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𝓤ma vez mais o sinal de pedestres virou para o verde e a passos largos Bruno atravessou a rua da Consolação. Andou mais alguns metros, subindo os degraus de uma escada com piso em granito levigado, parando diante de moderno edifício. Com a visão ofuscada pela luz do sol, reluzindo na fachada envidraçada, avançou mais um passo, para que a porta automática permitisse sua entrada no hall nobre. Parecia antever o diálogo que se seguiria.
"— Olá, boa tarde.
"— Boa tarde, senhor. Que andar deseja?
"— Nono andar. Gostaria de falar com o Sr. Olavo Ravacini."
No entanto, a placa fixada ao painel na parede indicava: "Editora Ravacini – 10º Andar". Após os protocolos de praxe, relativos à segurança, dirigiu-se ao elevador. Durante a subida, em meio a algumas paradas, repassou no celular o estranho e-mail recebido pela manhã.
"De: Olavo Ravacini.
Para: Bruno Pereira de Souza Lobo."
"Olá, Bruno, saudações literárias. Poderia vir até a editora às 15h00? Assunto de seu interesse."
"Cordialmente,
Olavo Ravacini, editor chefe."
Na oportunidade, Bruno não contivera o espanto:
— Que palhaçada é essa, agora?
Pensou em ligar para o sócio, mas uma vez mais ele estava incomunicável, dentro de um avião. Destino? Austrália!
— Coincidência? Sincronismo? E agora José? Vou ou não vou?
A despeito do temor de uma cilada, ao mesmo tempo se sentindo em um filme do qual já conhecia o final, o afã de ter qualquer pista sobre Nora o tornava irracional. Assim, pela terceira vez naquele mês, novamente parado sobre o conhecido meio-fio, só pisou a faixa de pedestres quando teve certeza de haver tempo para atravessar a rua, sem pressa — e isso só se deu quando o sinal indicou "siga". Cruzou a Consolação tão rápido, que cogitou se inscrever na próxima São Silvestre. Os degraus levigados já o conheciam e não se intimidaram com seu pisar firme, mais determinado naquele dia, mas evitaram olhar para cima e serem ofuscados pela luz do sol, inevitavelmente reluzindo sobre a fachada envidraçada.
Era um déjà-vu. Tinha atravessado o mesmo ponto da rua da Consolação, andado sobre a mesma faixa de pedestres e até cumprimentado os degraus levigados de granito. As folhas da porta automática envidraçada quase lhe bateram continência.
— Olá, Júlio, tudo bem?
— Senhor? Como é mesmo seu nome?
— Bruno. Ah!, e vejo que o recepcionista é o mesmo. Tudo bem, Roberto? O emprego novo, como está? Se saindo bem?
O atendente via e atendia a tantas pessoas por dia, que não se lembrava mais de Bruno, estranhando a intimidade. Depois Júlio lhe refrescaria a memória: "É aquele, da editora", mas enquanto isso Bruno olhava para o painel na parede. Lá havia nova placa, dessa feita em andar superior: "Editora Ravacini – 10º Andar".
— Olavo Ravacini enfim subiu na vida — comentou.
Ao chegar no décimo andar, um choque: o mesmo cenário! Ali estavam novamente o estilo retrô, a simplicidade dos móveis, a mesma mesa e a poltrona em que se sentara, tudo no mesmíssimo lugar. Não fora a diferença de andar, seria como ter entrado no túnel do tempo.
— E sem atendente! Será de novo a covid?
Não havendo alternativa, sentou-se e esperou. Logo, pela mesma porta de antes, surgiu o mesmo homem, meia idade, postura ereta. Bruno enfezou-se:
— Ravacini!, ou seja lá quem você for!, que palhaçada é essa? Eu devia ter vindo acompanhado da polícia.
Erguendo-se, ficou quase nariz a nariz com o editor fake:
— Quem é você, afinal? E o que quer de mim? Onde está Nora?
