O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 14

𝟙𝟜 Para minha surpresa, no dia seguinte Padre Germano pediu licença e sentou-se junto a nós à mesa, enquanto tomávamos café no refeitório do piso térreo. O andar também abrigava a área dos seminaristas.

— Olá, meus filhos, dormiram bem?

— Sim, padre — respondi.

A pedido, o desjejum era trazido à mesa por alunos do Seminário e logo eu saboreava um delicioso 'pingado', cujo aroma me remetia ao interior mineiro e à casa de tia Laura. Lea preferira chá de camomila e o padre, adoçando seu café puro, disse:

— Eu sei por que estão aqui!

Tomei um susto. Tentei desconversar:

— Estamos indo para o Rio de Janeiro...

— Nada disso! Você é Domingos Casqueira e ela não é sua esposa, é Lea Khaled, neta de Omar Khaled.

Nos entreolhamos, aterrorizados e o pensamento foi inevitável: "Estamos perdidos".

— Eu lhe disse, Domingos, viemos à toca do lobo.

— Ei, não se aflijam — apressou-se o padre em acalmá-la. — Estou do lado de vocês. Omar foi meu amigo. Ele esteve uma vez aqui no Brasil e eu o ajudei na aquisição de algumas antiguidades. Há algum tempo o filho dele... seu pai, não é, Lea, o Aziz? Ligou-me e disse que vocês dois viriam. Fico muito feliz em ajudar parentes de alguém tão especial como o Omar.

— Já sabia disso ontem, quando foi ao nosso quarto?

— Desconfiava, mas como vocês deram nomes falsos, isso me confundiu. Estava preocupado, o tal Manolo me interpelou lá no trailer do Serjão e perguntou se alguém da Turquia, de nome Domingos, tinha me procurado e daí vocês chegam na pousada. Tinha de verificar, mas a história que vocês contaram não bateu com o que esperava. Confesso: joguei verde para colher maduro.

Interessei-me:

— E o que mais o Manolo disse?

— Disse para eu o comunicar quando chegassem. Ele está num hotel em Guaratinguetá e falou que vocês são perigosos e que pertencem à Ordem Agnus.

— E ele lhe falou em qual idioma?

— Português.

— Mas com sotaque..

— Sim — confirmou Padre Germano.

— Conhece a Ordem, padre?

— Sim, conheço, mas só de nome. Fiquem tranquilos, não compactuo com os interesses deles.

— Ainda bem — disse eu, aliviado. — Certa vez eu pensei em entrar para a Ordem, mas quando soube dos bastidores, desanimei. E fiquei com medo de depois não conseguir me desfiliar.

O padre arrematou:

— E alguém consegue, se quiser?

Era uma pergunta cuja resposta fatalmente devia ser: não!

— E onde está?

— O quê?

— O documento "Q"!

— Também lhe falaram sobre isso, padre?

Descíamos a escadaria frontal, em direção à área externa do Seminário, ampla e arborizada. Uma árvore me chamou a atenção, pela altura.

— É um pau-brasil — informou Padre Germano.

De flores amarelas e perfumadas, observei que a pétala maior possuía uma mancha vermelha no centro. O fruto era uma vagem, algumas de coloração verde, outras na cor castanha.

— Quando maduras, as vagens ficam castanhas. Essa é uma árvore de mais de duzentos anos, nativa da Mata Atlântica, mas Domingos, não estamos aqui para apreciar ou falar de árvores.

— Certo. Perguntou-me onde está o documento "Q". Quem lhe falou sobre ele?

— Ora, o próprio Aziz. Sabem onde o documento está?

— Não, não sabemos. Omar apenas nos deixou um enigma, que não temos ideia de como resolver.

— Um enigma? Qual?

Lea me fez um sinal, como a dizer: "Não fale", mas acabei dizendo

— "As chagas de Cristo ferem os corações mais duros e aquecem as almas mais frias".

Ele ficou surpreendido:

— Ora, é uma citação de São Boaventura. Quando menino, Boaventura foi curado por São Francisco, que lhe fez na testa o sinal da cruz. Será que a cruz tem a algo a ver com a resposta?

— Por quê?

— As chagas de Cristo são cinco e referem-se aos pregos que Jesus recebeu na cruz (os furos nos dois pés e nos dois pulsos, mais o furo da lança que o perfurou). E justamente foi um sinal da cruz que curou Boaventura.

Fazia sentido, mesmo assim, continuava levando a lugar nenhum. O padre prosseguiu:

— Sejamos práticos, minha missão era ocultar vocês aqui por um tempo, porém, com Manolo e Enrico... Enrico, estou certo?

— Isso mesmo!

