Possível
Igor segurou meu antebraço com a outra mão, nós estávamos afundando na neve e eu estava apavorada. Lágrimas se formavam em meus olhos e lembrei-me dos avisos sobre o que os soldados do reino Gafries, já haviam feito as jovens ladies.
Estava planejando deixar que ele pensasse que eu seria uma presa fácil, usaria a ideia de vitória dele contra ele. Ouvi os passos passando por nós, o barulho de pessoas falando perto da armadilha. Então percebi que ele tentara me salvar com toda essa loucura, ao menos era o que parecia. Apesar dessa certeza, sentir a respiração quente de Igor em mim, fez-me sentir exposta, como se não houvesse todas aquelas camadas de tecido entre nós.
As vozes afastaram-se, então ele finalmente ficou de pé e estendeu a mão para mim, hesitei por um instante, mas acabei segurando a mão dele, o frio me travou e, ainda assim não consegui encarar aquele homem novamente.
Nós fomos para perto da fogueira dele e tudo que passava pela minha cabeça era como eles não conseguiram ver o acampamento de Igor e muito menos nos ver quando ficamos ali no chão.
Sentei-me perto do fogo e estiquei as mãos em direção as chamas, Igor caminhou pelo acampamento e senti uma manta quente ser posta ao redor dos meus ombros. Sobressaltei-me ao gesto dele e nesse instante olhei em seus olhos que pareciam reluzir com a luz.
— Obrigada. — Falei finalmente.
— Eu que agradeço. — Disse ele sentando-se ao meu lado.
— Como eles não nos viram? Como não viram o acampamento?
— Respondo uma pergunta sua, se responder uma minha. — Disse ele. Assenti devagar. — É a mesma resposta, para ambas as perguntas. Neste reino vocês chamariam de bruxaria, no meu, alquimia.
— Como vi o acampamento, se eles não o viram?
— Você viu de relance e acreditou que poderia estar aqui, então conseguiu vê-lo. Se eles o vissem como você, não acreditariam, pensariam, provavelmente que era parte de uma ilusão.
— De onde você é? — Perguntei.
— Não senhorita. É a minha vez. — Rebateu ele com uma piscadela. — Por que me pediu para ver minha flecha? E por que você usa calças?
Encarei as chamas, finalmente conseguindo desviar os olhos dos hipnotizantes e luminosos olhos daquele estranho. O fogo dançava a minha frente e eu apertei o manto em volta do meu corpo. Suas perguntas tinham pesos diferentes para mim, uma delas simples, a outra abriria uma ferida que mal começara a cicatrizar e eu não tinha certeza se gostaria de falar sobre isso com um estranho.
— Meu pai sempre me disse que eu deveria estar pronta para qualquer situação. Então desde que consigo me lembrar, uso roupas masculinas por baixo dos vestidos e corpetes. Ele me treinou bem, se não tivesse ouvido o som dos passos daqueles homens, com certeza teria te atacado depois de um momento. — Sorri amargurada.
O homem pegou uma garrafa de uma sacola e estendeu-a para mim, olhei o frasco intrigada, perguntando-me que venenos poderiam estar escondidos naquele líquido. Igor, ao ver minha expressão tirou a tampa da garrafa e a levou aos lábios engolindo grandes quantidades do líquido, antes de estendê-la novamente para mim. Aceitei a garrafa e tomei um gole pequeno do líquido que esquentou minha garganta, não era vinho, muito menos rum, era forte, contudo eu nunca o havia provado.
— Você não respondeu uma de minhas perguntas. — Replicou ele aceitando a garrafa de volta. — Posso ver a flecha que você carrega na bota?
Encarei-o admirada com o fato de ele a ter visto, a bainha era grande demais e apenas uma pequena parte das penas da seta estavam para fora dela. Puxei o objeto de lá sem ousar desviar os olhos do homem ao meu lado, estendi a flecha, franzindo o cenho Igor a pegou e observou os detalhes da peça.
— Pedi para ver sua flecha porque há pouco mais de um mês, o meu pai sofreu uma emboscada no caminho para o palácio, ele foi morto por esta flecha e estou tentando descobrir quem o matou. — Expliquei, controlando por pouco o embargo de lágrimas que eu me recusava a derramar.