Sem dizer qualquer palavra, Ravacini conduziu-o uma segunda vez à sala de reuniões, ofereceu-lhe água e café, cujos recipientes repousavam como dantes sobre uma bandeja na mesma pequena mesa. O editor iniciou:
— Sr. Bruno, está inteirado sobre meu caso?
O advogado sorveu o café, seguido de um gole d'água:
— Dessa vez mais do que nunca. E muito puto, se quer saber! Qual é o motivo de toda essa encenação? E Nora quem é? É mesmo filha de Aziz? Sua aliada ou inimiga? E onde ela está?
Ravacini permanecia quieto. Bruno prosseguiu o desfiar do rosário:
— Só me faltava agora o Aziz entrar por aquela porta. Mas... Você próprio não seria o Aziz? — E confuso, arrematou: — Não! Você é o Manolo!
— Manolo? Um espanhol com sotaque mineiro?
— Claro, no manuscrito foi dito que talvez Manolo tivesse facilidade para imitar, tanto que ele falou em português com Padre Germano, parecendo brasileiro.
— Verdade, foi dito mesmo, mas você não acha que seria demasiado demais, eu ser o Manolo?
— E por que não?
— Bruno, Bruno... — E riu, sarcasticamente. — Raciocine!
— Confesso que já nem sei mais onde termina a verdade e começa a mentira. Aliás, nunca soube.
— Pense, se você não sabe onde está a mentira, como sabe que Padre Germano falou toda a verdade? Mas calma, explicarei tudo, a seu tempo.
Bruno estava cada vez mais irritado. Arrancou a máscara de proteção contra o coronavírus, em claro nervosismo:
— Assim espero. E olha, hoje eu não quero a versão do 'chapeuzinho', mas a do 'lobo mau'!
— Calma! Sobre a minha versão anterior não existe nenhuma mentira, no máximo alguns fatos omitidos ou romanceados, assim, não preciso mais voltar a ela, isso porque agora você já investigou tudo e já possui todas as respostas possíveis, então, vamos seguir nossa reunião do ponto em que paramos. Há muito que explicar ainda.
Bruno não se conteve:
— Ponto em que paramos? Rapaz, você é um sádico! E eu um trouxa! Mais uma vez estou aqui para te ouvir, feito palhaço. Devia me levantar daqui e lhe sentar a mão.
Ravacini era sempre um sujeito muito impassível, mas, para surpresa de seu interlocutor, pela primeira vez fez ressoar veementemente a portentosa voz:
— Sem violência, Bruno! Escute-me!, apenas isso!
Bruno aquietou-se, intimidado:
— Está bem!
Ravacini contemplou-o placidamente e seguiu:
— O motivo nunca foi para saber se eu correria o risco de um processo, caso publicasse o manuscrito. Nem foi também para colocar uma empresa idônea ou pessoas idôneas na pista do documento "Q", muito embora isso até seja fundamental, para que seu eventual resgate se dê de forma segura, sem desvios de finalidade. A questão sempre foi outra...
— E qual foi?
— Simples: eu precisava que o corpo de Domingos Casqueira fosse exumado!
— Resume-se a isso, então?
— Acha pouco? Nem preciso lhe explicar a dificuldade em se periciar os restos mortais de um cadáver.
— E qual o motivo? Encontrar o evangelho "Q"?
— Não, pois essa já é outra questão, que passa pelo enigma proposto por Omar, nunca resolvido: "As chagas de Cristo ferem os corações mais duros e aquecem as almas mais frias", mas como lhe disse, o objetivo nunca foi esse.
— Exumar o corpo, então? Para quê, afinal?
— Era preciso que vocês comparassem o DNA dos autos com o do morto, para que ficasse comprovado que o arqueólogo estava mesmo naquele túmulo, mas, para chegar nesse intento, eu precisei montar toda uma 'cena'...
