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𝓢𝓪̃𝓸 𝓟𝓪𝓾𝓵𝓸, 2021
𝓐ssim que o sinal de pedestres virou para o verde, a passos largos atravessou a rua da Consolação. Andou mais alguns metros, subindo os degraus de uma escada com piso em granito levigado, parando diante de moderno edifício. Com a visão ofuscada pela luz do sol, reluzindo na fachada envidraçada, avançou mais um passo, para que a porta automática permitisse sua entrada no hall nobre.
— Olá, boa tarde.
— Boa tarde, senhor. Que andar deseja?
— Nono andar. Gostaria de falar com o Sr. Olavo Ravacini.
Em um painel fixado na parede uma placa indicava: "Editora Ravacini – 9º Andar". Após os protocolos de praxe, relativos à segurança, dirigiu-se ao elevador. Durante a subida, em meio a algumas paradas, repassou no celular os principais pontos da pauta, com tempo ainda para uma rápida pesquisa:
"Olavo Ravacini, escritor e jornalista, vencedor do Prêmio Jabuti¹, ano 1994, categoria 'Jornalismo Investigativo'".
O nono andar, pelo que supôs, era utilizado em sua totalidade pela editora. Tendo desembocado diretamente na recepção, não encontrou ali ninguém, exceto uma vazia mesa de recepcionista e uma convidativa poltrona. Enquanto aguardava, passeou o olhar pela decoração, muito simples e retrô. Não era possível, contudo, ver muita coisa além das divisórias, fechadas até o teto, mas não tardou, de uma porta surgiu um homem, meia idade, postura ereta.
— Sr. Olavo Ravacini?
— Sim, sou eu. Boa tarde. — E estendeu a mão ao visitante. — Suponho que seja Jorge Fontana... Desculpe-me a recepção estar só, nossa colaboradora adoeceu e teve que se ausentar. É um prazer conhecê-lo.
— Perdoe-me, o Sr. Fontana não pôde vir e mandou-me em seu lugar, representando a Fontana Lobo Advogados Associados. Somos sócios. Meu nome é Bruno Pereira de Souza Lobo.
Ravacini pareceu contrariado:
— Esperava o Sr. Fontana. Foi com ele que tratei.
— Mais uma vez em nome dele peço desculpas. Ele teve que viajar com urgência para a Austrália e a essa altura já deve estar embarcando, mas ele não lhe enviou uma mensagem ou telefonou?
— Não. Até o momento não.
O som de uma mensagem no celular do escritor o fez interromper o diálogo e olhar o Whatsapp. Exclamou:
— Ah! É ele. Está dizendo que não pode ligar agora, está dentro do avião e precisa desligar o celular. Só vai estar disponível daqui a dez horas e pede que eu o receba.
— Está vendo? Sabia que ele não deixaria de falar contigo. Mas não se preocupe, estou à sua inteira disposição. Será como se ele próprio aqui estivesse.
— Assim espero!
Ravacini convidou-o para adentrar pela porta de onde saíra, uma sala de reuniões, e gentilmente ofereceu-lhe água e café, cujos recipientes repousavam sobre uma bandeja numa pequena mesa. Pelo que Bruno notou, no interior da sala outra porta dava acesso a uma área com banheiro e copa. Considerou esquisito tais ambientes serem acessíveis pela área de conferências, mas não estava ali para analisar disposições arquitetônicas. O editor iniciou:
— Sr. Bruno, está inteirado sobre o meu caso?
O advogado sorveu o café, seguido de um gole d'água:
— Sim. — E tirou da bolsa a tiracolo uma agenda. — Naturalmente que só fui informado acerca do básico.
Desconfiado, Ravacini perguntou:
— E o básico, seria o quê?
Ensejando a publicação de um manuscrito, o potencial cliente temia um processo por calúnia e difamação, ao que também poder-se-ia juntar "danos morais".
