Ensaio Literário

A FONTE Q: À LUZ INSONDÁVEL DE UMA METANARRATIVA METAFÍSICA

     Demorei-me — é bem verdade — para finalmente colocar os pés no intrincado labirinto deste Minotauro literário também conhecido por outros cantos como Dárcio A. Cintra; um desconhecido e fascinante universo este, capilarizado de infindáveis possibilidades a que, qual a poderosa criatura mitológica, o autor dota de completo domínio e controle desde o princípio — consigo a chama e a chave em mãos. A Fonte Q, nesse sentido, nasce e encerra-se como um mito e como todo mito, abre espaço ao desconhecido; campo aberto ao sabor dos debates e das interpretações tantas.

     Parede através de parede, de forma lendária o denso corpus verbal da magistral obra ergue-se imponente diante dos olhos do leitor, convidando-o a desvendá-lo, ao mesmo passo que já locomovendo-se de um lugar para outro sem prévio aviso e com frequência — com a manivela dos segredos inauditos silenciosamente operando —; de cavernas singulares em paredões à beira-mar e quartos de hotéis alugados, à belíssimas construções de enorme vulto ao catolicismo mundial, passando por galerias subterrâneas e plantas de habitações inusitadas; formando-se, finalmente, desse complexo de muros e muralhas uma enorme fortaleza móvel e viva de enigmas, signos e significantes.

     Como efeito direito dessa multifacetação estilística temos quase a todo instante a deliciosa sensação de observar de dentro do olho mágico da história um caleidoscópio que, em sua estranha e fascinante configuração, acarreta-nos à lógica mais dúvidas que respostas: uma vez imersos no interior desse engenho literário e inebriados por tais feitiços sedutores, log nos tornamos parte de sua dança espiral, sendo também massa a girar no horizonte de eventos desse buraco negro; magnetizados em campos onde a realidade e ficção misturam-se e desse efeito infusório um forte e distinto aroma solto. O Minotauro também é um hábil feiticeiro.

     Queremos caminhar com as próprias pernas de Bruno Pereira de Souza Lobo, é verdade — mas, como ele, estamos em barco semelhante, quase de encontro a Caronte nessa infernal corrida —; queremos acima de tudo, para além desse mapa mundi veloz e vertiginoso em que nos encontramos a todo tempo rodopiando o olhar, navegar em cada um de seus trajetos e traçados, espirituosamente interligados; perscrutando os profundos mistérios tingidos na íris da eloquente (e não menos transgressora) Lea Kalhed; vislumbrando as mesmas dunas douradas e curvas tantas que seu avô, o cosmopolita e sábio Omar, já pudera uma vez fincar os pés da aventura e das muitas heranças que antes carregou no antigo e arguto olhar [e de Aziz, o filho de ética impenetrável, conhecer a vívida herança nas escarpas e antiquários de um passado em muito herdado do próprio espírito do avô]: a família Khaled é esse preciosíssimo relicário que a todo tempo nossa consciência, qual o multifário arqueólogo Domingos Casqueira, almeja escavar, a fim de criar o nosso próprio antiquário secreto — também o diamante negro e anguloso encrustado na crosta dessa preciosa metanarrativa. Em A Fonte Q nem tudo o que reluz é ouro e tudo está em constante transmutação: personagem, ambiente, roupagem narrativa. Em Lea, isso está bem nítido; a sua sexualidade aflora e expressa-se do inesperado haja vista a sua posição sociocultural.

     Complexo seria, todavia, o leitor ali jogado em meio a essas cavernas labirínticas, num mundo de tramas quase tão espelhadas e herméticas quanto a insondável Teia de Indra, alcançar o centro do labirinto; desenredar o enredo com as próprias mãos; o núcleo vital das ideias da mente engenhosa desse vulto do suspense policial brasileiro. Muitas vezes, o autor, hábil ilusionista, deixa-nos nesse estado hipnótico: a livremente imaginar e deduzir, nos dando asas mas jamais o terreno certo para pousar: tudo ainda orbita à torrente de perigo e suspeita, nessa rede secular — e subterrânea — de intrigas. E cumpre dizer que não se descasca tão densa cebola sem o derramar de lágrimas durante o processo, tão árduo processo, fina linha de faca; reflexo turvo a que tudo se desconfia.