— Ainda bem que reconhece...
— ... cena esta que daria à história credibilidade e solidez, conduzindo-os ao inevitável ponto de: "Temos de abrir aquele caixão". Tinha de haver um real motivo, uma propensão justa, para a obtenção da ordem judicial.
Os sentidos de Bruno já não conseguiam raciocinar com clareza:
— Olha, espero sinceramente que a versão dos fatos que te pedi, desde o início, seja hoje enfim explanada.
Ravacini buscou ser mais dinâmico acerca das revelações necessárias. E tomou fôlego:
— Vamos lá, você sempre pede que eu inicie pelo começo... Pois bem, iniciemos pelas viagens de Jorge... Nunca foram acaso, nenhuma das duas. Em geral eu não acredito no acaso, mas nas ações humanas.
— Como assim?
— Ele viajou novamente para a Austrália, não é? Pois bem, esse cliente australiano é amigo meu. De fato, esse meu amigo precisa dos vossos serviços para um negócio aqui no Brasil, mas eu dei um empurrãozinho... Indiquei a Fontana Lobo.
Bruno balançou a cabeça, com um aperto de lábios:
— Nem sei por que já não me surpreendo mais... E por que tirar Jorge do caminho?
— Eu precisava ter somente você na jogada.
— Mas por quê?
— Hoje, para não atrapalhar nossa conversa. Da primeira vez, porém, porque ele é casado e não o queria envolvido com Nora. Você era a pessoa perfeita: honesto, boa índole, respeitado, bem estabelecido e solteiro. E Nora é irresistível, sabia que você se apaixonaria por ela.
— Agindo como cupido, Ravacini? — Bruno enfim soltou um sorriso. — E não posso negar: essa foi a melhor ideia em toda a sua história... Mas por que você me queria apaixonado por ela?
— Simples: para ela estar junto de você o tempo todo.
— Para me furtar, não é, me dopando e levando consigo o laudo da exumação?
Ravacini sorriu:
— Elementar!
— E a quem interessaria confirmar a morte de Domingos?
Houve um silêncio. Ravacini sempre gostava do suspense. Bruno insistiu:
— Vamos, diga! — O punho fechado chocando-se contra a mesa.
Ravacini levantou-se e andou pela sala:
— Interessaria somente a mim!
Bruno finalmente entendeu a questão:
— Mas claro! Só a você interessaria, porque você é Domingos Casqueira! — Seus olhos azuis nunca estiveram tão brilhantes. — É você, não é?
— E quem mais eu poderia ser, senão o próprio?
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— Domingos Casqueira, o tempo todo! Não posso acreditar... Mas como, se comprovamos através da necrópsia que havia um cadáver naquele caixão, vítima de um disparo na cabeça, morto há vinte anos, cujo DNA bateu com o dos autos do processo, confirmando serem seus os despojos naquele túmulo?
— Não consegue imaginar?
— O quê? Vai me dizer que vocês falsificaram o exame! Como? Nora esteve o tempo todo comigo e houve todo um aparato policial e judicial...
— Santa ingenuidade — ajuizou, balançando a cabeça de um lado a outro e apertando os lábios. — Não foi o laudo atual, o falsificado. Falsificamos o primeiro, o de vinte anos atrás.
Bruno estava cada vez mais atônito:
— Mas como? Documentos físicos e originais depositados legalmente são protegidos pelo Poder Judiciário e têm medidas de segurança extremas, tudo para se evitarem fraudes ou furtos. Além disso, não podem ser retirados do arquivo, somente são fornecidas cópias autenticadas, como a que eu próprio requisitei. Como vocês conseguiram acesso aos documentos, para substitui-lo por um falso?
Domingos Casqueira riu:
— Pense! Se estou vivo, é porque meu tio mentiu. Se tio Jonas mentiu, é porque falsificou o exame... A questão é: em que momento ele fez isso?