Bruno leu um resumo no celular:
— A história trata da descoberta de um papiro dos primórdios do Cristianismo, o documento "Q"², um texto-fonte utilizado na consecução dos evangelhos da Bíblia...
Ravacini fez um aparte:
— "Q" é muito mais do que um texto-fonte.
— O quinto evangelho?
— Não, não o quinto, mas o primeiro, aquele que deu origem aos demais e que foi escrito às margens do Gólgota. Estaríamos falando, Sr. Bruno, de um documento confeccionado pelas mãos de pessoas que provavelmente presenciaram a crucificação de Jesus.
— Mas os evangelistas da Bíblia igualmente não foram testemunhas oculares?
Assoberbando-se, Ravacini elucidou:
— Não é bem assim. Para início de conversa, dos quatro evangelistas, Marcos e Lucas nem estavam entre os doze discípulos e Lucas nem mesmo conheceu Jesus pessoalmente. Além disso, a escrita dos evangelhos foi muito mais tardia do que se pensa. — Ravacini serviu-se de café. — Mas o que sabe sobre o assunto é menos que o básico, é somente o mínimo. E estava no e-mail que enviei a vocês. Algo mais?
— Ainda não. Fui designado para o caso logo após o almoço e perdoe-me a franqueza, nunca tinha ouvido falar do documento "Q". — Bruno endireitou o corpo: — E sobre o motivo da consultoria, calúnia é tipificada pelo artigo 138 do Código Penal, em fazer acusação falsa de crime contra alguém. Pergunto: a quem o senhor teme caluniar, se efetivada a publicação? Domingos Casqueira, o autor do manuscrito?
Ele levantou ligeiramente os ombros:
— Não sei, por isso preciso da avaliação de vocês. Saiba, contudo, é uma história difícil de acreditar, por isso te peço que julgue somente após conhecer todos os detalhes.
— Esteja ciente: o tamanho da minha incredulidade tenderá a ser diretamente proporcional à inverossimilhança da história, ou seja, quanto mais incrível for, mais improvável que eu acredite.
Ravacini admoestou-o:
— Sr. Bruno, o cético rejeita e o crédulo aceita, já um investigador limita-se a analisar possibilidades.
— Está certo, mas se me permite um alerta, como seu futuro advogado, o melhor para uma eventual defesa é que eu saiba toda a verdade, seja ela qual for.
Olavo retesou a tez:
— A verdade? Ora, e qual é a verdade? Uma história não possui sempre dois lados?
— Dizer que há dois lados é tão somente uma contingência relativa a pontos de vista diferentes. Uma história pode possuir duas ou mais versões, mas a verdade via de regra é uma só, partamos desse princípio.
Ravacini mostrou-se intransigente:
— Já ouviu dizer que o lobo é mau, porque só ouvimos a versão do chapeuzinho?
Bruno Pereira de Souza Lobo sorriu:
— A tua sorte é que eu sou o Lobo bom, portanto, deixe a versão do lobo mau a cargo do outro lado.
Havia uma folha de papel sobre a mesa e Ravacini desenhou nela um número:
— Que número você vê?
— Vejo um 6.
— Pois bem, eu vejo um 9. Qual é a verdade?
Vendo-se embaraçado, Bruno saiu pela tangente:
— Meu caro, não tergiverse, basta apenas que você não minta, ok? E sem mais delongas, que tal me contar a história desde o início?
Olavo respirou fundo, ainda não com a tensão dirimida:
— Está bem! Vamos do começo...
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Notas:
¹Prêmio Jabuti: Criado em 1959, o mais tradicional prêmio literário do Brasil.
²Documento "Q": hipotética fonte que, junto ao evangelho de Marcos, teria sido utilizada na redação dos evangelhos de Mateus e Lucas na chamada "Teoria das Duas Fontes". Esse texto mais primitivo conteria apenas a "logia" ou os sermões de Jesus, basicamente suas sentenças morais: a "logienquelle" ou "fonte dos ditos". O termo vem da palavra em alemão "Quelle", que significa "fonte".
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