O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 10

𝟙𝟘 Ao abrirmos o cântaro, naturalmente que não esperávamos encontrar ali o documento "Q". Segundo Omar, quando Javier o roubara, em 1952, o jarro estava guardado em outro lugar, estando apenas o códice depositado dentro do cofre furtado — e ao que tudo indicava, "Q" fora parar do outro lado do mundo, na América do Sul. Mas havia agora no vaso um pedaço de papel, dobrado em duas partes e com algo escrito.

— Eu bem que imaginava — ratificou Aziz. — Será uma pista?

Pelo pouco que conhecera de Omar, não duvidaria nem um pouco. E era uma enigmática frase: "As chagas de Cristo ferem os corações mais duros e aquecem as almas mais frias".

Posteriormente, eu investigaria e descobriria que a frase fora dita por São Boaventura, assim denominado por seu suposto encontro, quando menino, com São Francisco. Boaventura havia sido curado de grave doença pelo padroeiro dos pobres, que teria feito o sinal da cruz em sua fronte e diante da cura, exclamado: "Oh!, boa ventura!"¹

— Só não entendo uma coisa — retomei —, se o códice foi levado para o Brasil, por que Omar nunca o resgatou?

— Certamente, falta de oportunidade.

Apenas cogitávamos, sem convicção alguma, que aquela frase nos levaria ao esconderijo, mas o que tinham a ver as chagas de Cristo com o documento "Q"?

— Não faço ideia — admitiu Aziz.

— E por que uma frase cristã?

— Meu pai não era muçulmano. — Tanto que o preparo e o enterro, assim que o corpo chegasse de Jericó, não seguiriam os costumes islâmicos.

— Pensei que fosse...

— Não, embora se vestisse como um. Ele era um homem do mundo e o contanto com tantas culturas e países diferentes, o fizeram acreditar em Deus a seu modo, sem no entanto seguir uma religião específica. Todavia, se escolheu uma frase que remete ao Cristianismo, isso não foi à toa. Teria escolhido um texto do Alcorão, se fosse o caso.

— Ou seja, a escolha em si mesma já é uma pista.

— Certamente!

Assim que saí do escritório de Aziz, olhei para os lados, a fim de verificar se alguém me espreitava. Mal sabia, mas o filho de Khaled já tinha tudo planejado para minha ida ao Brasil e tal qual Ló, eu não deveria mais olhar para trás, se não quisesse ser transformado numa estátua de sal.

Não vendo alguém suspeito, segui para o carro, imaginando o quanto teria sido bom conhecer a família Khaled noutras circunstâncias. Quando me preparava para colocar a chave na fechadura, o cano frio de uma pistola encostou-se em minhas vértebras. A voz de Manolo, já minha conhecida, soou baixa:

— Nenhuma gracinha, Domingos, ou eu atiro.

Eu não sei até que ponto minha ingenuidade me conduzia, mas era preciso ficar mais esperto, se é que já não era tarde. O cerco apertava-se e tudo parecia se precipitar para um trágico desfecho.

— Vamos voltar ao escritório do Aziz, agora!

Dei meia volta e andei alguns metros até a porta de madeira escura, batendo nela três vezes.

Aziz tomou um susto ao me ver. Entendendo rapidamente a situação, afastou-se para trás, enquanto entrávamos. Manolo empurrou-me para o meio da sala, junto a ele e sob a mira do espanhol, perguntou:

— Onde está a sala secreta?

Ora, como ele sabia dela? Tentei dissuadir o filho de Omar:

— Não mostre, Aziz.

Aziz, contudo, revelando um surpreendente e aparente desapreço religioso, disse:

— Vamos acabar logo com isso. É um documento cristão e não possui a mínima importância para um muçulmano. Não vou morrer por causa dele. A sala está ali. — E apontou para a prateleira de livros.

— Ali? Pouco engenhoso, Aziz, um quatro secreto atrás de uma estante? E soube que o velho Omar deixou um recadinho para vocês, onde é que está?

Falava ele do bilhete no cântaro? Se sim, como sabia? Num relance, veio-me à mente a explicação: a serviçal trajando luto! Saíra da sala, mas certamente dera um jeito de nos espionar e informar Manolo sobre tudo. O cerco mostrava-se mais fechado que o de Jericó.

