleitorado masculino do IPC.
Para completar o pacote, ela se vestia muito bem. Não deixava nada a desejar à Maju Coutinho e quaisquer outras garotas do tempo que a gente via na TV.
O problema: Quando a gente se fosse para os cafundós de São Longino do Sul, o que não iria faltar eram garotas ricas, lindas, bem vestidas e inteligentes, para dar em cima do Eduardo, e para fazer por ele, os deveres escolares. Ele iria se esquecer de mim rapidinho. Em questão de dias.
Sendo otimista: em questão de semanas.
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[Sandra]
16 - Adeus às Armas
Ah... Volta a fita um pouquinho. Eu não fazia os deveres no lugar do Eduardo, que fique bem entendido. Eu apenas orientava os trabalhos... Deixa ver se consigo colocar de outra maneira: eu lhe dava aulas particulares e o ajudava a compreender as atividades, quando ele perdia alguma aula. E ele perdia aulas com frequência, por causa do submundo com o qual estava envolvido.
Se Manuela soubesse disso, isto é, que eu estava ajudando um garoto e tendo fantasias românticas em relação ao Edu, iria me azucrinar para ao resto da vida.
Eu estava tão ansiosa em vê-lo uma última vez, que quase me esqueci de conferir os posts do zap-zap. De repente, percebi um movimento anormal de visualizações nos grupos da escola. Muita gente postando ao mesmo tempo. Estavam comentando alguma coisa.
Entrei e rolei a barra para tentar descobrir a origem daquela enxurrada de comentários. Então, me deparei com uma cópia de um post bombástico do @Paladinodaverdade, feito no IG.
Bombásticos, os posts dele sempre foram... (E eu amava! Por um tempo, curti uma paixonite pela nossa "voz" misteriosa.) Mas aquele post, em particular, estava parecendo diferente... Tinha deixado de lado a irreverência e estava mais... Solene.
Eis o texto do post:
Há uma frase popular que diz: "Não ser descoberto numa mentira é o mesmo que dizer a verdade". Não sei a origem desse dito, porém, não acredito nele. Mas aposto que muitos políticos em nosso país, acreditam. Tem gente que mente tanto que acaba acreditando na própria mentira. Os psicólogos dizem que isso - acreditar na própria mentira - é uma maneira de aliviar o estresse que o ato de mentir gera; porque o cérebro humano, especialmente a parte involuntária dele, não foi programado para negar os fatos. Isso é contraditório, porque é o que as pessoas mais fazem na vida - mentir para si mesmas e para os outros.
Não estamos livres de mentir, é óbvio. Ninguém é perfeito. Eu mesmo estou aqui, mentindo sobre quem sou, porque não quero encarar as consequências das minhas palavras. Lembrem-se: nosso país está muito longe de ser uma Democracia, não importa o que digam. A liberdade de expressão não existe. Experimenta dizer o que pensa para ver o que acontece... Não há maturidade social para que as pessoas aceitem críticas sem descambar para a lavação de roupa suja, ou farpas de cinismo... Os processos crescentes na justiça estão aí, para provar, por causa de comentários que talvez não valessem o papel em que esses processos foram escritos (destruindo valiosas árvores por causa de pouca porcaria).
O brasileiro é muito estressado, gosta de dar a última palavra em tudo, e gosta de ganhar as coisas no grito. Acostumou-se a fazer assim, pois à medida que o Estado e a instituições vão falindo... A deseducação se fortalece.
Pois bem, o que mais acontece por aí é um tipo particular de mentira - muito perigosa, feia e fatal. Um tipo que se traduz num ato de violência. Enganar deliberadamente, iludir o mundo sobre a pessoa que você diz ser... Bancar a vítima quando, na verdade, é um agressor. Eis o pior tipo de mentira: fazer a vítima passar por vilã; simplesmente, porque o agressor tem grana e conexões...
Isso não é nada legal.
O ônibus diminuiu a velocidade, e eu me distraí da leitura. Estávamos chegando, mas ainda dava tempo de concluir a leitura. Ansiosa, eu preferi continuar:
Quando se comete um crime, como espancar uma pessoa até a morte, em nome do que achou ser verdade ou mentira... Isso, sim, é deturpar ou distorcer os valores morais. O agressor de quem estou falando é garoto sem moral, nem compaixão. Indigno de conviver em sociedade. A vítima da violência, em questão, jamais agiu de má fé. Ela acreditava em si mesma, e no relacionamento que tinha com o seu assassino.
Camélia Bastos não estava mentindo sobre sua sexualidade, estava apenas se comportando conforme a sexualidade que acreditava ter. Ela era uma mulher. Ponto. Esta era a sua verdade... E ela não se sentia segura em abrir para todo mundo, depois de tudo o que passou na vida. Depois de tanto preconceito por parte de pessoas que deveriam amá-la.
Mas daí, a verdade de Cam se chocou contra a Mentira de Marcos Dias. O amor dele era só por si mesmo.
Ele tinha o direito de querer terminar o relacionamento? Claro que tinha. Ele tinha o direito de se sentir magoado e enganado? Claro que tinha. Mas não tinha o direito de matar. Ninguém tem o direito de tirar a vida de outra pessoa, se não for para proteger a própria vida.
Esta é a verdade sobre o caráter do príncipe desencantado do Instituto Politécnico Continental - o IPC. A personalidade de um sociopata, que mostrou muito bem do que é capaz caso se sinta contrariado. Cuidado, garotas. Caras fodões não necessariamente são legais ou excitantes. Eles não aceitam ser confrontados. E garotos pacíficos e simples podem ter muito mais a oferecer do que vocês imaginam. Cuidado com os caras como Marcos - cheios da grana e sem nenhum freio, ou limite.