— Meu Deus, como vocês são diabólicos. Ele fraudou o documento antes do processo ser baixado, enquanto ainda estava com ele na delegacia... Então o documento original arquivado nos autos e que nós obtivemos uma cópia para que fosse comparado ao atual...
— Já era falso na origem, mas tido como verdadeiro, porque meu tio, uma vez delegado, é investido de fé pública.
— E por que fizeram isso?
— Para a eventualidade de uma exumação, como a que eu próprio induzi agora. Na época, eu fugia da Ordem. E hoje, ainda continuo fugindo.
"Eu precisava que assim fosse, pois caso um dia o corpo fosse exumado, como de fato ocorreu, haveria uma 'prova' depositada legalmente, relacionando o DNA do sepultado com o de meu tio, de forma positiva, comprovando a minha morte. E essa prova naturalmente teria que bater, caso um novo exame fosse realizado nos restos do cadáver."
— E como vocês fizeram isso? O DNA de um estranho coincidir com o do delegado Jonas? Já não passa de 10%, a chance entre parentes. Entre estranhos, então, creio ser impossível.
— Explico...
"A ideia básica foi que um exame de DNA daria mais crédito à minha 'morte'. Lembre-se que queríamos tirar do caminho Javier e nada melhor do que eu ser dado oficialmente como morto. Então, tio Jonas solicitou o exame, que apesar da pouca probabilidade, resultou positivo. Foram apenas dois fios de cabelo: um meu e um dele. Contudo, se algum dia houvesse uma exumação, a farsa do suicídio seria descoberta, pois o exame seria então feito sobre a amostra do sepultado e não mais a minha.
"Assim, antes de anexar o exame verdadeiro ao processo, ele encomendou uma falsificação: do verdadeiro foram retirados nossos códigos genéticos e lá substituídos o do cadáver e um outro, inventado, que supostamente seria o de tio Jonas, fazendo assim a ligação entre ele e o morto. Dessa forma, o laudo arquivado sempre conferiria com qualquer amostra coletada a posteriori, desde que fosse feita no morto e não em tio Jonas, naturalmente. Soube por Nora que nos ossos não foi mais possível verificar o DNA, mas nos fios de cabelo, sim. Uma vez mais, tive sorte. A primeira foi quando meu DNA bateu com o dele, apesar de ele não ser meu pai. A segunda, agora."
— Meu Deus!, você merece mesmo um belo processo criminal, estava certo em nos chamar. Mas... e quem morreu em seu lugar?
— Ora, Bruno, não consegue deduzir?
Bruno estava tão perplexo com todas as revelações, que sequer conseguia pensar. Casqueira prosseguiu:
— Na história toda somente uma pessoa ficou desaparecida e ninguém nunca mais soube de seu paradeiro.
— Manolo?
— E quem mais? A medalhinha no pescoço era uma boa pista, pois eu jamais colocaria aquela medalha em mim mesmo, mas Manolo a usava e com orgulho. Ele pertencia à Ordem, lembra-se? Só que havia um problema...
— Qual?
— Quando meu tio pensou no exame, não havia material colhido do morto, para utilizar como base na adulteração. Manolo já havia sido sepultado como Domingos.
— E aí?
— Aí foi que eu me lembrei do igal!
— Do igal?
— Sim, a cordinha que os árabes amarram o guthra, o lenço de cabeça. Lembra-se do manuscrito? Quando sou amarrado com os igals de Manolo e Enrico, no aeroporto?
— Sim...
— Pois bem, eu havia guardado os igals e o guthra que eles haviam me amarrado e amordaçado. Num deles havia um fio de cabelo do espanhol.
Bruno desferiu um murro no ar:
— Puta que o pariu! Vocês são mesmo demoníacos.
Domingos sentou-se novamente, rindo, embora um sorriso amarelo, pois toda a história era carregada de muita dramaticidade.
