O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 9
𝓘𝓼𝓽𝓪𝓶𝓫𝓾𝓵, 𝓵𝓪𝓭𝓸 𝓸𝓬𝓲𝓭𝓮𝓷𝓽𝓪𝓵
𝟡 Adentrei a sede da Gasly Departaments, temeroso. Talvez nem devesse mais colocar os pés ali, pois os dois que perseguiam Omar na Cisjordânia já deviam ter dado com a língua nos dentes. Para piorar, dei de cara com Gasly. De estatura mediana, ligeiramente obeso, cabelos grisalhos e olhos verdes, saudou-me:
— Bonjour, mon ami. E então? Gostou de Jericó? E o Khirbet Qumran, teve sorte?
Gasly devia agora pensar que eu sabia onde estava o documento "Q". De qualquer modo, o material que eu trazia talvez amansasse a fera. Devidamente embalados e catalogados, coloquei sobre a mesa um pedaço de pergaminho (do tamanho de um cartão de crédito), bem com uma lasca de um legítimo cântaro hebreu de 2000 anos (assim eu esperava). Como arqueólogo e devidamente autorizado pelo Estado de Israel, podia fazer o translado de pequenos artefatos para a Europa, a fim de serem estudados, desde que declarados e liberados pelas disposições alfandegárias.
— Um achado importante, principalmente esse retalho de pergaminho — disse ele. — É claro que ali tudo pertence ao Estado de Israel, mas a notoriedade do feito a de ser tão importante quanto a notoriedade do achado, não é mesmo? Tudo pela honra e glória da descoberta.
Palavras bonitas, mas nada que ele dissesse, dali por diante, soaria novamente natural aos meus ouvidos.
— Ah, Domingos, deixe eu lhe apresentar... — E deu um grito: — Manolo! Enrico!, por gentileza.
No fundo da loja havia dois homens, de costas para nós. Quando se voltaram, logo percebi, estava perdido: eram os mesmos que eu tinha visto em Qumran, a espreitarem Omar. Como tinham conseguido chegar antes de mim?
Ao se aproximarem, Gasly dirigiu-se ao mais baixo:
— Esse é Manolo, espanhol de Salamanca, primo do famoso Javier Loyola. Conhece o Javier, Domingos?
O coração queria saltar pela boca e eu quase suava frio. Precisando manter a calma, invoquei a frieza do velho Omar:
— Não, não faço ideia.
O espanhol adiantou-se ao francês:
— Ele é o fundador da Ordem Agnus, não conhece?
— Já ouvi falar, mas não sei do que se trata.
Apertei-lhe a mão. Em seguida, Gasly dirigiu-se ao outro:
— E esse é Enrico, direto de Verona, Itália.
Com um sorriso irônico nos lábios, ele me cumprimentou. E foi então que observei: a gargantilha de ouro de Jerome Gasly! Tal qual dito por Omar, uma medalhinha, nela cunhada uma ovelha e uma cruz. Pior: Manolo e Enrico também as possuíam, muito embora a de Enrico não estivesse visível, uma vez por dentro da camisa. Comprovado estava, portanto, que espontaneamente — e por minhas próprias pernas, eu adentrara a cova dos leões. O curioso é que a dissimulação dos três parecia combinada, talvez para irem me dando corda. Com certeza tinham em mente que Omar me dera instruções e era cabível, por enquanto, apenas me vigiar. Gasly então sugeriu:
— Que tal irmos todos almoçar? Conheço um chef que faz um maravilhoso döner kebab, com carne de cordeiro.
Eu conhecia o prato. Kebab — "grelhados a carvão", e quando preparado em espeto giratório, döner kebab, nada mais do que carne fatiada, servida no recheio de um pão. O acompanhamento: legumes, cuscuz, arroz e molhos.
Resolvi esquivar-me:
— Tenho um compromisso, infelizmente não posso ir.
— Ora, vai fazer essa desfeita, Domingos?
— Sinto muito, Gasly. Fica para outra hora.
Aceitando ou não, já me via a girar no espeto, sendo eu próprio o recheio do pão.
𝓘𝓼𝓽𝓪𝓶𝓫𝓾𝓵, 𝓵𝓪𝓭𝓸 𝓪𝓼𝓲á𝓽𝓲𝓬𝓸
Ainda que resolvessem me seguir — e com certeza o fariam, decidi que precisava procurar o filho de Omar o quanto antes.
Pedi informações e rapidamente segui para o outro lado da cidade, logo passando defronte à monumental entrada da Marmara Universty, na avenida Mahir iz Cd., caminho para o Bazar Khaled. Ao chegar na Bestekar S. K. Sk., estacionei o carro e procurei o antiquário, onde fui orientado a bater numa porta ao lado, que dava diretamente para o escritório de Aziz. Feito, atendeu-me um turco, trajando vestes árabes e que muito se parecia com Omar.
— Aziz Khaled?
— Eu mesmo! Domingos Casqueira? Meu pai telefonou lá de Jericó e avisou que você viria.
— Que bom! E como ele está?
— Infelizmente, morto!
Gelei:
— Morto?
Eu bem sabia!, não podia ter deixado Omar sozinho e à mercê daqueles dois. Enquanto salvava minha pele, eles davam fim no pobre Khaled.
— Sinto muito, Aziz. Nem sei o que dizer.
— "O que Allah recebe é Dele e o que Ele dá é Dele. Tudo tem um prazo fixo com Ele" — recitou. — Fico-lhe agradecido. Seja bem vindo. Entre.