— Lamento por seu pai. — Disse ele devolvendo-me a meia-seta.
Igor estendeu a bebida para mim outra vez e eu engoli uma boa porção do líquido, tentei controlar o acesso de tosse e pigarreei. O homem ao meu lado riu.
— Então, de onde você é? — Perguntei.
— De um pequeno reino ao norte daqui, atravessando o mar. — Explicou ele.
— Está bem longe de casa. — Afirmei, tentando imaginar as razões que o levaram aquele lugar.
— Um pouco. — Rebateu ele. — Quem era o seu pai?
— Gustavo Verlus. — Respondi. O homem quase cuspiu o líquido que acabara de pôr em sua boca, mas olhou para mim de modo diferente.
— O Visconde Gustavo Verlus? — Questionou ele.
Assenti e o homem ficou de pé passando as mãos pelos cabelos longos, por garantia coloquei a mão em volta do cabo da adaga, sabia que ao longo dos anos meu pai fizera muitos inimigos e nesse instante temi que esse estranho fosse um deles.
— Você o conheceu? — Perguntei mantendo a voz calma.
— Ouvi falar dele. — Respondeu o jovem. — Quando cheguei a este lugar soube que recentemente um nobre havia falecido, só não sabia que se tratava de lorde Verlus.
Fiquei em silêncio tentando entender qual a opinião desse homem sobre o meu pai, não ousei tirar a mão da adaga, sabia que ele era rápido e não me deixaria ser pega desprevenida novamente. Quando Igor finalmente me encarou, eu não vi nenhum traço de ódio em seus olhos, neles apenas havia tristeza.
— Então você é uma viscondessa. — Disse ele. — Achei que já estaria casada.
— Como exatamente você conhece o meu pai? — Perguntei medindo cada uma das minhas palavras.
— Seu pai visitou o reino de meu pai há muitos anos, a pedido do seu rei. Eles tentavam achar na alquimia a cura para uma doença que se abateu sobre a rainha. O seu pai disse ao meu que entendia a dor que o amigo dele passaria, se perdesse a rainha, pois seu rei a amava. O meu pai fez tudo ao seu alcance para ajudar o visconde a encontrar uma cura, contudo foi tarde demais, pois quando ele retornou com o remédio, a mulher tinha morrido.
“Nosso reino é pequeno e se tivesse conseguido salvar sua rainha este reino teria uma dívida com o nosso. Infelizmente não aconteceu como deveria, mas meu pai admirou a lealdade do seu para com seu rei e tempos depois pediu que o visconde o visitasse.”
Lembrei-me de meu pai saindo de casa apressado quando eu era criança, aos berros eu pedia que ele não fosse. Afastei a lembrança, meu pai sempre fez pequenas viagens quando eu era mais nova, antes de toda a loucura da invasão do reino Gafries, ele só não me dizia aonde ia.
— Quando ele os visitou pela última vez? — Questionei.
— Uns dois ou três anos atrás. — Igor fez uma pausa. — A corte de Linuvies, é uma confusão e muitas tentativas de envenenar o rei foram feitas sem sucesso, por isso ele confiava num homem honrado como o seu pai. Eles foram amigos por muito tempo.
— Eu não sabia disso.
— Poucos sabiam. — Rebateu o rapaz. — Por que você está aqui esta noite?
— Estava num baile no palácio e houve um ataque. — Respondi parcialmente. — O que você veio fazer aqui?
— Acredita em destino? — Perguntou ele com um sorriso no rosto. Ergui as sobrancelhas em descrença. — Estou falando sério, um vidente me viu aqui, sozinho e acampando, exatamente neste lugar. Talvez tenha sido meu destino encontrar você.
Minha reação foi rir, Igor pareceu ofendido, então controlei-me e um pensamento sombreou minha mente me deixando séria.
— Não quero pensar que isso foi destino. — Afirmei. — Se eu pensar nisso, só conseguirei pensar que ele foi muito cruel comigo, eu não estaria aqui se meu pai não tivesse morrido.