     O autor, ademais, como um talentoso artesão oriental numa vasta e ancestral tecelagem, revela-nos através de tais belos fios unificados panoramas igualmente intrínsecos: ensinos, belezas e ditos islâmicos, costumes e paisagens judaicas, ambições europeias, provérbios bíblicos e obras de arte e patrimônios universais; tudo, ainda, confluindo para dentro de um sincretismo poderoso ao regionalismo brasileiro. Com isso, mais uma vez, somos todos chamados a atuar como "meta-arqueólogos" à escavação de um saber profundo [a fonte Q, o evangelho dos evangelhos, uma obra dentro de outra ali, supostamente introduzida por um personagem e lida por outro, ambos com suas histórias a correr e se interconectar em tempo real por meio das sincronicidades junguianas] que para além do terreno literário, esconde-se muito bem no âmago da história da teologia e religião, da filosofia e da lógica, da linguagem e da própria humanidade, enfim.

     Trama essa certamente de difícil consolidação, mas tão bem executada pelo nosso distintivo escritor. Assume-se um espírito perito, proficiente, a este valente homem das letras que ao longo de mais de três décadas de experiência como excelente ferreiro literato, forjou da própria alma a sua armadura e assim empunhou sua espada de independência, caminhando por terras sempre imprevisíveis, muitas vezes áridas e não menos espinhosas (semelhante às suas próprias criações) à excruciante tarefa que se faz encarnar a pele de um escritor de verniz policial num Brasil, em muito dos casos, literariamente e literalmente acostumado a desfechos demasiado rasos. Talvez venha daí a sua poderosa exclamação de autenticidade: a resiliência e a fé na arte como ferramenta suprema de autossuperação e autoconhecimento.

     Eu, como artista, bem sei, para Dárcio A. Cintra jamais fora uma mera tarefa de agrado à massa consumidora e a um mercado editorial caótico e quase tão mercenário quanto Enrico e Manolo, mas algo bem além dessa linha; uma vital missão de vida: a arte literária, percebo, corre em seu sangue e encontra-se talhada em seu DNA, inefável.

     Nota-se logo o dom reluzindo nas linhas dessa provocativa novela. E meditando por longos anos nesse seu deserto particular — como Cristo uma vez estivera — o autor, como Fênix renascida, entregou-nos uma relíquia ímpar; uma fonte literária de riquíssimo valor, valor este também histórico-cultural, teológico e espiritual, aglutinados numa só esfera maior, como já prefaciado aqui. Uma relíquia especialmente àqueles que carregam dentro do peito o espírito de uma obra clássica revolucionária (e seu tempo áureo) como um amuleto atemporal e sagrado.

     E não se enganem, embora veterano e experiente em seu labor, em primeiro lugar, Dárcio, despiu-se quase inteiramente de toda a sua formação clássica para doar-se como um infante à elaboração desse seu belo e complexo bordado histórico-psicológico: perseguindo os vagalumes de suas epifanias e intuições a voar, em meio à escuridão total — sem saber exatamente aonde iria chegar, mas com essa luz imprimida no olhar. Assim ele colheu e buscou dar vida aos seus lampejos; foi o seu maior acerto — a sua quase milagrosa serendipidade! —, com isso nos entregou uma novela contemporânea tanto fiel aos moldes clássicos para os mais exigentes do gênero, quanto profusamente experimental e em mesma medida original e arrojada, consagrando-o como um mestre bem adaptado ao seu tempo.

     Perguntemo-nos por um instante: o que se dá como mais experimental quanto a própria natureza da criança; uma roda a girar por si mesma, com seus brinquedos colhidos e descartados, montáveis e desmontáveis; com suas ideias vitais e ao mesmo tempo abandonadas ao esquecimento; com seu irremediável anarquismo de aprontar o que quiser, ao símbolo arquetípico de sua liberdade universal?

     Parece-me que em parte ele, no entanto, crê que talvez se tratou de um equívoco burilar-se "demasiado" ao campo das múltiplas florações do experimental, graças a toda exaustão advinda do desafiar-se a tatear o desconhecido e dele extrair alguma quintessência. Discordo veemente. Diria mais uma vez aqui (e tão central em sua obra) o próprio Mestre em verbo encarnado: "Deixai os pequeninos e não os estorveis de vir a mim, porque dos tais é o Reino dos céus."

