Capítulos 11 e 12

[Manuela]

11 - Você tem que dizer três
 

- Capítulo 2 – Sandra me corrigiu a caminho de casa. – E você devia ter escolhido outro filme.

Ela tinha pavor de filmes e livros de terror. Um pavor tipo... Pavoroso! E exatamente por isso, eu decidi trazer “It”. Ao contrário dela, eu curtia terror puro e visceral, pra caramba!

Era divertido.

-Era isso, ou “Carrie, a Estranha” – respondi, alteando a sobrancelha.

Eu adorava Stephen King. Naturalmente.

Sandra acabou concordando em assistir ao filme comigo porque, apesar de detestar o tema terror e assuntos correlacionados – fantasmas, serial killers, criaturas sobrenaturais e sanguinárias, etc., - ela tinha uma curiosidade meio mórbida sobre os desfechos óbvios desses filmes. Além disso, conhecia tudo sobre os making-offs, os diretores, os elencos, as estórias por trás das estórias... Ela detestava terror, mas era fã de cinema.

-Nunca mais assisto a esses filmes que você escolhe – disse Sandra, e eu lhe lancei um olhar dúbio, porque ela sempre dizia isso. E sempre acaba assistindo aos filmes de terror que eu escolhia.

Depois ficava sem dormir por um ou dois dias, com medo de que alguma coisa fosse sair debaixo da sua cama e agarrar a sua canela.

Não importava o quão terrível e assustadora fosse a estória, eu sempre acabava achando graça em tudo. Se vocês querem saber, nada no tema terror me assusta. Eu desafio os escritores e os diretores de Hollywood a criarem uma estória de terror que me deixe com medo.

Sandra bem que tentou. Ela me testou de diferentes maneiras. Até me passou um livro para ler, que ela disse ser super-mega-hiper assustador. O título era “Silêncio no Vale”, de uma autora brasileira meio doida, que escrevia em diferentes gêneros, e sobre diferentes temas. Eu comecei a ler o livro dela e... Novamente, achei tudo muito engraçado.

-Eu não te entendo! Você deve ter sido trocada na maternidade! – disse Sandra. - Provavelmente, é filha de algum ET perdido por aí.

Eu gargalhei. – Eu é que não te entendo! Diz que morre de medo de filmes e livros de terror, mas vê tudo o que lhe cai nas mãos.

Ela abriu e fechou a boca. Bingo! Peguei!

-Faço isso para me certificar... – ela ensaiou uma justificativa, mas se atrapalhou toda.

-Certificar de quê? – eu insisti.
Afinal, meu tempo é precioso. Né, não?

Sandra bateu o pé, irritada. Ela sempre fazia isso. – Para me certificar de que estarei prevenida.

Franzi o cenho.

-Prevenida para um apocalipse zumbi? – arrisquei, em tom debochado.

-Ah, ah, ah! – ela simulou uma risada sem humor. - Muito engraçada! Mas não se esqueça de que a vida imita a arte.

-Mita artiiiii – disse Bruno, acordado de novo, tentando repetir o que ele achasse interessante.

Assim como eu, Bruno não tinha problemas com filmes de terror, exceto que a mamãe não podia saber que eu estava deixando o meu irmãozinho de quatro anos assistir ao “It”. Ele riu muito toda vez que aparecia aquele palhaço estrábico.

-Menina bula! – disse, quando o palhaço enganou a menininha desavisada.

Comemos quase a pizza toda durante o filme, acho até que de tanto nervoso. Não eu, mas eu vi a Sandra pular de susto, durante a cena em que o palhaço convence a pobre menininha a tirar a mancha do rosto, contando até três.

Um...

Dois...

E então, a baba sai da boca do monstro e Sandra começa a gritar, antecipando o que a criatura irá fazer.

A menininha diz, na tela: “Você tem que dizer três” e a bocarra do palhaço engole a sua cabeça.