Uma serviçal nos trouxe bebidas numa bandeja (sem álcool, tal qual prescrevia o Islamismo). Em sinal de tristeza e luto, ela vestia abaya e hijab¹ pretos. Na Turquia não havia os rigores do niqab ou da burca², uma vez que o grau de exigência variava em conformidade com a cultura e o lugar, bem como de acordo com as escolas de jurisprudência islâmicas.
Pela crença islâmica, Alá havia determinado que as mulheres cumprissem o hijab (o ato de cobrir a cabeça e o corpo, dentro do chamado "requisito de modéstia", extensível também aos homens), objetivando avaliação pela inteligência e habilidades, não pela aparência e sexualidade. Belo símbolo de cultura e fé, mas quando tornado impositivo, um instrumento de opressão e morte.
Certa feita eu indagara a uma delas sobre o uso das vestes e recebera uma resposta pouco imaginada por um ocidental: "Não queremos que os homens nos tratem como objetos sexuais. Devem primeiro perceber nossa personalidade. A mulher que se cobre esconde sua sexualidade, para trazer à tona sua feminilidade".
Lindo pensamento, mas alheio a tudo, Aziz retirou o guthra e o gafirah da cabeça, deixando-os sobre a mesa. Acomodando-se numa cadeira de espaldar reto, remexeu nervosamente os pés dentro das sandálias de couro, visivelmente abalado e sem assunto. Tentei explicar-me:
— Seu pai pediu que eu viesse e aqui estou, mas me sinto culpado por tê-lo deixado sozinho em Jericó.
— Não se martirize, meu caro. Você fez o certo!
— O certo? Deixar ele contra dois e desarmado?
— Nada disso, Domingos. Meu pai resistiu, para permitir sua fuga e enquanto tentavam arrombar o portão, ganhou um precioso tempo, o suficiente para que a polícia se aproximasse. Ouvindo as sirenes, os dois entraram no carro e fugiram.
— Mas então... Se diz que ele morreu...
— Infelizmente, teve um infarto. Um infarto fulminante.
— Meu Deus, como isso foi acontecer?
— Foi enquanto conversava com os policiais. — Ele estava resignado: — Nosso destino está nas mãos de Alá, o meu, o seu, o de todos nós. Temos que aceitar. Diz o ditado: "Para morrer, basta estar vivo". Por isso eu lhe disse, não se culpe. Preocupe-se agora com outra coisa, pois Manolo e Enrico já devem estar aí fora, nos esperando. E o que eles querem, o segredo de onde está "Q", meu pai levou para o túmulo junto com ele.
Surpreendi-me:
— Não sabe onde está?
— Não, não faço ideia. Mas talvez haja uma pista...
— Onde?
— Aqui mesmo. Venha comigo.
Aziz conduziu-me a outra área do escritório, onde havia um compartimento secreto. Ri, ao me lembrar de um antigo bordão: "Como suspeitei: o velho truque" do quarto escondido atrás da estante. Ao ser aberto, revelou uma saleta de pequenas dimensões e formato quadrado, com mobília composta por uma mesa tipo bistrô, imediatamente abaixo de um singelo lustre.
— Foi nessa mesa, Domingos, que meu pai viu pela primeira vez o documento "Q", em 1946.
A sala era climatizada, não recebia luz e não havia umidade, sem possibilidade de traças e roedores, com ventilação controlada e permanente. Havia também estantes que iam do piso ao teto, tomando todas as paredes, excetuando-se a da porta. Eram compostas de variadas divisões, com portinholas de madeira em folhas duplas envidraçadas e fecho rolete. Os puxadores em metal adornado, pendentes, e os vidros lisos, sem pinturas, permitiam examinar o interior de cada unidade com facilidade. Cada espaço possuía uma relíquia diferente. Um compartimento, no entanto, destoava de todos os outros, pela frieza das formas e do material escolhido. Posicionava-se no centro da estante dos fundos: um antigo cofre!
Aziz então girou os três discos numerados, um a um. Seus dedos deslizavam suavemente sobre o metal frio, guiados pela memória, até que um clique suave soou, como um sussurro na noite silenciosa. A porta do cofre se entreabriu, revelando a princípio um interior escuro e misterioso. Moveu por fim a porta, devagar. A luz ambiente logo invadiu o interior, iluminando um objeto. Não pude conter o espanto: dentro do cofre, com uns sessenta centímetros de altura e tampado com uma tigela, um jarro rústico fabricado em argila.
Ao ver o cântaro, fiquei sem ação e muitos pensamentos atabalhoados percorreram minhas sinapses neurais, perdidos em meio a vias de tráfego intenso, mas sem sinalização. O jarro assemelhava-se em muito com aqueles encontrados nas cavernas do Khirbet Qumran, dos quais eu vira fotos em livros. E se aquele fosse um jarro de Qumran, seria mais crível sua procedência, uma vez que a existência de cântaros em Nag Hammadi havia sido colocada sob suspeita.
Mas a palavra de Omar havia de ter peso e tudo realmente indicava que ele fora mesmo testemunha do achado nas falésias do Nilo.
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Notas:
¹Abaya: Vestido longo, usado em associação ao hijab (lenço de cabeça que cobre a cabeça e o pescoço, deixando o rosto à mostra);
²Niqab: Veste que cobre todo o corpo e só revela os olhos; Burca: Vestimenta que cobre todo o corpo, com tela para os olhos e nariz.
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