V

𝓥encida pelo medo, Nora passou às mãos de Javier a encomenda que ele tanto almejava:

— Muito bem, Nora, eu sabia que você ia colaborar. Continue agindo assim, que a vida de sua mãe vai ser preservada. Ah, enfim o laudo da exumação...

— A prova que prometi, comprovando que Domingos está mesmo morto. É o original do laudo oficial. Foi obtido pela Fontana Lobo Advogados Associados.

— E como posso confiar que isso não seja falso?

— É um documento oficial. Se ainda duvida, peça que investiguem junto à polícia de Minas Gerais. Há aí também a cópia do laudo antigo, cujo original não pôde ser liberado pela Justiça, eles só fornecem cópias, mas é uma cópia autenticada. E agora, estou livre?

— Livre? — gargalhou. — Ainda não!

Javier primeiro examinou o material, depois disse:

— Nós sabemos sobre o enigma do Omar, sobre as chagas de Cristo.

— Como sabem disso?

— Há vinte anos que sabemos. Domingos contou ao Padre Germano, quando vocês estiveram no Seminário, em 2001. O que significa a charada?

— Padre Germano? Eu bem que disse ao Domingos para ficar quieto, mas ele era muito confiado. Sobre a charada, não sei o que quer dizer.

— Claro que sabe!

— Não sei, juro.

Javier ergueu a bengala com a famosa cabeça de leão e não poupou força em direção à perna esquerda de Nora, que gritando de dor, perdeu o equilíbrio. Uma cadeira próxima foi sua salvação.

— Refresquei sua memória, Srta. Gômer?

Gemendo de dor e com a mão direita friccionando o local da pancada, reiterou:

— Juro que não sei. Sempre achamos que tem algo a ver com a Crux, mas não tenho certeza.

Crux?

— Sim, a constelação do Cruzeiro do Sul, visível somente no hemisfério Sul...

Nora falava com dificuldade, devido à dor lancinante:

— Mas não sei o que significa, além disso.

— E por que a constelação?

— O Cruzeiro do Sul possui cinco estrelas... — Sua perna devia estar quebrada, a dor era insuportável. — E as chagas de Cristo são cinco, sendo cinco os evangelhos: "Q", Marcos, Mateus, Lucas e João". Na Crux, a pequena estrela 'intrometida' fica à direita da 'estaca' e abaixo da 'trave'. É o evangelho "Q".

— E qual a solução disso tudo?

— Juro que não sei. — E colocou-se na defensiva, temendo por nova uma pancada. — Por favor, não me bata, eu te imploro.

Javier sentiu sinceridade na voz da antropóloga. Advertiu-a, porém:

— Espero que esteja dizendo a verdade, senão será muito pior na próxima. — E nisso fez uma ligação: — Estou com Nora. Não, ela não sabe onde está o códice. Também não sabe a resolução completa do enigma, mas acha que tem a ver com a constelação do Cruzeiro do Sul. Sim, a Crux, mas depois explico melhor, estamos indo agora mesmo para aí.

Javier ordenou:

— Amarrem-na!

Dois asseclas de Javier imobilizaram Nora Gômer, com amarras e mordaça. Dali a levaram para um carro e partiram em direção a Aparecida. Quando chegaram à cidade, o carro piscou os faróis, próximo do portão dos fundos do Seminário Bom Jesus, que automaticamente se abriu. Passaram rapidamente pela entrada, com o pesado portão de ferro rangendo atrás deles,

— Finalmente chegaram!

Padre Germano os recebeu e levou-os para a porta do depósito, que outrora fora usado por Lea e Domingos para fugir de Enrico e Manolo. Nora, embora não pudesse falar por conta da mordaça, não pode conter a revolta, expressando-se apenas através do olhar.

— Surpresa? Sim, sou eu mesmo. Tirem a mordaça dela.

Um dos comandados de Javier fez o que ele pediu e logo ela desandou a falar:

— Que decepção, Padre Germano, o tanto que Domingos confiou no senhor. Eu não, eu nunca confiei, mas ele não me escutava.

— Eu sempre fiz parte da Ordem, minha filha, mas em geral eu uso métodos diferentes para sondar e descobrir o que quero, não é mesmo, Javier?

Javier aquiesceu com a cabeça:

— Sim. E em breve vou me aposentar e Germano vai me substituir no comando.

