O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 5
𝓣𝓾𝓻𝓺𝓾𝓲𝓪, 1947
𝟝 Omar Khaled continuou, entusiasmado:
— Quando de volta à Turquia, abrindo a caixa, deparei-me com o cântaro de argila, emendado e preenchido com barro novo, nas partes faltantes. Logo entendi o que tinha acontecido: o antiquário belga (sim, porque depois saberíamos se tratar de um belga), levara gato por lebre: comprara o jarro, provavelmente consertado por Amir, mas levara para casa o códice que viria a ser chamado de "Jung" (e que eu havia comprado). A bem da verdade, ele até poderia ter feito melhor negócio, caso o cântaro estivesse vazio.
— Mas não estava!
— Não!
"Sem qualquer protocolo e de uma pegada só, meti a palma aberta sobre a tigela que servia de tampa, açambarcando-a e num giro seco e forte, quebrei o novo lacre. Dessa feita não houve nenhum redemoinho de pó dourado. O 'gênio do cântaro', na verdade, fragmentos de papiro na cor dourada, que liberados pela pressão interna de algum tipo de gás, cintilaram suspensos naquele dia, já tinham 'escapado' na caverna."
E observando a mão de Omar, de fato ele seria mesmo capaz daquela ação, tanto quanto alcançaria com facilidade um intervalo de décima no piano.
— Após o inesperado e belíssimo fenômeno, o vaso ainda imóvel sobre a mesa, olhei-o internamente. Havia dentro o que parecia ser um códice, muito parecido com o do jarro quebrado na gruta. Deitei-o na mesa, erguendo o fundo com cuidado, até que o invólucro interno escorregou lentamente. Depositei o jarro num canto e desembrulhei o conteúdo, espraiando-o à minha frente.
"Outro códice! Passei os dedos levemente sobre os papiros, buscando sentir sua textura, acompanhando com delicadeza o contorno das folhas, seguindo com o indicador as linhas curvas e corroídas das bordas extremas.
"Eram dois fólios, você sabe bem, folhas duplas dobradas ao meio, formando oito páginas, a considerar verso e anverso. Puídos nas bordas e no centro, presos na extremidade por um cordão não menos desgastado, apesar de seus prováveis 1800 anos, o códice vencera o tempo com incrível galhardia, mas as páginas necessitavam ser viradas com muito cuidado. Amir Hilal já havia exemplificado os efeitos danosos de um manuseio incorreto.
"Uma coisa que impressionava eram as letras, desenhadas com perfeição, certamente por hábeis mãos de um copista profissional. Frases dispostas em perfeito alinho, tanto horizontal, quanto vertical, tanto no espaçamento entre as linhas, quanto junto às margens. Seguiam em preto com destaques em vermelho, contendo também ilustrações contornadas em dourado, acompanhando parelhas as fibras das folhas de papiro."
A técnica que retirava do alvo caule da planta, finas camadas dispostas em trama, prensadas e coladas, formando o tão engenhoso suporte material para o registro da escrita, o papiro, era dominada pelos egípcios do início da Era Cristã. Imaginava-se terem sido os cristãos primitivos a iniciarem a tradição dos códices, para talvez se diferenciarem dos judeus eruditos, que se valiam de rolos tradicionais em pergaminho, difíceis de manusear e ler.
Ele prosseguiu:
— A tinta já estava desbotada, mas ainda permitia ver com vividez o texto milenar.
Para o preto, os egípcios utilizavam carvão e grafite; para o vermelho, compostos à base de ferro oxidado, como argilas avermelhadas, havendo também a presença de outros metais, como o cobre e o alumínio. A associação com o chumbo se fazia necessária, como auxiliar na secagem e fixação.
Indaguei:
— E o idioma, conseguiu identificar?
— Ah, sim. Sem dúvida, o copta.
O copta florescera no Egito por volta do século II. Da família linguística afro-asiática, o alfabeto constituía-se numa versão da língua egípcia transliterada, baseada no alfabeto grego, mas com seis ou sete letras adicionais.
— E conseguiu decifrar o que estava escrito?
— Como lhe disse antes, eu não entendia muito o copta e para a correta leitura e interpretação de um texto assim, nem preciso lhe dizer, seriam necessários conhecimentos de Paleografia e especialidade em línguas antigas. Assim, chamei uma amiga para examinar o documento, Helga Hansen.
Considerei o fato excepcional:
— Uma mulher? Para a época, chega a ser extraordinário.
— Ela era como sua mãe, uma pioneira em trabalhos dominados por homens. E eu confiava mais em Helga do que em dez paleógrafos juntos, se quer saber. Tínhamos ali um documento desconhecido, milenar, que precisava ser analisado por alguém capaz de manter sigilo absoluto.
"Helga apaixonou-se de imediato pelo códice, mas caprichosa que era, fazia suspense de seu conteúdo, rindo de minha diária ansiedade. Somente depois de duas semanas de profunda análise e tradução, ela declarou, solene:
"— Não se trata de um códice, Omar.
"— Não?
"— Não! Um códice em geral reúne um conjunto de livros. Aqui só há um!
"— Só um? E de que tipo?
"— Um evangelho, sem dúvida alguma.
"— Algum evangelho conhecido?
"— Sim!, mas ainda não sei qual. Preciso analisar junto a uma Bíblia."
— Segundo se sabe, Nag Hammadi só possuía evangelhos de cunho gnóstico. Aquele, então, era um canônico? — perguntei.
— Não. E sim.
Eu ficara confuso:
— Não e sim?
Omar respirou fundo — e seria muito difícil restar ar na sala, tendo em vista seu exuberante nariz. A cada lufada de ar, ele exalava emoção:
— Helga já estava hospedada em casa há quase um mês. A essa altura já estávamos em 1947. O motivo de eu demorar tanto a chegar na Turquia, depois de minha passagem pela Grécia, tinha nome e sobrenome.