Não se esqueçam da garota doce, gentil e promissora que o mundo perdeu... Camélia Bastos. A garota que tinha todo um futuro pela frente. Não se esqueçam do nome dela, nunca.
Nossa, até parece a Manuela falando.
Um arrepio percorreu a minha nuca e eu sacudi a cabeça, na tentativa de espantar aquela ideia maluca.
Imaginei que o IPC devesse estar em polvorosa, especialmente, os amigos do Marcos. E por falar nele... Como terá reagido ao post do Paladino? Será que teria coragem de voltar às aulas, depois de tudo isso?
E quanto ao Paladino... Acho que detectei um tom de despedida, em meio à filosofia sobre verdades e mentiras...
Bruninho se remexeu ao meu lado, em busca da mochila, que estava no chão. Eu fechei o aplicativo, joguei o célular dentro da minha e o ajudei a colocar as alças.
Nós nos levantamos, comigo atrás, monitorando para que ele não caísse com o movimento do ônibus. Bruninho ia bamboleando, agarrado às alças dos bancos como se estivesse se pendurando nas alças dos brinquedos do parquinho público. Ele riu alto. Tudo era uma festa. Até andar de ônibus.
Descemos no ponto e caminhamos até o Jardim, onde eu deixaria o meu irmão, pela última vez. Eu me abaixei e contemplei o seu rostinho.
-Não se esqueça de pegar os seus brinquedos, os cadernos e livrinhos.
Os alunos daquela etapa de ensino sempre deixavam boa parte do material escolar e lúdico na sala. Mas como era a última aula de Bruno em Florianópolis, nós teríamos que levar tudo para casa.
Diante desta perspectiva, ele ficou carrancudo. Não queria deixar a escola, os coleguinhas e principalmente, a sua professora querida. Bruno não lidava bem com coisas mal explicadas. E falta de emprego versus economia era algo que escapava a sua compreensão infantil.
-Despeça-se de seus amiguinhos e da professora Eunice.
Ele me lançou um olhar sentido. - Tia Nice... - repetiu. Ele adora a professora. - Odeio a mamãe.
-Odeia nada - dei um tapinha em seu boné da sorte.
Ele afastou a cabeça e bateu o pé, imitando-me. - Odeio sim! - e saiu marchando para dentro do prédio colorido.
Com um suspiro, girei nos calcanhares. Meus All Stars pretos produziram um guincho na lajota, tipo pneu derrapando. Caminhei meio correndo para o prédio principal, ignorando Dulce e as demais garotas populares. Elas me lançaram olhares de deboche e falsa pena.
Se não era pela minha aparência, tenho certeza de que era pelo fato de mamãe não conseguir pagar as mensalidades. Essas coisas se espalham rápido. Quanto à aparência, eu não estava nem aí. Mas já o fato de ter as mensalidades atrasadas, isso, sim, me matava de vergonha.
O duro mesmo seria começar do zero, em uma nova escola. Sabe-se lá que tipo de colegas eu iria encontrar, em São Longino do Sul... Como diz a Manu: "na Jaculândia".
Subi os degraus de dois em dois e fui direto para o pátio interno do IPC. Relanceei os olhos pelo mar de estudantes. Não, eu não tinha amigos. A única pessoa que me interessava... Não estava lá.
Deixei o ar sair dos pulmões, ao deduzir que Eduardo, muito provavelmente, escolheu justo hoje para faltar à aula. Meu último dia no IPC e nem poderia me despedir dele.
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A aula passou como um borrão.
Eu esperava que Eduardo fosse aparecer, a qualquer momento. Só que não. Ele não veio mesmo. Fiquei muito triste e comecei a escrever uma carta para ele.
Uma carta de despedida.
Podia me dar ao luxo, já que estava de boa. Afinal, já tinha feito tudo o que era necessário para o meu último dia de aula, quer dizer, a parte relacionada aos meus deveres, notas e trabalhos pendentes; e a parte operacional. Entreguei os livros na biblioteca, peguei de volta o ábaco, a régua de circunferência, e a régua de gabarito que emprestei para alguns colegas sérios, embora um deles tenha se esquecido de trazer o meu livro de física do Ramalho, o que me deixou enlouquecida - porém, fiquei calminha da Silva logo em seguida, quando me ocorreu uma grande ideia: pedir ao Eduardo que me enviasse o livro pelo correio.
Mas o principal, que deixei resolvida logo de cara, foi a parte burocrática. Sem esta, a gente não poderia nem colocar o pé na outra escola.
Eu explico: acho que chamavam esse documento tão importante quanto um passaporte, de espelho de transferência, fornecido mediante a solicitação de matrícula na outra escola. Mas eu só podia pegar quando a escola de São Longino pedisse o documento, acenando com a vaga para cada um de nós. Minha mãe disse que o vovô tinha resolvido essa parte, de modo que bastava eu pegar o documento no final do turno. O meu, o de Manu e o de Bruno.
Conversei com a Dona Vânia antes da aula e ela me disse que até o fim do período, o pedido da outra escola já deveria estar na caixa de entrada de e-mails do IPC. Ela daria à diretora-tarântula para assinar e eu pegaria na saída.
Isto significava que eu não precisaria mais voltar no dia seguinte, nem no próximo. Com o espelho em mãos... Ainda naquela mesma semana eu estaria sentada numa carteira alienígena, numa escola alienígena, numa cidade alienígena.
Senti vontade de chorar outra vez.
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