— Será uma honra, Javier. Sabe, faço-me amigo até o instante limite. Tivemos anos turbulentos no Brasil e no mundo, até chegarmos aqui, mas soubemos esperar — completou.

Javier corroborou:

— O tempo de Deus nem sempre é o nosso.

Com a revelação, Nora lembrou-se de um fato: de um dia ouvir Padre Germano a rezar uma oração específica da liturgia eucarística, na qual se repetem três vezes: "Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós", sendo que na terceira vez conclui-se com "dai-nos a paz" e "não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo"¹. Finalmente compreendeu: a oração lema da Ordem Agnus ou Ordem do Cordeiro também fora uma apropriação indébita realizada pela seita, tal qual a medalhinha símbolo do agnus Dei, que utilizavam no pescoço.

Quando a porta do depósito enfim foi aberta e Germano acendeu a luz, Nora tomou um susto:

— Bruno?!

Bruno estava sentado em uma cadeira, amarrado:

— Nora!?

Desceram a escada e Padre Germano empurrou-a na direção dele. Ordenou:

— Desamarrem os dois.

Quando livres, abraçaram-se:

— Você está bem, Nora?

— Estou. E você?

— Eles me sequestraram e me amarraram aqui.

— Eles me forçaram a fazer o que fiz, me perdoe, meu amor.

— Silêncio! — gritou Germano. — Vocês vão ter muito tempo para conversar. Agora, Bruno, quero que me revele o segredo. Onde está o documento "Q"?

— Eu não sei.

— Sabe sim.

— Não sei.

Nora ainda sentia muita dor na perna. Bruno preocupou-se:

— O que fizeram com você?

— Javier — começou ela —, me bateu com a bengala.

Bruno fez menção de se levantar:

— Seu filho da...

Nora segurou-o:

— Não, Bruno, eles não estão para brincadeiras. Vamos ter que colaborar.

Padre Germano gostou da atitude:

— Isso, minha filha, colaborar é o melhor que podem fazer. Não estão em condições de se negar a isso. Bruno, explique o enigma da Cruz, agora!

— Eu já disse que não sei! — gritou ele, contrariando o pedido de Nora.

— Não se faça de idiota. Interceptamos um telefonema do delegado Basílio para você.

Nora estava estupefata:

— Meu Deus — balbuciou ela.

Ele prosseguiu:

— O delegado lhe dizia que tinha resolvido o enigma...

E tomando do celular, Padre Germano colocou em alto e bom som uma gravação:

"— Olá, Bruno, tudo bem? É o Basílio.

"— Olá, delegado. A que devo a honra?

"— Acho que sei onde está o documento 'Q'.

"— Sabe?

"— Sim, eu sei, mas não posso te dizer pelo celular. Hoje em dia tudo sempre possui olhos, nariz e ouvidos. Estou em São Paulo. Encontre-me aí na frente do escritório, em cinco minutos."

— Nada sei sobre isso — asseverou Bruno.

Padre Germano estava visivelmente com a paciência esgotada:

— Ok, vou ajudá-lo a reativar os neurônios. Se bem me lembro, sua amada tem medo de lugares fechados.

Conhecendo bem o manuscrito, Bruno desesperou-se, pois logo entendeu o que ele ia fazer. Padre Germano apertou um botão e a parede corrediça do túnel se abriu. Nora entrou em pânico:

— Não, eu te peço, não, pelo amor de Deus, padre. O senhor é um homem de Deus, por favor...

— Cale a boca e entre!

Nora resistia e então um dos ajudantes de Javier a levou para o interior do túnel, que ela conhecia bem, apertado e baixo no início, cravado em granito escuro e alargando-se somente à frente, em dez metros, até se atingir o corredor com paredes em tijolos e teto em arco. Enquanto um a empurrava, o outro auxiliar de Javier segurava Bruno.

— Não! Não, pelo amor de Deus — gritava Nora, em desespero, até desmaiar e ser arrastada e largada no chão frio do túnel secreto. Germano apertou novamente o botão, para que a passagem fosse fechada, ao que Bruno implorou:

— Não! Tenha compaixão, não a maltrate, eu te peço, tire ela daí.

— Vai colaborar, então?

— Sim, eu conto tudo.

Nora então foi retirada e depositada como um saco inerte, num canto.

— Pode falar! Onde está o documento "Q"?