— Pois então, com os dois por perto, sugiro que vocês partam o mais rápido possível, de preferência amanhã de madrugada. Há uma saída de serviço pelos fundos, que dá acesso direto para a rodovia. Sair pela frente não será possível, pois eles devem estar de campana na portaria principal. Pior que não conheço o Enrico, senão ia lá checar.

No final das contas, o padre parecia realmente de confiança, mas uma coisa estranha me chamara a atenção, quando ele disse: "Omar foi meu amigo". Já sabia da morte de Omar?

No final da tarde, investigando o prédio, desci ao térreo pela escada de segurança. Analisava possíveis rotas de fuga. Observei que a escada continuava para o subsolo, mas havia uma grade com cadeado, impedindo a passagem. O que haveria na sequência, alguma espécie de sala técnica?

Voltando à escadaria, passei direto pelo primeiro andar. Era o piso onde ficava a administração, bem como o quarto do papa. João Paulo II, quando em visita ao Brasil, em 1980, pousara naquele dormitório, que assim era preservado. Tratava-se de uma suíte de cinquenta metros quadrados, ao lado de uma pequena capela, com acomodações muito simples: cama, mesa, poltrona, armários, telefone e duas imagens cristãs — de São Pedro e de Nossa Senhora Aparecida.

Alçando mais dois níveis, circulei pelo terceiro andar, subindo depois para a cobertura. Ela não possuía telhado e a laje (ao tempo) era um terraço técnico. Caminhei pelo piso de pretume ressecado e logo desci, tendo notado que em nenhum dos pavimentos havia sistema de câmeras.

Ninguém me vira descer ou subir. Inebriado pelas formas geométricas dos azulejos portugueses belíssimos, assentados nos pisos dos extensos corredores, tomei um enorme susto, ao ser surpreendido por um padre na volta ao segundo andar:

— Ei, o que fazia lá em cima? Não é permitido a hóspedes subirem ao terceiro andar sem acompanhamento da administração. É área destinada a bispos e cardeais.

— Ah, seu padre, me desculpa... Seu nome?

— Homero.

— Então, padre, não estava no terceiro andar, subi até a cobertura.

— Piorou! Ali é que não tem autorização mesmo. O que foi fazer lá?

— Nada de mais, só fui bater umas fotos. A vista é belíssima.

Mostrei-lhe a câmera, pendurada no pescoço.

— Está bem, mas que isso não se repita. Já passou da hora de colocarmos uma tranca na porta da laje superior.

— Concordo. E coloquem avisos também, proibindo a subida.

O padre olhou-me desconfiado. Por fim, disse:

— Pode deixar. Faremos isso.

Tarde da noite, Padre Germano, recluso em seu quarto, fazia suas orações:

— Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, tende piedade...

Não completou a frase, sendo interrompido por batidas na centenária madeira. Abriu a porta, vestido em roupa comum, calça preta e camisa branca:

— Olá, Domingos. Estava orando. Ia lhe procurar mais tarde.

— Resolvi me adiantar. Estou preocupado com Padre Homero, parece que está a toda hora espreitando tudo.

— Ele é assim mesmo, desconfiado, mas toma remédios para dormir, não vai nos atrapalhar agora. Bem, já que veio, vamos resolver logo a questão. Há uma saída de serviço no térreo, que por sorte vai dar exatamente onde você estacionou o carro. Assim, não precisamos passar pela recepção. Vamos descer as malas por lá.

Estava escuro. No caminho até o carro e com as pupilas em franca dilatação, auxiliado pela luz do luar, só aos poucos comecei a ver tudo mais nitidamente. Pé ante pé, segui o caminho previamente traçado, cuja lua facilitava os passos. A luz que outrora orientara os seres humanos em sua jornada até ali, mar afora, floresta adentro, por desertos sem fim, clareava agora um percurso muito curto, porém, não menos arriscado. Feito o translado da bagagem, Padre Germano pediu a chave do automóvel, para levá-lo aos fundos da edificação.

— E a segurança, padre?

— Só há um homem e ele está lá na portaria. Se ouvir o motor, vai pensar que estou guardando meu carro na garagem. Sempre o esqueço aqui fora e acabo guardando-o bem tarde. Na recepção, pensarão o mesmo, por isso que vou voltar ao prédio e passar por lá.

Eu estava encafifado:

— Um prédio desse tamanho e apenas uma pessoa?

Padre Germano suspirou:

— Contenção de despesas, meu filho. Temos passado dificuldades, mas concordo contigo, é menos do que o mínimo.

Desejei-lhe boa sorte e voltei ao quarto. Em poucas horas, estaríamos longe dali.

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