— Deixa eu adivinhar: Helga Hansen!
— Ela mesma!
— Ficou quanto tempo em Atenas?
— Seis meses!
— Não acredito!
— Foi paixão à primeira vista.
— E o segurança que o acompanhava, acorrentado ao baú do dinheiro?
Omar riu:
— Elif? Ficou por lá. Tínhamos negócios ali, lembra-se?
— E o que Helga afinal descobriu, ao comparar o códice com a Bíblia?
— Findado pouco mais de um mês de duro trabalho, finalmente ela me apresentou o resultado de sua pesquisa. Tal qual uma criança que se surpreende com um presente inesperado, exultava:
"— Omar, estamos diante de um documento histórico, até então hipotético: o 'documento Q'!
"— O documento 'Q'!?
"— Sim, da famosa 'Teoria das Duas Fontes: Quelle, o evangelho perdido'!
"Fiquei alguns segundos paralisado, encarando-a. Claro que por todo o contexto até ali, eu imaginava mesmo ser algo importante, mas não ao ponto de uma 'quase lenda' materializar-se bem diante de meus olhos. Passado o momento de êxtase, Helga sugeriu-me::
"— Omar, eu soube de um americano que criou um método revolucionário para determinar a datação de documentos e objetos antigos. Ele o chama de datação por carbono 14¹. O nome dele é Libby, é professor e pesquisador na Universidade de Chicago.
"Decididos então pela viagem, só conseguimos dinheiro em 1950, o que acabou sendo providencial, isso porque Libby só veio a publicar os resultados de seu trabalho em 1949. Com um artigo científico a respaldar o método, haveria mais credibilidade — e ele ainda veio a ganhar o Prêmio Nobel de Química, dez anos depois.
"Finalmente em Illinois, Chicago, conhecemos Libby. Alto, magro, calvo e de compleição séria. Óculos e terno, nos recebeu interessado na amostra:
"— Um códice antigo? Do que se trata?
"Relutamos em dizer. Helga não falava inglês, eu sim. Informei ser de um evangelho antigo, sem especificar qual.
"— Percebo que não quer ou não pode dizer. Isso pode dificultar meu trabalho...
"— E uma boa quantia para suas pesquisas, facilitaria alguma coisa na consecução dos testes?
"Falada a palavra mágica: 'dinheiro', pouco importava o que seria o documento. E assim o evangelho 'Q' foi o segundo documento do mundo a ser datado pela nova e revolucionária técnica, haja vista que o primeiro havia sido o rolo de Isaías.
"— Podemos considerar com relativa precisão — disse ele —, que esse documento possui algo em torno de 1800 anos.
"Confesso que me surpreendi, pois não achava possível que aquele fosse mesmo o documento 'Q', mas Helga veio logo em meu socorro:
"— Sim, a data é mais do que certa. 'Q' deve ter sido escrito entre os anos 50 e 60 do início de nossa Era, muito provavelmente em aramaico e surgiu antes mesmo dos canônicos (e muito próximo do evangelho gnóstico de Tomé, o dídimo). Assim, esse códice deve ser uma cópia em copta do original, produzida no século II."
Relatos como os dos evangelhos não nascem grandes e geralmente no início da divulgação, não contam histórias, estas só vão ser narradas posteriormente. Por isso 'Q' haveria de ser menor que Marcos e possuir apenas sentenças ou ditos.
Uma relação temporal entre os escritos pode ser assim estabelecida: transmissão oral; registro de sentenças (por exemplo, Q e Tomé); narrativas focadas nos fatos principais (Marcos); narrativas buscando conhecer a história como um todo (Mateus e Lucas); por fim, narrativas de cunho espiritual (João).
Tomé, o dídimo, era um dos evangelhos gnósticos de Nag Hammadi e já em 1951 seu conteúdo foi analisado, contendo ele 114 logias (ou sentenças) e seu estilo era de cunho sapiencial, tal qual o evangelho "Q" deveria ser.
A questão enfrentada por Omar, no entanto, seria um verdadeiro dilema ético. Ele pensava naturalmente em ganhar muito dinheiro com a venda de "Q", porém Helga o fez ver que isso seria um grande erro:
"— É um documento que precisa ser conhecido pela humanidade, não podemos deixar que ele pare nas mãos de um colecionador qualquer, que o trancafiará numa vitrine, apenas para seu deleite. Não! Veja o que está acontecendo com a biblioteca copta de Nag Hammadi. A disputa férrea e agora mesmo, o Instituto Jung não querendo devolver um dos códices ao museu do Cairo. Acha isso certo? Quer ficar para história como o homem que teve nas mãos o maior achado bíblico de todos os tempos e o vendeu, como Judas, por trinta moedas? É isso?"
O Instituto Jung adquirira o códice do belga em 1951; e em 1955 já havia enorme pressão internacional para que o enviassem ao Museu Copta do Cairo, fato que só ocorreu em 1975. Além disso, havia igualmente — e noutra frente, a luta por se reunirem os documentos de Qumran, em parte dispersos.
A história toda, no entanto, terminou com uma grande surpresa para Omar. Lamuriando-se, continuou:
— Um belo dia, na Turquia, Helga desapareceu, deixando apenas um bilhete: "Foi bom enquanto durou. Adeus, Omar". Fiquei inconformado e não era para menos, a relação já perdurava por seis anos, desde Atenas, passando pelos EUA, sempre com o porto seguro da Turquia. Era tudo muito estranho: para onde ela teria ido e por quê?
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Nota:
¹Datação por carbono 14: Criada por Willard Frank Libby. Método científico que usa a proporção de isótopos de carbono 14 para determinar a idade de materiais orgânicos.
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