Bruno meio que ficou mexido com essa parte do filme.  Ele olhou para mim, e eu lhe disse:

-Querido, é tudo faz de conta.
Ele aceitou, porque acreditava em tudo o que eu dizia. Até quando eu estava mentindo.

Quando o filme acabou, ele me trouxe uma revista de ufologia e nela, havia a representação de bocas horrendas, como a do palhaço, pintadas nas paredes de algumas cavernas.

Também havia figuras de deuses com cabeças de astronauta perseguindo criaturas com as bocas iguais a do palhaço, como se fossem experiências de laboratório que deram errado, ou escaparam para atormentar os homens e mulheres primitivas deste pobre planeta. Pelo menos, essa era a explicação de Sandra, uma fã de teorias da conspiração e leitora contumaz de Zacharia Sitchin.

Eu, particularmente, achava tudo aquilo uma besteira sem tamanho.

-Igual – disse Bruno, apontando para a imagem. De fato, os dentões eram muito parecidos com os do palhaço do filme “It”.

-Mas não tem cara de palhaço – eu apontei o óbvio. – Está mais para Alien, o oitavo passageiro.

Ele olhou de novo para a representação, na revista e concordou. – Verdadi!

-Verdade – eu o corrigi, automaticamente. Coitadinho, ele nem sabia com o que estava concordando. Não tinha a menor ideia de como era o Alien do filme.

Não demorou nem cinco minutos e Bruno já tinha esquecido o palhaço que engoliu a cabeça da menininha. Graças a Deus, porque eu teria que prestar contas à mamãe, se ela descobrisse o que nós fizemos. Especialmente se Bruno começasse a se esgoelar durante a noite, depois de um pesadelo com o palhaço de “It” e acabasse contando tudo a ela.

Bem, não seria a primeira vez.
Quando o relógio marcou oito da noite, Bruno já estava roncando no sofá, agarrado ao seu cobertor preferido.

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[Manuela]

12 - Notícia
 

Terminamos de limpar a festa da pizza, e eu me dei conta de que estava tarde para caramba! Eram dez e meia e mamãe ainda não tinha chegado. Mal formulei o pensamento, e eis que a maçaneta da porta da frente começou a girar. Eu e Sandra nos apressamos para ajeitar a sala. Eu escondi a caixa do DVD... Sabe como é, pra ela não descobrir que o Bruno assistiu ao que não devia assistir.

Depois disso, só tivemos tempo de dar uma ajeitada nas almofadas antes de ela aparecer na porta.

Mamãe entrou, fechou a porta atrás de si e caminhou na nossa direção com uma expressão tão abatida, que eu deduzi as más notícias.

De repente, ela olhou para o Bruno dormindo no sofá.

-O que é que o Bruno ainda está fazendo acordado a esta hora? Ele tem escola amanhã cedo! – ela disse, em tom de reprimenda.

-Bem, tecnicamente, ele não está acordado – disse eu.

Mamãe me deu um daqueles seus olhares. – Sem gracinhas, Manu. Não estou com humor para isso.

Sandra pegou o Bruno no colo, em silêncio. O garoto acordou nesse instante e começou a se remexer.

-Eu não sou um bebê – dizia ele, choramingando de sono.

-Ótimo, então, como todo adulto responsável – disse Sandra, carregando-o mesmo assim – você sabe que tem aula amanhã.

Os dois desapareceram no corredor e eu fiquei sozinha com nossa mãe. De repente, senti que precisava me ocupar, diante daquele silêncio opressor e fui terminar a arrumação da cozinha.

-Guardamos um pedaço de pizza pra você, mãe.

A expressão dela suavizou. – Que bom! Achei que não conseguiria comer, mas percebo que estou faminta. Não como nada desde manhã.

Preocupada, eu tirei a embalagem da pizza de dentro do forno e coloquei sobre a bancada.

-Está tudo bem? – perguntei.

-Não, querida. Mas vai ficar...

