Q

𝓠uando raiou o sexto dia, posterior à incrível revelação de que a Editora Ravacini não passava de fake — e também de mais uma arrebatadora e amorosa noite entre Bruno e Nora, Mário já tinha confirmado que o nono andar do edifício de número 919, da Consolação, havia sido mesmo alugado por um produtor autônomo de vídeos. Um cenário havia sido montado, com móveis e divisórias sendo fornecidos por uma locadora, que não tivera contato algum com qualquer pessoa física, tendo sido o depósito da prestação de serviços feito diretamente na 'boca do caixa' — e adiantado. O produtor, no final das contas, também era fake, pois desaparecera sem deixar rastros.

Havia muito que se verificar e o círculo pessoal de influências de Jorge Fontana fazia falta. O sócio majoritário da Fontana Lobo ainda estava na Austrália e chegaria por aqueles dias. O trabalho em Sidney estava intenso e pouco sabia ele dos acontecimentos em São Paulo. De qualquer forma, para que obtivessem informações junto às embaixadas da Turquia, França, Itália e Espanha, Bruno acionara novamente o ex-delegado Basílio, possuidor de contatos tanto no Itamaraty, quanto na Polícia Federal.

— Enviem ao delegado Basílio¹, com os cumprimentos da Fontana Lobo. — Um Sesmarias tinto, seco, safra 2020. — Pela passagem de seu 76º aniversário e pela ajuda no caso.

Dessa forma, alguns dias depois, um detalhado check list foi produzido e criteriosamente repassado por Bruno e Mário, quando então foram checados e validados muitos dos fatos apresentados no manuscrito, tais como: filiações e nomes, cidades e países, datas e eventos, propriedades e empresas, não se encontrando discrepâncias consideráveis do texto com relação à realidade. As verificações se estenderam também às declarações do falso Ravacini.

Ao que tudo indicava, o manuscrito, bem como a história do falso Olavo, refletiam mesmo a verdade — no que se referia às pessoas físicas e jurídicas. Porém, acerca daquilo que realmente importava, o documento "Q", ainda não havia nada que indicasse a história não passar de fragorosa ficção.

Assim, o caminho deles passava necessariamente por Congonhas, Minas Gerais, mais especificamente por um determinado sítio no distrito do Esmeril. E para lá se dirigiram. A estrada em que supostamente Olavo Ravacini batera o carro pela primeira vez, ainda continuava sem asfalto, vinte anos depois.

— Mas tem opção — disse um congonhense. — Aumenta um pouco a viagem mas compensa.

A estrada que o GPS indicava era a do acidente, mais curta, mas quase toda em terra e passando pelas áreas de mineração.

— Não vão por aí, não... Vão por Santa Quitéria e depois Jeceaba.

Outro munícipe informou:

— Ah, a cachaça Liberdade é bem famosa. Perguntem lá que todo mundo conhece. O delegado Belo também é um congonhense ilustre. Está aposentado e mora lá.

Devido a uma queda de sinal, acabaram passando a entrada do sítio, chegando ao povoado do Esmeril. Andaram por ali, aproveitando o passeio. Bruno pôde então 'rever' tudo aquilo que Olavo descrevera tão perfeitamente... A escola, a colina, o cruzeiro... O cemitério... Subiram até o ponto alto junto à cruz, avistando as cidades ao longe...

— Segundo Olavo, acho que daqui se avista Lafaiete. Deve ser ali.

— Bruno, devo lembrar que Olavo está morto. Vamos esquecer o falso Olavo e procurar logo o tio Belo?

Ele emendou ironicamente:

— Sim, vamos, vai que chove e não estou a fim de engolir toda a água que vier.

— Como assim?

Ele riu:

— Outra hora te explico.

Não foi difícil encontrar o lugar. Segundo nova informação, apenas dois quilômetros voltando pela via de acesso ao vilarejo, cujo trecho era todo ele asfaltado, até o município de Jeceaba. A um terço do caminho, entraram à direita e desceram por uma estrada de terra.

