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𝓑aixando a guarda, Ravacini girou a caneta entre os dedos, reflexivo:

— Estava eu em Congonhas, Minas Gerais, minha cidade natal, isso no ano de 2001. Resido em São Paulo desde 1990, quando fundei a editora. Àquela altura, buscava encontrar o mote para um livro, algo diferente, capaz de alavancar minhas vendas.

"No primeiro dia de minha estada lá, fui ao Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Parei para rever as impressionantes obras de Aleijadinho, um conjunto de doze estátuas esculpidas em pedra-sabão, representando os principais profetas da Bíblia, além de seis capelas, cujo interior guarda incríveis esculturas em cedro rosa, encenando os passos da Paixão de Cristo (são um total de sessenta e quatro figuras). Um trabalho único no mundo, considerada a obra-prima do escultor.

"Na oportunidade, havia uma multidão no local e no ar uma mistura de vozes e cliques de câmeras fotográficas. Os transeuntes movimentavam-se de um lado a outro, tornando o pátio da igreja quase intransitável. O calor era intenso e o vozerio dos guias destacava-se. Suas falas decoradas, ouvidas em conjunto, eram praticamente incompreensíveis.

"A cidade vivia seu grande e anual evento, mais popular até que o Carnaval: a festa do Jubileu!, daí a aglomeração defronte à igreja. A comemoração, realizada sempre em setembro, remonta a mais de 250 anos de peregrinações, é um acontecimento! Romeiros procedem de todas as partes, muitos andam quilômetros a pé, de bicicleta, a cavalo, enfim, é uma festa de grande expressão regional e estadual.

"Perdido em meio a pensamentos, eu ficava ouvindo frases soltas, como: 'Gestos e detalhes dos profetas indicam atitudes e sinais maçônicos'; 'o nariz adunco é uma característica marcante nas figuras de Aleijadinho'; 'o pó de minério está destruindo os profetas e querem colocar réplicas no lugar'; 'é lenda que as estátuas não sejam maciças'...

"Inúmeras coisas os guias iam falando, enquanto isso, eu olhava a inscrição bíblica no filactério¹ do profeta Oséias, após ter passado por Baruc, o único não esculpido em pedra única. Curiosamente, o filactério dava ensejo a um possível motivo para um crime. Dizia, em latim: 'Accipe adulteram, ait Dominus mihi: id exsequor: illa, facta uxor, proles concipit, atque parit', isto é, 'Toma a adúltera, disse o Senhor. E tornando-se minha esposa, ela concebeu e me deu filhos'.

"Havia uma história de uma mulher, há muito tempo assassinada bem diante daquela estátua, por trair o marido. Estaria ali, a história que eu procurava? Nisso, percebi um homem próximo ao profeta Daniel, encostado na mureta, encarando-me de um jeito estranho. Olhos profundamente negros, nariz adunco, rosto redondo e cabelos loiros, parecia até saído da capela da Crucificação, o centurião!, uma das figuras de cedro rosa do Santuário. Desde criança, a figura do centurião metia-me medo, com sua marreta erguida e a estaca pronta para cravar os pés de Jesus sobre a cruz. Quando retribuí seu olhar, saiu rapidamente, imiscuindo-se na multidão.

"Estressado, resolvi ir embora. Desci a ladeira das seis pequenas capelas com dificuldade, avistando delas apenas a cobertura, dado ao furdunço generalizado. Gostaria de rever as peças em cedro, mas era necessário chegar o rosto nas portas de cada uma (e por um buraco ver as esculturas), o que seria impossível naquele momento. Chegando ao carro, ruas abaixo, resolvi logo voltar para o Esmeril, zona rural de Congonhas."

— Estava hospedado onde?

— No sítio de um tio, o Ti Belo, delegado de polícia.

— E qual o nome do seu tio?

— José Andrade Belo.

— Ainda mora em Congonhas?

— Sim.

Bruno levantou-se e dirigiu-se à mesinha, onde se serviu de mais café:

— Mas, prossiga...

Ravacini balançou a cabeça, em sinal de positivo:

— Ok... Eu dizia que peguei o carro e segui para a casa do tio, no Esmeril. Dezenove quilômetros, estrada bem ruim. Havia chovido, aquela chuvinha que fica a semana toda, fina, e não tem coisa pior para uma estrada de terra do que um tempo desses. Alguns trechos estavam bem escorregadios, tinha que passar com o carro praticamente em primeira, controlando as deslizadas com o freio, mas qualquer triscada mais forte, era barranco na certa. Levei uma hora para fazer um percurso que se faz em quarenta minutos. Os caminhões e ônibus também são péssimos para uma estrada enlameada, pois causam valas fundas e a via fica toda esburacada. E ali há muitos desses veículos, por causa das mineradoras.