꧁༺༻꧂

"— Bruno, veja se concorda... Na Crux ou constelação do Cruzeiro do Sul, das cinco estrelas que a compõem, quatro formam a cruz propriamente dita e a 'intrometida', é a pequena estrelinha que se mete entre elas. Isso tem a ver com os profetas.

"— Como assim, delegado? Que profetas?

"— Os profetas de Congonhas! Estava diante de nós o tempo todo, mas não conhecemos a Bíblia o suficiente. Eu demorei a descobrir... Na Bíblia, quatro são considerados os 'profetas maiores': Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel. E quatro são os evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João. Já os 'profetas menores' são doze: Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum e Habacuc, além de Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. Em seu conjunto, Aleijadinho não retratou os quatro últimos: Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias e no lugar de Miquéias, colocou Baruc, que só é encontrado em bíblias católicas, por ser considerado apócrifo pelos protestantes. Baruc, porém, não é profeta, foi tão somente um secretário de Jeremias, mesmo assim, foi colocado por Aleijadinho no adro entre os quatro maiores, ou seja, um intrometido, tal qual "Q", metendo-se no meio dos quatro evangelhos canônicos. Agora, veja isto...

"Basílio tinha no bolso um desenho e uma foto do adro dos profetas. Colocou-os sobre o capô de um carro e no desenho em planta, circulou com uma caneta o profeta Baruc, em seguida interligando os quatro maiores por duas linhas retas.

Veja, Bruno, o que lhe parece?

"Não havia dúvidas:

"— Meu Deus! É a constelação do Cruzeiro do Sul.

"— Eis aí a tua 'crux' — finalizou Basílio. — Os quatro profetas maiores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel... E um 'intrometido' entre eles: Baruc! O que se conclui disso?

"— Que... O documento "Q" está dentro de Baruc?

"— Claro! Omar trouxe o papiro para o Brasil e depois que Adriana morreu, ele foi contratado para recompor a estátua atingida pelo tiro que Jerônimo deu, tentando matar o Belo. É nele que está escondido o documento!

"Não pude conter o espanto:

"— No profeta? Mas como, se as pedras que os compõem são maciças?

"— Sim, é verdade, para esculpir os profetas Aleijadinho utilizou-se de pedras-sabão maciças e inteiriças, esculpidas no próprio local, sendo impossível, portanto, haver qualquer cavidade interna nas estátuas, como muitos populares apregoam, aventando-se haver nelas relíquias e joias escondidas. No entanto, a estátua de Baruc é a única formada a partir de dois blocos de pedra distintos, emendados na altura dos cotovelos e justamente essa pode realmente ser oca.

"E nisso Bruno lembrou do que Domingos, na pele de Ravacini, dissera logo de início: 'Inúmeras coisas os guias iam falando, enquanto isso, eu olhava a inscrição bíblica no filactério do profeta Oséias, após ter passado por Baruc, o único não esculpido em pedra única'.

"— Segundo o manuscrito, capítulo 17, Domingos diz o seguinte:

'Foram dois os disparos, um acertou minha mãe e o outro zuniu no ar, cruzando o alto da escadaria e colidindo nas costas do profeta Baruc, cuja parte superior partiu-se em duas, da altura dos cotovelos até a cabeça (...)'.

'Omar acabou estendendo sua estada por mais quinze meses, até que aconteceu a tragédia. Tendo feito contatos, acabou contratado para restaurar o profeta Baruc, permanecendo ainda por mais dois meses no país, até retornar à Turquia'.

"Basílio prosseguiu:

"Ao começar o restauro, ele deve ter notado que a estátua não era de pedra maciça (e daí inclusive surgiu a lenda de que todas pudessem ser ocas), assim, não teve dúvidas: após a restauração e antes de emendar as partes, colocou a fonte 'Q' dentro. Inclusive existe uma pista velada na frase do enigma: "As chagas de Cristo ferem os corações mais duros e aquecem as almas mais frias". O que é o interior das estátuas, senão algo duro e frio, aquecido pela fonte 'Q'?

"Fazia total sentido.

"— Basílio, como afirmar uma coisa dessas, se nem sabemos se realmente o profeta Baruc é oco?

"— Meu caro Bruno, que outra explicação você tem? E basta verificar com um equipamento de ultrassom."