Ela suspirou, olhando para a embalagem, então se lembrou de algo e voltou ao hall de entrada. Enquanto ela pegava a bolsa no cabideiro, eu colocava os talheres e o prato sobre a mesa. Mamãe puxou a banqueta para junto do balcão e se sentou pesadamente.

Sentei diante dela e esperei.

-Eu estou chateada, – ela disse, de repente - e ao mesmo tempo, aliviada por ter encontrado uma saída Mas precisarei do apoio de vocês duas.

Com o canto dos olhos, eu avistei Sandra parada entre a passagem do corredor e a cozinha, escutando a nossa conversa.

-Você sempre pode contar com o nosso apoio, mãe – disse eu, voltando a me concentrar nela.

Mamãe me olhou bem séria. – Ainda bem, querida, porque eu não posso mais bancar o colégio particular de vocês, nem o aluguel deste apartamento, mal temos para comer...

Disso, eu já sabia, depois da conversinha que tive com a diretora do colégio e depois do que Sandra me falou... Mas ouvir a informação da boca da pessoa responsável pela nossa segurança emocional e financeira... Tornava tudo mais chocante e terrível.  Se ela estava me contando, é porque não conseguia mais nos poupar.

E agora? O que seria de nós? Iríamos para um lar provisório, tipo... Um orfanato?

-Eu falei com o avô de vocês hoje cedo – ela estava dizendo e eu me esforcei para frear minha imaginação galopante. – De modo que passei o dia todo fazendo as contas e os preparativos...

-Peraí... Do que está falando? – eu comecei a ter um pressentimento. Sandra esticou o pescoço, com o rosto lívido. – Preparativos para quê, exatamente?

-Além do mais – ela continuou dizendo, como se me preparasse para a grande novidade. – Não é seguro você ficar aqui, depois do que aconteceu a Cam... Fiquei sabendo que aqueles garotos acabaram voltando para o colégio e vocês teriam que conviver com eles até o final do ano. Só Deus sabe no que isso iria dar...

De repente, o choque deu lugar ao alívio. Eu mal podia acreditar que ela estava dando a solução para o meu problema com a diretora Periguete.

Sandra saiu do corredor, causando um sobressalto em nossa mãe.

-Mãe, pelo amor de Deus! – ela gesticulava como um polvo balançando seus oito braços. – O que você fez?

Mamãe juntou as mãos, em oração.

-Querida, nós vamos voltar para São Longino do Sul, assim que os espelhos de transferência escolar de todos vocês estiverem prontos.

-O quê? Não! – gritou Sandra. - Eu não quero voltar para aquele fim de mundo!

Mamãe não respondeu, olhando fixamente para o pedaço de pizza que estava no prato. Apesar de Sandra ser sua queridinha, era eu quem sabia ler a postura corporal de Dona Denise. Ela estava falando sério. Muito sério.

Deixei escapar um suspiro, tentando digerir a novidade – avaliando os prós e contras da situação. Meus pais deixaram aquele lugar esquecido por Deus, quando eu ainda era pequenininha. O vovô não nos conheceu...

Nós o conhecíamos por uma foto amassada que a mamãe nos mostrou. Não sei o motivo pelo qual papai e mamãe não falavam sobre ele, e não conversavam com ele. Parecia um daqueles lances de romper laços, que a gente via no ID Investigation (só que sem a parte dos assassinatos), ou no programa Casos de Família (só que sem a parte do quebra-pau).

-Como é que a senhora vai fazer isso com a gente, – Sandra continuou gesticulando, histérica  - quando toda a nossa vida está em Floripa!

-Não temos escolha, queridas filhas – disse mamãe, sem se alterar. - Além do mais, acho que vocês não podem dizer exatamente que estão felizes vivendo aqui.

Sandra mudou o peso de um pé para o outro, cruzando os braços.

-Mas pelo menos aqui, temos a modernidade. Eu... – Ela se interrompeu, então, apontou para mim, desesperada. – A Manu tem sua popularidade e seus amigos e...

Não que ela valorizasse a minha popularidade e meus amigos. Só estava tentando me comprometer com a sua causa.