꧁༺༻꧂
Havia ainda muitas dúvidas:
— E o sinal de Kossu? Como vocês fizeram para Manolo ter um espasmo na mão?
— Essa foi de mestre, embora cruel, devo admitir! Quando eu subi ao segundo andar e entrei no escritório, e assim que Manolo conseguiu arrombar a porta da sala e entrar na casa, subindo atrás de mim, já no escritório, ele foi surpreendido por meu tio com um pano embebido em clorofórmio.
"Nos filmes, as pessoas desmaiam na hora, mas isso é puro mito. Para que alguém desmaie é necessário cheirar o produto ao menos por 5 minutos, sem intermitência. Todavia, o contato tão próximo deixa a pessoa tonta. Ao cheirar o clorofórmio, Manolo não desfaleceu e assim continuou segurando sua arma, embora muito confuso. Tio Jonas o sentou na cadeira, ergueu sua mão até a têmpora e quando o espanhol começou a voltar a si, o tio engatilhou a arma e enfiou seu próprio dedo sobre o de Manolo, por dentro do gatilho. E atirou! O espasmo ocorreu pelo desespero do espanhol (e isso aliado aos resíduos do disparo em sua pele e roupa), resultaram na seguinte perícia: suicídio!"
Bruno estava abismado:
— Quando eu digo que vocês são diabólicos... E que frieza, meu Deus, mas seu tio ficou cheio de sangue, como fez?
— Ele vestiu luvas e uma capa de chuva, que ficou sim, manchada de sangue e miolos, mas nos livramos dela.
Bruno não se continha:
— Meu Deus! E sem querer o Manolo te prestou um grande favor.
— Ele me devia essa, não?
— Não lhes doeu a consciência, fazer o que fizeram?
— Foi legitima defesa. Era ele ou eu!
— E o pitbull já tinha matado Enrico...
— Exatamente. Por isso a frase: "O machado está posto à raiz das árvores. Toda árvore que não der bom fruto, será cortada e lançada ao fogo". Duas eu já colocara ao chão: Enrico e Manolo. Três, não é? A primeira foi na estrada do Esmeril, para segurar o verdadeiro Ravacini e lhe entregar o manuscrito. Sim, porque tudo aquilo foi verdade!
꧁༺༻꧂
— Começo a entender... Jonas viu uma grande oportunidade de 'te fazer morrer' e com isso tirar Javier do teu encalço... Mas agora fico com uma suspeita, a morte de Gasly...
Casqueira deu um suspiro:
— Ele foi a quarta árvore, na verdade, a primeira, pois foi 'derrubada' antes das outras. Fui eu, sim! Eu preparei aquela armadilha, mexi nos freios do carro.
— Mas quando?
— Foi outro golpe de sorte. O avião que me trazia para o Brasil teve que fazer um pouso forçado em Paris, como mencionei no manuscrito, e ali ficamos uma noite e quase mais um dia, hospedados num hotel, aguardando o novo voo. A propriedade de Gasly ficava em Beauvais, a 1 hora de carro. Assim, eu fui até lá e encontrando caminho livre, fiz o serviço. Sabia que somente ele dirigiria aquele carro, um dia qualquer. Era só questão de tempo.
"Mas são todos crimes prescritos, Gasly, o 'eucalipto' da estrada, Enrico e Manolo."
— E você realmente sabia dos planos deles? Essa pista eu peguei, quando você fala das "ligações grampeadas e a vigília de seus perseguidores"...
— Enfim dando uma adentro, não é, Sr. Bruno? Ufa! Sabia sim e foi aí que virei o jogo. Ideia do tio Jonas.
Bruno ficou por alguns instantes, pensativo:
— Mas... Se Manolo não saiu de lá vivo, por que razão Javier não associou o desaparecimento dele com uma possível armação para o suicídio?