"O ultrassom mostrou-se inviável, pois poderia não ser eficaz. Cogitou-se um 'scanner de TC' (tomografia computadorizada) e também equipamentos de radiografia convencional, mas ambos possuíam o inconveniente da utilização de 'raios X', que poderiam ser prejudiciais à pedra-sabão. Optou-se, por fim, por um processo endoscópico, minimamente invasivo, com a inserção de uma pequena câmera através de um pequeno orifício, de diâmetro dez milímetros, feito com broca diamantada. Foi comprovado: a estátua é oca e possui um invólucro dentro."

— Bingo! — gritou Javier. — E alguém já tomou alguma providência, já abriram a estátua?

— Ainda não — disse Bruno. — Esbarra em autorização do Iphan e sabe como é a burocracia.

Padre Germano exultou:

— Bendita burocracia! Isso nos dará tempo de ir lá e abrir aquele profeta nós mesmos, na marra!

Javier também estava ansioso:

— E o que fazemos com esses dois?

Ali era o território de Padre Germano e era ele quem dava as ordens:

— Por enquanto, nada, até que realmente confirmemos se o enigma foi de fato resolvido. Omar pode estar a nos pregar uma peça.

Voltou-se para um dos assistentes do grão-mestre:

— Juan, você vem conosco até Congonhas. E você — dirigiu-se a Yago, o outro dos ajudantes de Javier —, vai ficar aqui e providenciar comida e água, fazendo a vigia. Aqui tem tudo que precisam, em hipótese alguma entre em contato com alguém do Seminário, está bem?

— Certo!

— Mas não vamos deixá-los sem preocupações, correto?

Dando uma coronhada em Bruno, ordenou que levassem o casal para o interior do túnel

— Serei bonzinho, coloquem eles na parte do corredor em que as paredes são de tijolos, tem mais espaço.

Antes de saírem, Padre Germano acionou a parede corrediça, que se fechou, aprisionando Bruno e Nora, inconscientes, dentro do corredor escuro e na companhia de inúmeras aracnídeas.

꧁༺༻꧂

Nora acordou em sobressalto e só aos poucos se deu conta de onde estava, apesar da total escuridão. O coração latejava nas têmporas e as gotas de suor desciam até os lábios, salgando-os com o terror da claustrofobia. Mesmo sem enxergar, as paredes fechavam-se sobre ela e cada vez mais o aperto invisível prensava-a contra si mesma, numa sensação indescritível de pavor e medo. Jogou uma das mãos para o lado e pode sentir um corpo. Gelou dos pés à cabeça, mas logo o raciocínio ajudou-a: era Bruno!

— Bruno! Bruno! Acorde.

Bruno não respondia e ao temor claustrofóbico, aliou-se o receio de que ele estivesse morto.

— Bruno! Por Alá, acorde! — Até que ouviu um suspiro. — Oh, graças a Deus, está vivo!

— Nora...

— Estou aqui, meu bem. — E abraçou-o.

— Onde estamos? Por que não vejo nada? — perguntou, passando a mão sobre o enorme galo na cabeça. — Estou cego?

— Não, querido. Eles nos jogaram dentro da galeria. Estou em tempo de morrer, Bruno. Não sei se vou suportar.

Ele ergueu o corpo, tentando tatear algo sólido e sentiu a parede de tijolos que se erguia a seu lado:

— Temos que manter a calma. Respire fundo três vezes e solte o ar bem devagar, a cada vez. Te ajudará com o pânico.

Nora conhecia o exercício, mas em geral ela se desesperava de ansiedade já na segunda expiração.

Bruno, ainda tonto, escorando-se à parede, preocupou-se com seu próprio medo, que possuía um nome tão feio quanto o bicho que o produzia: "catsaridafobia". Uma teia de aranha resvalou seu braço e ele deu um grito:

— Ai!

— O que foi?

— Meu Deus, pensei ser uma barata.

Apoiando-se em seu corpo, Nora também se ergueu e o abraçou. Começou a rir e a intensidade do nervosismo foi só se ampliando, até que se transformou numa sonora gargalhada:

— Era só o que faltava... Há, há, há, há, há, há, há... claustrofobia e nictofobia em só uma pessoa: eu!... Há, há, há... E o sujeito com medo de baratas.

— Nictofobia?

— É, medo de escuro.