     Sendo, então, a criança criadora e dona de seu próprio mundo e que nos entrega os frutos maduros da árvore da fonte Q — pois apenas a criança em nós há de achá-lo —, Dárcio ilumina-se: dá-nos uma nova e bem-aventurada mensagem literária. Proeza de poucos.

     Dentro de toda essa intertextualidade presente no e como o "templo-matriz" da obra, reside o espírito de uma inovação ao qual denomino de metanarrativa metafísica — em elevado grau, qual se enxerga de modo semelhante na literatura e na arte visionária de William Blake. Temos metanarrativa morando dentro de metanarrativas (e entre si se relacionando numa sensível simbiose), num fractal — sem início ou fim — como, nas sutilezas deixadas, um rio que deságua nos oceanos das profundas confluências.

     Dárcio brinca e faz boas cambalhotas com o subtexto, deixando transparecer de seu cerne brilhantes sincronicidades, quais de um tronco os anéis concêntricos explícitos, num todo coeso e unificado: sendo ele próprio um engenheiro no mundo real, estendeu-se à ficção este seu elegante engenho cadenciado, seu edifício maior e obra-mestra. Vê-se resultado: feito a grandiosa Construção de Chico Buarque, em paralelo, Olavo Ravacini está e não está em um mesmo lugar, seu escritório é constructo e desconstructo, seus passos, suas expressões, seus trejeitos, são verdadeiros e são falsos e tudo que fez, como na imortal e clássica canção de nosso gênio incontornável da MPB, fora feito como fosse a última vez: o verbo quase delira; quase se torna surreal em seu simulacro de espelhamentos. Apesar disso, nesse arriscado jogo articulado de aparentes dualidades, o micro e o macro acabam por finalmente abraçar-se em inseparável união; e eis o triunfo final do autor com esse flerte com o realismo mágico.

     Escritores intuitivos e epifânicos aos quais desafiam a mera lógica linear, cartesiana e racionalista de construção de enredos, cabe salientar, são quase sempre aqueles que encarnam a vanguarda das verdadeiras revoluções literárias: temos Clarice, temos Borges, temos Virginia e Joyce, temos Dostoiévski, temos Manoel de Barros, Baudelaire e Rimbaud — temos outros! Fazê-lo no terreno da literatura policial, às raízes do suspense e do mistério é façanha ousada e louvável.

     Em sua autobiografia Dárcio diz prezar pela ousadia, o ir-se além: e conseguiu em grande parte com essa obra. Percebe-se a reverência e respeito do autor aos mestres suis generis do gênero, ao mesmo ritmo que a intensa vontade de honrá-los ao justamente trazer o saboroso fruto da reinvenção, trabalho de Prometheu. Temos em alguns aspectos, é certo — e óbvio —, uma convergência estilística oriunda do lorde do mistério e da dama do crime (entre alguns outros, como Conan Doyle) nos parâmetros da construção narrativa em sua cadência e em alguns elementos surpresa mais lógicos; mas, acima de tudo, temos a brilhante originalidade do autor em beber da fonte primária inesgotável sem dela nenhuma vez inebriar-se, trazendo-nos um braço de rio literário cheio de vida nova tão necessário à revitalização do suspense policial. Temos, e é caro dizer, a brasilidade de Dárcio Cintra exsudando feito seiva em cada linha "versicular" do âmbar que vem a ser a A Fonte Q, tanto em seu sentido literal, quanto ao valor fictício que o autor, estudioso e entusiasta, empreendeu. A brasilidade, o regionalismo tão bem explorado e apresentado, é sua maior potência de originalidade aqui. Os profetas de Aleijadinho relevados na obra são mais que estátuas ou esculturas do tempo: eles tem muitos olhos, continuam a silenciosamente profetizar e esconder mistérios. Certamente o leitor pode esperar surpreender-se ao ponto do mais inesperado.

     Cabe, enfim, lembrar que temos nas mãos — gratuitamente — uma herança caríssima à literatura brasileira. O autor teve a humildade de disponibilizá-la na plataforma Wattpad, plataforma virtual de autopublicação que, com suas controvérsias, ainda alimenta uma comunidade literária de relevância: o autor é a prova viva. Temos nas nossas digitais A Fonte Q, em seu enredo a possível e bombástica descoberta religiosa do século para os rumos do dogmatismo católico: a mim, como leitor, fez-se a descoberta literária do ano.

     Gleison D. 

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