Fiquei de pé e retirei o manto das minhas costas, o vento frio me atingiu e jogou os meus cabelos sobre o meu rosto. Igor me observou e vi a sombra que me cobria se refletir nele, meus olhos marejaram, eu tentei dar um passo em direção a ele. Meu tornozelo latejou e eu quase caí sentada novamente.
Igor se aproximou de mim e segurou o meu braço, ergui os olhos para os dele, o homem parecia apesar de não falar nada, pedir permissão para encostar-se a mim. Levantando-me como se eu não pesasse mais que um pano o rapaz me colocou sentada sobre o manto que eu deixei cair perto da fogueira.
— Vou tirar a sua bota. — Disse ele.
Com mais cuidado do que eu esperava ele tirou minha bota, bati com as mãos no chão praguejando quando a bota deslizou pelo tornozelo. Igor se desculpou e começou a apertar o tornozelo com as pontas dos dedos.
— Está deslocado. — Informou. — Se você quiser. — Começou e olhou nos meus olhos antes de prosseguir. — Eu o coloco no lugar, mas vai doer bastante.
— Faça. — Pedi.
— Olhe para os meus olhos. — Ordenou ele enquanto segurava o meu pé. Observando os hipnotizantes olhos dele, que pareciam dançar refletindo a luz do fogo, escutei um estalo e lágrimas rolaram pela minha bochecha.
Passados alguns instantes enquanto Igor colocava uma pomada no meu tornozelo e explicava o que ela faria para me ajudar, finalmente encontrei minha voz.
— Por que eu não senti a dor antes? — Perguntei.
— Não sou especialista. — Ele sorriu. — Mas acredito que o frio a deixou com a sensibilidade dos pés um pouco menor. Seu tornozelo vai ficar bem em alguns dias. Você realmente não acredita em destino?
— Não, não acredito.
— Mas é possível que toda essa situação tenha acontecido para que nos conhecêssemos. — Igor sorriu. — Sugiro senhorita que durma aqui, descanse o tornozelo e amanhã eu a levo para casa.
— Que inferno. — Praguejei e Igor me olhou horrorizado senti minhas bochechas esquentarem. — Eu preciso chegar ao castelo.
— Por quê?
— Porque eu ajudei o príncipe herdeiro a sair do castelo quando a invasão começou, preciso ir até lá para que as pessoas não pensem que ele foi levado pelos soldados inimigos.
— Compreendo. Então eu vou com você. — Disse ele. — Onde está o seu cavalo?
— O deixei perto daquela armadilha. — Ele me encarou frustrado. — O quê?
— Os homens o levaram. — Respondeu ele e começou a reunir as próprias coisas. Ele as jogou descuidadamente dentro de uma sacola que jogou sobre os ombros.
— Minha sorte não melhora nada. — Suspirei. — Ainda acha que o destino nos reuniu?
— Acho. — Disse ele sem pestanejar.
— Então o destino me amaldiçoou com muita falta de sorte.
Igor riu e veio até mim equilibrei-me na perna esquerda enquanto ele apanhou o mantou para mim. Agradeci enquanto o amarrei ao pescoço, o homem me apoiou enquanto eu mancava para o cavalo dele. Igor prendeu a sacola na parte de trás da sela, observei em silêncio, minha perna esquerda começava a doer com o esforço.
Ele me segurou para me levantar e colocar na sela, permaneci em silêncio enquanto Igor também montava, eu pude sentir os braços dele na minha cintura enquanto ele segurava as rédeas do cavalo. Respirei fundo tentando controlar meus instintos, ainda sentia meu coração acelerar ao toque dele, o susto que ele me deu uma hora antes, ainda martelava em minha cabeça e fazia meu coração bater mais forte.
— Eu lhe devo um pedido de desculpas. — Disse ele. Virei o rosto para observa-lo pelo canto do olho e senti a respiração dele tocar em meu rosto.
— Por que motivo? — Questionei recordando o susto.
— A julguei mal quando nos conhecemos. — Esclareceu. — Achei que você fosse uma criminosa ou...