E Nora não conseguia segurar o riso, fazendo com que Bruno também gargalhasse, contagiado:

— Eu te guio... Hé, hé, hé, hé, hé... No escuro e você... hé, hé... mata as baratas! — Mal conseguia proferir as palavras.

Aos poucos as lágrimas e o soluço foram interrompendo o ataque de risos e fez-se silêncio, caindo-lhes definitivamente a ficha. Abraçaram-se mais uma vez e foi inevitável o caloroso beijo que trocaram, as línguas buscando-se em frenesi, em desatino e total descontrole.

— Gosto de sexo no escuro e você?

— Bruno, pelo amor de Deus, como pode pensar nisso, numa hora dessas?

— Estava com saudades. Pensei tantas coisas, desesperei-me quando você assaltou meu cofre e sumiu, perdi meu chão.

— Mas agora estou aqui. E nunca mais vamos nos separar.

Bruno temia pelos dois, mas ao menos morreriam abraçados, como Romeu e Julieta.

— E o que fazemos agora? — perguntou ela. — Será que vão voltar? Já têm o que queriam, por que nos torturar desse jeito?

— Não, eles ainda não têm o que querem e estão agora atrás de uma obsessão: o documento 'Q'. Não sei se torço para que o encontrem ou não, sei lá.

Nora desandou a chorar, numa crise inversa à de poucos minutos:

— Eles vão nos deixar aqui... para sempre! Vamos morrer de fome e sede, nesse corredor apertado e escuro.

Bruno a abraçou mais forte ainda:

— Calma, vamos dar um jeito.

— Que jeito?

— Não sei... Mas lembro do manuscrito. Já estamos no corredor feito de parede de tijolos, nos deixaram além do túnel apertado de granito. Segundo o relato de Domingos, se bem me lembro, a passagem subterrânea tem cem metros no total e o túnel escavado no granito tinha dez metros, portanto, são noventa metros de caminhada.

Seria fácil, se não fosse o escuro, mas ao menos havia farta circulação de ar, o que tornava as coisas menos angustiantes. Os insufladores, porém, não tinham contato algum com a luz exterior, o breu era total.

Nora entrou em pânico:

— Não! Eu não saio daqui nem por decreto.

Agarrou-se a ele com toda a força que podia. Bruno aguardou alguns segundos, depois disse:

— Segure em meu braço, que te guio. Vou tateando a parede.

Bruno buscou andar, mas Nora estava paralisada.

— Vamos, Nora, não temos escolha! Temos de chegar na outra ponta e tentar sair por lá. E não abra a boca por nada desse mundo.

— Por quê?

— Para não engolir uma aranha.

Lentamente, ela foi despregando do chão, com Bruno quase a arrastando atrás de si. As teias eram imensas e por vezes fechavam quase todo o caminho. Rasgá-las com o rosto era desesperador, ainda mais sem poder enxergar. Subitamente, prendiam-se à pele, aos cabelos e às roupas. Se não possuíam aracnofobia, inevitavelmente esse seria mais um dos medos irracionais a se colecionar.

— Ai!

— Bruno, o que foi?

— Algo correu pelo meu braço. — E o sacudiu violentamente. — O que será que foi?

— Pode ser qualquer coisa, mas uma aranha é muito mais perigosa que uma barata.

— Você que pensa.

— Há algo pior: escorpiões — disse ela.

A aflição de não enxergar um palmo à frente do nariz, tomava agora conta igualmente do advogado, mas sua racionalidade solicitava-lhe calma:

— Meu passo tem oitenta centímetros. Se contarmos cem passos, teremos percorrido oitenta metros, quase o que precisamos.

— Já está contando?

— Sim.

— E quanto andamos?

— Vinte passos, ou seja, dezesseis metros. Faltam apenas... Setenta e quatro, para os noventa.

O pânico insistia em atormentá-la, seriam os 74 metros mais longos de sua vida, mas o braço dado a Bruno fazia-a mais forte:

— Bruno, siga em frente! Eu lembrei agora que Padre Germano disse que não há escorpiões no Seminário. E as aranhas não são venenosas.

— Mas isso foi há vinte anos. As coisas mudam.

Dessa feita, era ele quem estava estático.

— O que foi? — perguntou ela.

— Baratas! Não existe lugar no mundo sem elas. Prefiro escorpiões, pois são os predadores naturais desse bicho asqueroso.