O ex-delegado apareceu capenga, apoiado numa bengala, a careca refletindo os raios de sol na pele suada. Feitas as apresentações, Bruno e Nora disseram estar interessados em comprar a cachaça. Assim, Belo mostrou toda a propriedade, incluindo no pacote um trago da famosa pinga. E de uma safra especial, envelhecida em tonel.

Belo ergueu seu pequeno copo em cumprimento aos dois. A luz passou pelo cristalino líquido, já um pouco amarelado pelo envelhecimento, mas sem qualquer resíduo, totalmente límpido, como toda boa cachaça deveria ser, segundo ele.

— Sintam o aroma, meus queridos — enalteceu. — Cachaça boa não arde no nariz, nem faz chorar. Mas vou lhes ensinar a tomar, caso não saibam... Tomem seu gole e deixem a bebida um pouco na boca. Vai quebrar o agressivo do álcool e não vai descer chamuscando, a menos que vocês queiram.

Ele exemplificou:

— Ah! Vão ver que minha cachaça é tão boa que não queima na degustação e o sabor continua vivo.

Bruno seguiu o ritual. O agradável aroma, frutado e adocicado, foi confirmado pelo paladar. A pinga desceu suave, mas a temperatura em sua garganta e peito subiram consideravelmente.

— Uau! — exclamou. — Excelente!

Nora nunca fora afeita a bebidas alcoólicas fortes, mas para não desfeitear o anfitrião, tomou de um gole só, sem o procedimento de saboreio. Sentiu tudo queimar, engasgou-se e tossiu. Belo riu:

— Cuidado, moça, não vá com tanta sede ao pote. — E gargalhou.

Bruno ia experimentando um déjà-vu, tão viva era a descrição do personagem Olavo Ravacini em sua mente. Os firmes mordentes de ferrovia sob os pés, na subida da escada para o chalé, ele já os tinha subido um dia. A mesa de madeira em peça única e convidativa para um café com pão de queijo, nela já havia se sentado outrora. A visão da plantação dos eucaliptos, o lago da propriedade, tudo muito presente em sua retina mental.

À mesa, aquela mesma em que tio e sobrinho tinham conversado um dia, ele iniciou a prosa:

— Deixa eu te perguntar, Sr. Belo... O senhor é amigo do delegado Basílio?

— Basílio? Basílio de Almeida? Lá de São Paulo? Santo Deus! Gente boa demais! Ele já esteve aqui uma vez. E me ajudou num caso em 2010², em Belo Horizonte. Nos falamos sempre. Foi ele quem indicou a cachaça?

Com um amigo tão ilustre em comum, a conversa fluiu solta. Experimentando um pão de queijo que derretia na boca, Bruno perguntou:

— O senhor tem um sobrinho chamado Olavo?

Belo retesou a tez:

— Olavo?

— Sim, Olavo Ravacini.

Mesmo desconfiado, como todo bom mineiro — e policial, confirmou:

— Tenho sim, quero dizer... Tive!

Bruno e Nora entreolharam-se.

— Então ele morreu mesmo... — Bruno buscava confirmar.

Belo assentiu, com um leve e tristonho gesto facial:

— Sim, faz vinte anos! Mas não estou entendendo o motivo dessas perguntas... Como sabem do Olavo?

Bruno indagou:

— E como foi que ele morreu?

— Na estrada da mineradora, indo para Congonhas. — Os olhos de Belo lacrimejaram. — Passou uma boa temporada aqui comigo, foi muito bom.

— E durante esse tempo todo, houve um acidente na estrada, por causa de uma árvore derrubada?

A pergunta não saíra espontaneamente, fora planejada. As faces de Belo estamparam perplexidade:

— Ei, como é que sabe disso? Quem são vocês, afinal? Que querem com todas essas perguntas? Como sabem do assalto? Essa conversa de comprar pinga... Tudo lorota, não?

Bruno respirou fundo:

— Calma, delegado. Vamos explicar. Confie em nós.
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Notas:
¹ Delegado Basílio: Personagem criado pelo autor, protagonista em suas histórias.
² "Quatro Vezes o Inesperado, Tomo III: Crime à Mineira", Scortecci Editora, 2002. Disponível na Amazon.

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