Aziz dirigiu-se à mesa e apertou um botão sob o tampo. A estante deslocou-se para a frente, relevando o cubículo. Manolo visualizou de longe o cofre e o jarro, ainda sobre a mesa, conforme o tínhamos deixado.

— Ah, o jarro! Pegue-o para mim, Aziz. E essa salinha me deu uma excelente ideia: vou trancar os dois aí!

Rindo, desconcentrou-se e quando Aziz passou pela estante, tomando de um livro, arremessou-o contra Manolo. Com pontaria certeira, o livro bateu no revólver, mas este disparou. Um tiro involuntário e sem quase ruído, devido ao dispositivo silenciador, acertou Aziz, que cambaleou e caiu. A bala atravessou seu corpo e pude ouvir o resvalar do metal incandescente nos ossos de suas costelas. Voei para cima de Manolo e o dominei por trás, segurando seu pulso de encontro ao rosto, impedindo novo disparo. Seus músculos estalaram e a tensão de um cabo de guerra dentro de seu próprio braço o fez largar a arma, que em queda livre, atingiu o chão. Frente a frente, desferi um golpe que o nocauteou — e de volta em minha mão, a reação da força do impacto em seu queixo. Vendo dois igals sobre a mesa, lembrei-me de sua utilização por beduínos, atando pés de camelos. Peguei-os e amarrei as pernas e as mãos de Manolo. Corri até Aziz:

— Aziz!, que ideia foi essa? Vou chamar o socorro, aguenta firme.

O turco estava caído no chão, a mão sobre o abdome ensanguentado. A hemorragia aparentava-se intensa e logo percebi a gravidade da situação. Ele disse:

— Manolo ia nos matar, tive que tentar alguma coisa. Morreríamos sem ar, na saleta do cofre. Vá embora. Fuja, antes que ele acorde.

— Por quê? O infeliz está dominado e você precisa de um médico.

Ele tossiu. Com um fio de sangue escorrendo pelo canto da boca, já falava com dificuldade e seus sentidos aos poucos iam se esvaindo:

— Não queria esse desfecho, mas Alá mostrou ter outros planos, tanto para mim, quanto para meu pai... — tossiu, gravemente.

Aziz parecia considerar-se um homem reto e temente a Deus e não tinha medo do que Alá lhe reservava. Se ali se fechasse seu destino, iria em paz.

— Fique firme! — pedi, mesmo percebendo que já podia ser tarde.

Lépido, peguei o telefone e liguei para o resgate:

— Um homem baleado no antiquário Bazar Khaled. Fica na Bestekar S. K. Sk, urgente.

Voltei-me para Aziz:

— Vai ficar tudo bem, meu amigo...

— Vá embora! Esqueça tudo, você já está atrasado... — tossiu novamente e a profusão de sangue ia aumentando. — Cof, cof.... Esqueça o jarro e siga com nosso plano.

O tempo mostrar-me-ia que seguir com o planejado teria sido mesmo a melhor opção, tal qual em Jericó, onde eu fora vencido pelos argumentos de Omar. E qual era o plano? Naquela mesma tarde eu deveria partir para o Brasil, com uma esquematização para tentar despistar a turma de Javier. Minha missão: encontrar "Q". Mas agora, com a iminente morte de Aziz, eu não o poderia largar ali.

Num último suspiro, a cabeça de Aziz pendeu para o lado e seus olhos jazeram sem vida. Fechei-lhe as pálpebras e voltei-me para Manolo. Minha vontade era pegar a arma e dar-lhe um tiro bem dado, no meio das fuças, mas não podia fazer isso. A vingança nunca era boa conselheira.

Baratinado e sem muito pensar, entrei na saleta do cofre, depois refleti, era melhor mesmo esquecer o jarro, a charada deixada por Omar já estava comigo. Assim, voltei ao escritório e indeciso se ia ou não, resolvi ficar. Havia outra coisa: não podia abandonar a cena do crime, deixando que Manolo inventasse a versão que quisesse do acontecido. Era hora, talvez, de contar toda a história à polícia.
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Nota:
¹Giovanni di Fidanza: Teólogo e filósofo escolástico medieval nascido na Itália no século XIII (São Boaventura, Ordem de São Francisco). Em 1588 foi incluído entre os doutores da Igreja, junto a São Tomás de Aquino.

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