Ela riu:

— Vamos em frente, antes que eu desmaie de novo. Você nem imagina o esforço que estou tendo de fazer.

Seguiram... Trinta... Quarenta... Cinquenta... Sessenta passos.

— E quantos passos agora?

— Setenta. E 7 vezes 8 são 56. Já andamos 56 metros. Faltam ainda 34.

Nora estava com dificuldades de fazer as contas:

— E 34 dividido por... Quanto mesmo?

— Oito!

— Então... Faltam quantos passos?

— Deixa eu ver... 32 dividido por 8 são 4. Faltam pouco mais de 40 passos.

Era uma distância enorme para se transpor sem claridade alguma, mas já tinham avançado mais da metade, assim, não podiam parar para pensar. As teias eram infernais e mais de uma vez Nora sentiu as aranhas trombando em sua testa. Instintivamente eles andavam de cabeça baixa, queixo quase enfiado no tórax. Ofegante, Nora já sentia lhe faltar o ar e a dor do medo irradiava-se pelo braço direito:

— Bruno, não vou conseguir, acho que vou desmaiar. — E em desespero, afastava com a mão direita os insetos, enquanto a outra quase arrancava o braço de Bruno.

— Aguente mais um pouco, vamos!

Pouco à frente, Bruno trombou em algo no chão:

— Tem algo aqui, não sei o que é, mas tenho até medo de abaixar e colocar a mão. Vou tentar saltar.

Sem grande esforço, num passo conseguiu transpor o misterioso objeto, orientando Nora:

— Levante bem a perna.

Nora passou, raspando o sapato no quer que fosse.

— Perdi a contagem, Nora.

— Não é possível.

Prosseguiram no escuro, literal e na contagem. O medo de baratas do noivo era o que sustentava Nora. Ela ria a cada gritinho seco que ele dava. E nisso o pé direito dele trombou contra a parede:

— Meu Deus, não acredito, Nora. Chegamos ao fim!

— E onde está o interruptor? — falou ela, com a boca cheia de fios de seda.

Num último ato de coragem, Nora soltou o braço de Bruno, jogando-se à frente, até encostar as duas mãos na parede que dava para a escadaria. Lembrava-se que o interruptor estava à sua direita:

— Encontrei!

Mas, para seu desespero, a luz não acendeu. Freneticamente, ela apertava o interruptor, entre choros e lamúrias, até dar um grito de ódio e esmurrar o espelhinho de plástico, quebrando-o:

— Não é possível! Não acende.

Lembrou-se que há vinte anos, Padre Germano havia fechado a parede de correr, apertando um tijolo pelo lado de dentro.

— Tem que estar aqui, em algum lugar.

Ambos apalpavam a parede, aflitos, tentando encontrar o tijolo, até que ela inesperadamente se mexeu, forçando-os a recuar. À medida que a porta se abria e a luz invadia o corredor, as pupilas dilatadas ao extremo tornava-os cegos novamente, até que a figura de um homem gordo, de batina, foi-se materializando diante deles.

— Meu Deus, o que aconteceu com vocês?

Estavam cobertos de seda aracnídea, os rostos com manchas amarronzadas, devido ao suor escorrido misturado à poeira; e aranhas andando pelo corpo. Nora abanou-se vertiginosamente, com Bruno fazendo desesperadamente o mesmo.

— Venham comigo! — ordenou o padre.

Não sabiam se podiam confiar naquele padre, pois notaram a correntinha com o pingente da Agnus pendurada em seu pescoço. O padre, percebendo, disse:

— Ah, isso? Confiem em mim! Estou do lado de vocês. Sou um agente duplo.

Com a visão recuperada, Nora reconheceu-o:

— Padre Homero?

— Eu mesmo, filha.

— Como soube que estávamos aqui?

— Depois eu explico. Vamos andando, antes que nos descubram.

Bruno olhou para trás. A luz da entrada na galeria reluzia sobre o objeto que ele havia transposto com um passo. Preferiu não dizer a Nora o que era. Não imaginou ser possível que alguém tivesse morrido ali dentro, sem que se percebesse isso, porque o cheiro da putrefação seria demasiado forte e intenso e alcançaria inevitavelmente a atmosfera, pelos insufladores de ar. Todavia, havia ali um esqueleto!
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Nota:
¹ João, 1,29 e Mateus, 8,8.

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