Domingos comentou:
— Excelente pergunta! De nada adiantaria tudo isso, se houvesse essa suspeita. Vejo que o raciocínio realmente voltou-lhe. Pois bem, aí entra a questão da convergência linguística. Não foi Manolo, a se passar por Ravacini, mas eu, a me passar por Manolo.
— Você?
— Sim. Deve lembrar-se do manuscrito, que num dado momento imito Gasly, para divertir Lea. Pois então, vali-me dessa facilidade e entrei em contato com Javier, passando-me por Manolo, dizendo que o plano dera errado: Enrico estava morto e Domingos metera uma bala na cabeça. E que eu estava sendo perseguido pela polícia.
— E jogou com a sorte...
— Sim, e ela esteve ao meu lado, pois ele acreditou, tanto que só há pouco tempo voltou à carga contra mim. Certamente imaginou que Manolo tivesse sido morto e jogado numa vala comum, até se dar conta de que poderia ser o próprio sobrinho, naquele túmulo.
— E por que você resolveu narrar a própria morte?
Ele riu:
— Acreditou mesmo nisso? Ainda que possível, seria muito improvável que eu tivesse feito isso. Na verdade, acrescentei tudo aquilo depois, na cópia que lhe forneci. O manuscrito original termina no capítulo 17. Seu assistente, o Mário, tinha razão.
— Mário? Até disso você sabe? Ah, sim, claro. Nora te contou.
Riu novamente:
— Claro!, mas eu só fiz isso para os instigar ainda mais a fazerem a investigação. Gostei do que você disse a ele: "Minha carta de despedida".
"Mas, ainda que eu pudesse mesmo ter escrito tudo antes, eu não iria inserir no manuscrito informações que pudessem colocar em cheque a minha própria morte, na hipótese de ele ser roubado das mãos de Ravacini, pela Ordem. O verdadeiro final do manuscrito, portanto, está no capítulo 17, parágrafo 45. Se lido pela Ordem, daria mesmo a entender que eu me suicidara. E sem comprometer Ravacini. Mas, de qualquer modo, eu sabia de antemão tudo o que aqueles dois imbecis iriam fazer, após um ligação que Manolo fez a Javier. Àquela altura, Gasly já estava morto."
E então, entregou a Bruno duas brochuras muito antigas:
— Eis o verdadeiro manuscrito, aquele que Ravacini teve um dia em suas mãos. Escrito à mão livre e sem o capítulo 18, acrescido depois.
Bruno o pegou e era como se recebesse o próprio documento "Q", afinal, todo aquele material já se tornara uma verdadeira lenda.
— E por onde você andou todos esses anos? Por que somente agora resolveu mexer no vespeiro novamente? Aquela história de crise na editora e no país e tudo o mais...
— Aquela seria a versão se eu fosse o Ravacini, mas no meu caso, foi a minha doença! Eu fiquei à beira da morte e foi então que Lea, que é muito rica, me amparou, levando-me clandestinamente para Dubai, onde fui operado por aquele neurocirurgião, o Dr. Saul, está lembrado? Ele, por sua vez, pagou uma fortuna para se livrar do Hamas. Demorei anos a me restabelecer. Por isso fiquei desaparecido por tanto tempo. Por que acha que manco da perna?
— Achava que fosse o acidente na estrada do Esmeril...
Casqueira sorriu:
— Se eu fosse Olavo Ravacini, sim. Mas sou Domingos Casqueira.
꧁༺༻꧂
O arqueólogo prosseguiu:
— Até o início de 2019 eu e Lea vivíamos a toda hora mudando de residência, para despistarmos Javier, mas foi justamente nesse ano que tudo começou a dar errado...
"Primeiramente, obtiveram uma informação de que eu poderia estar vivo. Depois, descobriram que Lea era Nora e assim começaram a monitorá-la, tanto que Javier esteve em uma de suas palestras, na Espanha... Não satisfeitos, a sequestraram."