Mamãe olhou de uma a outra, então verbalizou exatamente o que eu vinha pensando nas últimas semanas:

-Que amigos? Gente que nem se lembrou de aparecer quando sua irmã perdeu a melhor amiga? Só porque eles descobriram que ela não era uma garota que nasceu com o sexo feminino? Quanto à popularidade na internet... – ela bufou. - Por acaso, é algo que valha o sacrifício de frequentar uma escola, na qual os jovens se comportam e se tratam como animais?

Sandra abriu e fechou a boca.

-Mas e quanto ao meu futuro, ao meu currículo? – atacou Sandra, toda revoltada e desesperada.

Mamãe respondeu na mesma linha de raciocínio que a dela:

-Vai me dizer que, com toda a sua inteligência, você não consegue fazer o seu currículo em São Longino do Sul? – questionou.

Xeque-mate.

Sandra abriu e fechou a boca de novo, como um peixe fora da água. Ela olhou para mim, com mágoa (acredito que por causa da minha falta de ação), e disse: - Fala alguma coisa, Manu!

-Falar o quê? – cruzei os braços. - Ao que parece, mamãe já se decidiu.

Dona Denise mastigou o resto de sua fatia de pizza e disse, com a boca cheia: - Adivinhou. Acho que só vou lamentar não ter a Cantina Italiana por perto... Por outro lado, a Wasserfall Haus é imbatível.

-Wasser o quê? – eu fiz uma cara.

-A confeitaria mais tradicional de São Longino do Sul – respondeu, com uma expressã sonhadora. - Vocês vão amar, quando conhecerem. Eu costumava levar você Manu, quando tinha dois ou três anos, mas com certeza você nem se lembra.

Com certeza, eu não me lembrava.

-Mal posso esperar para provar outra vez as cucas tradicionais e as tortas que só a dona Giselda sabe fazer. Será que ainda está viva?

-E eu lá quero saber de comer e engordar até virar um leitão com a maçã na boca? – disse Sandra, furiosa. Ela, então, fez um esforço para ficar mais meiga e mudou o tom: - Mãe, não é tarde para mudar de ideia. Podemos encontrar outro jeito e...

-Não querida, eu já contratei o caminhão de mudança, com o dinheiro que seu avô me enviou para liquidar nossas pendências e voltar para casa.

Eu estremeci ao pensar no vovô. Na foto, ele parecia ser um cara bem sisudo e de poucas palavras, mas é apenas um palpite. Uma vez, mamãe disse que ele não era de rir a toa... E que vivia isolado do resto da cidade, em seu ferro velho. O cenário formava um conjunto nada atraente para minha popularidade.

Sim, porque eu planejava fazer uma limonada disso tudo. Eu podia ensinar às caipiras de São Longino algo sobre estilo e moda. Afinal, dizem que em Terra de Cego, quem tem um olho é rei. Ou melhor, rainha.

A popularidade poderia ser reconquistada. Provavelmente, a Jaculândia iria me implorar por meus conselhos.  Eu só imaginava o grau de bobice daquelas garotas lá do interior.

Quanto ao vovô, eu teria apenas... Que contorná-lo.

-Ele ainda tem aquele ferro velho? – perguntei.

-Tem, sim – mamãe respondeu, com um meio sorriso - e é graças ao ferro velho que temos dinheiro para voltar para casa.

-Casa... – Sandra murmurou. - Só pode ser brincadeira!

-Não, não é brincadeira, querida – mamãe rebateu, começando a se irritar.

Sandra bateu o pé e saiu xingando baixinho. Acho que eu a ouvi falar “puta merda”.

-Vou lavar a sua boca com sabão, mocinha! – disse mamãe, sem se alterar. – Melhor cuidar com o vocabulário de vocês, quando estiverem diante do seu avô.

Eu percebi que o alerta era para nós duas.

-Ok – cantarolei.

Sandra não respondeu. Apenas bateu a porta do seu quarto com toda a força.

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