"Lugar belíssimo: serras maravilhosas, plantações de eucaliptos, vários sítios e pousadas. Da estrada principal, pegando um 'galho' à esquerda e descendo até o fundo de um vale, cheguei ao sítio do tio. Na época, Ti Belo curtia merecidas férias, mas não andava lá muito feliz, porque estava com dívidas e com risco de perder a propriedade, daí o motivo de eu ter ido a Congonhas.

"Naquele dia, quando cheguei, ele foi me mostrar toda a propriedade. Fazia anos que não o visitava, muito embora às vezes nos víamos em Belo Horizonte, seu local de trabalho. Mostrou-me o alambique, construído abaixo do chalé rústico, onde ainda hoje se fabrica a cachaça Liberdade, muito boa, por sinal. Quando finalmente nos sentamos à mesa, peça única em madeira reciclada, puxei assunto:

"— O senhor nunca pensou em se casar, tio?

"— Não, nunca!

"Senti que a negativa de meu tio havia sido muito enfática, como se na verdade quisesse ter dito: 'Sim'! Mas o tio era sempre muito contido.

"— Mas... Nunca teve ninguém? Nunca se apaixonou?

"— Uma vez... Ela era casada e deu a maior zebra... Isso faz muitos anos... Mas não gosto de falar nisso...

"— E filhos, nunca pensou em ter?

"Ele me olhou, serviu-me um pouco da pinga do alambique e depois disse:

"— Olavo, você não quer realmente saber de meus casos amorosos, quer? E se um dia eu quis ter filhos. Sem rodeios, diga logo. Te conheço.

"E conhecia mesmo, como a um filho:

"— Verdade, tio. Sabe... É essa questão de o senhor querer um dinheiro emprestado, não sei se vou poder lhe ajudar.

"Um desalento estampou-se rosto dele. Segui adiante:

"— Estou preocupado com minha editora. O senhor sabe, trabalhamos de forma tradicional, publicando autores novos e de grande potencial, mas ultimamente não temos conseguido bons títulos. Estou cogitando apelar para publicações comerciais e até mesmo oferecer serviços de gráfica a escritores independentes.

"Ti Belo perguntou:

"— Mas por que você não volta a publicar algo seu? Já ganhou até o Jabuti...

"— Isso já faz sete anos, tio. E hoje em dia ando sem inspiração.

"— Inspiração é igual apetite, basta comer que ele vem.

"— É, eu sei, mas deixei enferrujar... Tenho tentado encontrar alguma coisa diferente para escrever, mas não consigo.

"Meu tio colocou o pequeno copo de vidro sobre a mesa e girou-o algumas vezes com os dedos:

"— Faça uma caminhada. Sempre que preciso de solução para um caso, me ajuda andar. Areja as ideias. Quanto ao dinheiro que preciso, a gente dá outro jeito.

"Seguindo seu conselho, no dia seguinte saí caminhando por aquelas estradas até chegar ao vilarejo do Esmeril. Passei pela escola estadual, observei as casas e entrei em um pequeno cemitério. Depois, segui para a capela e por fim, subi ao Cruzeiro, de onde era possível avistar toda a região, cidades como Conselheiro Lafaiete e Ouro Branco. A inspiração ainda não vinha e notando alguns pingos, decidi que era hora de voltar, caso não quisesse encarar uma chuva de frente.

"Quando muito próximo do sítio, tateando cuidadosamente com os pés o solo da íngreme descida em terra batida, repleta de pedras e buracos, vi que um funcionário de meu tio se despedia de um homem alto e de cabelos loiros. Sua fisionomia não me era estranha. O sujeito tinha nas mãos um pacote, que julguei serem litros de pinga. Os dois apertaram-se as mãos e o homem entrou no carro, acelerando forte, talvez temendo patinar logo de saída. Isso me obrigou a dar um pulo para o lado, ao que ele passou atirando pedras, uma delas feito um tiro quase me acertou a cabeça.

"— Ô, seu doido! — gritei.

"Aproximando-me da porteira, perguntei:

"— Quem era, Fábio?

"— Não sei. Vem muita gente comprar pinga aqui.

"— Engraçado, parece que o conheço...

"Foi então que me dei conta de onde já o tinha visto: era o homem que me espreitava na multidão, no Santuário, no dia anterior. O que eu não podia imaginar, contudo, seriam os sinistros desdobramentos que adviriam na tarde seguinte, envolvendo aquele sujeito..."

Bruno, que fazia algumas anotações, assustou-se:

— Sinistros desdobramentos? Na tarde seguinte?

— E o que esperava, Sr. Bruno? Verá que a história é mais 'cabulosa' do que se possa imaginar.

— Como lhe disse antes, quanto mais 'cabuloso' for, mas difícil será que eu acredite.

— De minha parte, novamente recomendo: evite os pré-conceitos.

— Está bem — assentiu Bruno. — Siga adiante.
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Nota:
¹Filactério: Faixa de pergaminho com escritos religiosos, que os judeus enrolam no braço e prendem à fronte, ao fazer as orações. Nota: As estátuas de Aleijadinho possuem cada uma delas um filactério, com inscrições em latim.

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