Bruno sentiu um aperto no peito. Domingos prosseguiu:
— Javier ameaçou matar a mãe dela, caso ela não colaborasse. Exigia saber o paradeiro do documento "Q". Tivemos enormes dificuldades em despistá-los, a fim de planejarmos tudo, mas depois veio a pandemia, o mundo ficou paralisado, lock down e mortes e até Javier teve que recuar, voltando à carga somente no início desse ano.
— E onde está Nora? O que ela fez com o laudo?
— Foi o preço que ela teve de pagar a Javier. Ele exigiu uma prova de que eu estava realmente morto.
— E Javier chegou a ler o manuscrito?
— Não, nunca. Ninguém soube dele, além de Ravacini e você. E Lea, naturalmente.
— Então por que profanaram o túmulo de sua mãe? Pensei que fosse porque tinham lido o manuscrito.
— Ao longo dos anos investigaram a fundo os passos de Omar, tentando imaginar onde ele poderia ter escondido o códice. Não foi só esse túmulo que profanaram, o de Aziz também.
— Mas não profanaram o teu.
— Acredito que iriam fazê-lo, mais cedo ou mais tarde, daí a minha pressa pela exumação.
Intimamente, Bruno suspirou aliviado. Nora enfim não era nenhuma criminosa e estava explicado o motivo de ter furtado o laudo do cofre.
"Se ela tivesse dito..."
Domingos parecia adivinhar-lhe os pensamentos:
— Ela nada pôde dizer a você, senão colocaria a tua vida em risco. Por isso fugiu, sem dar maiores explicações.
Bruno estava indignado:
— Você fala em não colocar vidas em risco, mas me colocou nessa enrascada sem o meu consentimento. E o que lhe garante que a Ordem também não virá atrás de mim?
— Não posso garantir. Infelizmente, não consigo ter o controle de tudo.
— Você é um inconsequente, isso sim — rebateu Bruno. — E Nora corre perigo. Temos que fazer algo, chamar a polícia.
— Na polícia também pode haver infiltrados da Ordem. Não se esqueça do que passei na Turquia.
Diante daquele quadro, o advogado sentia-se impotente:
— Como pode ficar tão calmo, com Nora em risco?
Domingos gargalhou:
— O que não faz o amor... Mas ela é mesmo especial, também já fui apaixonado por ela, mas ela nunca teve olhos para mim.
Bruno sentiu-se enciumado:
— Ainda bem!
De repente, Bruno teve um estalo:
— Mas cadê seu nariz de tucano, o nariz adunco que vi nas fotos antigas? Você está diferente!
Ele sorriu:
— Cirurgia plástica, meu caro. Fiz várias correções e mudei meu rosto, tudo para fugir da Ordem. E estou bem mais velho, obviamente.
Casqueira levantou-se uma última vez, dirigindo-se à porta. Antes de sair e fechá-la atrás de si, declarou:
— Ah, algo não expliquei, como consegui o meu manuscrito de volta; e como tive acesso aos cadernos do verdadeiro Ravacini, que usei para o meu 'teatro' junto a você...
— Sim, é verdade. Como?
— Simples: Ravacini morreu na estrada da mineradora e meu tio foi chamado para fazer o boletim de ocorrência (naquele dia, ele estava de plantão em Congonhas). Daí ele encontrou no carro, não só o meu manuscrito, mas também o manuscrito do editor, com todas as anotações, as conversas entre ele e Belo, e também comigo. Repassou-as a mim, foi isso.
"Uma última consideração: você tem uma grande história nas mãos. Chegou a hora de todo mundo saber a verdade. Dane-se a Ordem, Javier e tudo mais, cansei dessa vida de nômade. Quem tiver de encontrar 'Q', que o encontre. E fim de papo! Como teria dito o filósofo grego Epiteto: 'Faça o que tem de ser feito', publique a história e seja feliz. E agora sim: adeus. Foi um prazer te conhecer!"
E sem mais delongas, saiu, para nunca mais.
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