Ele deixou a frase morrer como se tivesse se arrependido de ter começado.
— Ou o quê? — Questionei irritada ainda o observando, as bochechas dele estavam vermelhas, eu não sabia se pelo frio ou pelo que pensava.
— Ou uma prostituta. — Acrescentou ele. Nesse instante a distância entre nós pareceu ser ainda menor, puxei o corpo para frente tentando me afastar dele o máximo que pudesse.
O cavalo fez uma descida abrupta e Igor esbarrou em mim, pude sentir que ele continha o riso. Tão rápido esbarrou e o homem afastou-se, suspirei aliviada.
— Você não vai me pedir desculpas? — Perguntou ele.
— Por que eu deveria? — Questionei irritada. — Eu não pensei que você fosse uma...
— Você achou que eu fosse um assassino. — Rebateu ele e eu corei.
— Está bem, me desculpe. — Pigarreei. — Podemos ir um pouco mais rápido?
— Não com todo o peso extra. — Disse ele.
— Primeiro você diz que eu pareço uma prostituta e agora que eu sou o peso extra no seu cavalo? — Perguntei.
— Eu não disse que você era o peso extra. — Ralhou ele. — Estou cavalgando assim desde antes de encontrar com você, minha sacola está muito pesada. Lady Verlus, acredito que estejas procurando razões para discutir comigo por estardes envergonhada.
Fiquei em silêncio ao sentir-me encurralada, o frio fez meus ossos tremerem, travei a mandíbula e tentei suportar a queda de temperatura que meu corpo sofrera. Igor me puxou para junto de si e eu me preparei para xingá-lo.
— Você vai congelar. — Argumentou. — Estou com mais roupas do que você, se ficar junto a mim, meu corpo vai aquecê-la.
— Talvez eu prefira morrer congelada. — Afirmei.
— Talvez o seu rei faça um acordo com os inimigos torcendo para que não matem o príncipe herdeiro. — Rebateu ele.
Acabei relaxando e deixando o calor do corpo dele me envolver, nós cavalgamos por algum tempo, já estávamos a meio caminho do castelo e eu já não tinha calafrios. Minha opinião sobre Igor era contraditória, eu não saberia dizer se confiava nele ou se me importava com sua segurança, no entanto sabia que depois de toda essa noite ele merecia um voto de confiança.
— Então, você vai me explicar como conseguiu se esconder dos soldados? — Inquiri.
— Já disse que foi alquimia.
— Explique melhor. — Pedi, ele aproximou os lábios do meu ouvido e sussurrou.
— Se eu te contasse teria que te matar. — Ele riu.
Um arrepio percorreu meu corpo. Chateada pela curiosidade eu fiquei em silêncio, apenas apontei a direção do portão do castelo, Igor desceu do cavalo ainda na floresta e me ajudou a descer.
— Preciso de um favor. — Pedi. — Ajude-me a colocar a bota de volta em meu pé.
— Tudo bem. — Disse ele e se agachou para segurar meu pé, ele abriu a bota e começou a colocá-la em meu pé. Desequilibrei-me e agarrei os ombros dele para não cair.
— Desculpe por estar incomodando tanto. — Pedi quando Igor ficou de pé.
— Não se desculpe por isso. Talvez um dia você retribua o favor. — Rebateu ele com uma piscadela. — Vou dar uma olhada e se tudo estiver bem eu venho buscar você.
— Está bem. — Concordei relutante.
— Sugiro que para que eu vá um pouco menos preocupado, você fique com a sua adaga nas mãos.
Puxei a adaga da bota e a segurei firme. Apoiei o corpo na sela do cavalo tentando manter um pouco do equilíbrio, certamente não conseguiria lutar, entretanto se alguém me atacasse teria mais chances segurando essa adaga.
Observei-o enquanto se afastava e envolvi-me ainda mais com o manto dele, tentando manter um pouco do calor em meu corpo. Esperar por Igor parecia uma eternidade, comecei a pensar que eu não era tão forte quanto pensei que fosse. Se aquele estranho não tivesse aparecido, talvez eu tivesse sido pega pelos donos daquela armadilha.
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