Confiar
Meu cavalo ficou de pé nas patas traseiras e empurrou as portas dos estábulos e comecei a cavalgar, o frio me atingiu e meu corpo inteiro tremeu, deitando-me sobre a sela, observei as portas do castelo, elas foram abertas os guardas do palácio lutavam com os rebeldes, ergui um pouco a cabeça e abaixei-a imediatamente quando uma seta passou a centímetros dela.
Esporeei o cavalo para que seguisse mais rápido, ousei olhar para trás, Henrique cavalgava logo atrás de mim e nós já passávamos pela ponte levadiça, o capuz permanecia sobre sua cabeça. Nós adentramos o bosque, o frio já me congelava os ossos. Continuei a cavalgar pela trilha que conhecia tão bem, quando as trilhas estreitaram-se ousei erguer o corpo novamente.
Ziguezagueei pelas árvores, cavalgando mais devagar, o príncipe seguia atrás de mim. Eu quase pude ouvir a voz do meu pai apontando os rochedos para que eu memorizasse o caminho, "É importante não se perder, os bosques podem ser perigosos", dizia ele.
Se não estivesse tão frio teria chorado, porém era meu dever manter o príncipe vivo.
— Vamos. — Falei com a mandíbula batendo pelo frio. — Nós estamos perto.
— Aonde exatamente estamos indo? — Perguntou.
— Confie em mim. — Pedi.
Atravessei o lago raso, o gelo quebrava sob os cascos dos cavalos, ainda assim continuamos e quando por fim adentramos no bosque de mata fechada, desci do cavalo e o amarrei a uma árvore, o caminho era estreito demais para os cavalos passarem.
— Temos que seguir a pé a partir daqui. — Avisei. O príncipe desceu do cavalo e também o amarrou.
— Como você aprendeu tudo isso? — Perguntou ele.
— O meu pai me ensinou. — Expliquei sem mais delongas.
Envolvi-me com os braços tentando manter um pouco do calor de meu corpo. Segui pela neve funda no caminho estreito de árvores, com cuidado para não tropeçar nas raízes. Os saltos das minhas botas não me ajudavam nesse terreno disforme, avistei a velha cabana do meu pai e apanhei a adaga longa que vinha carregando embainhada na bota.
O metal estava frio, pedi que o príncipe esperasse perto das árvores e fui até a porta, ela estava emperrada devido ao frio, forcei o ombro contra a porta. Que depois de alguns empurrões escancarou-se, olhei ao redor com a adaga empunhada tremendo em minha mão.
Não havia nada ali dentro, além do que o meu pai deixara da última vez em que esteve aqui. Tentei assoviar, todavia os meus lábios pareciam congelados, então simplesmente saí da casa e acenei chamando o príncipe que caminhou em minha direção, ainda com o cabelo oculto pelo capuz.
Ele entrou na cabana e eu fechei a porta para impedir a entrada do vento. Caminhei até a lareira, havia fósforos ali em algum lugar, tateei os móveis na escuridão, encontrei-os e tentei acender o fogo, entretanto devido ao frio minhas mãos tremiam descontroladamente e o fósforo não acendia.
— Deixe comigo. — Pediu Henrique, ele tirou o mantou e me entregou, enrolei-me na capa e tentei recuperar o calor do meu corpo.
As mãos do príncipe também tremiam, no entanto ele conseguiu acender a lareira. Aproximamo-nos do fogo, enquanto o calor das chamas preenchia o lugar, deixando a velha cabana de meu pai levemente acolhedora.
Olhei ao redor, sentindo-me quase em casa novamente, havia duas camas no cômodo, junto a uma janela a cama que eu ocupava e a antiga cama de meu pai na extremidade oposta. Suspirei já sentindo meu corpo mais quente, estendi novamente a capa para Henrique que me encarou parecendo irritado. Percebi um rasgo no manto.
— Fique com ela. — Ordenou. — Se não fossem as circunstâncias eu nem mesmo a teria pego.
Assenti de vagar, já me sentia quente o bastante então comecei a vasculhar a casa, meu pai às vezes deixava água ou vinho na cabana, encontrei uma garrafa de vinho no fundo de um armário, entreguei-a ao príncipe que tomou alguns goles, ele estendeu a garrafa para mim a observei por um momento antes de também tomar alguns goles pequenos.
— Vire-se de costas, por favor. — Pedi e ele pareceu confuso, mas obedeceu.
— O que foi? — Perguntou.
— Você foi ferido. — Avisei. — Sente-se, preciso dar uma olhada no ferimento.
Havia um corte no ombro direito do príncipe, não profundo o bastante para ser considerado perigoso, ainda assim, preocupante. Comecei a vasculhar embaixo dos cobertores e achei uma garrafa, tirei a rolha e cheirei. O líquido tinha o cheiro forte de rum. Imaginei que o álcool ali pudesse evitar infecções.
— Isso vai doer. — Avisei, enquanto Henrique tirava a camisa com sangue congelado. Despejei a bebida no ferimento e o príncipe gemeu, limpei o que escorria pelas costas dele e o rapaz me pediu a garrafa.
Ele levou a garrafa aos lábios e engoliu alguns goles da bebida, esperei até que ele vestisse novamente a camisa.
— Pode usar qualquer uma das camas para descansar um pouco, vossa alteza. Sugiro que se deite na que está mais perto da lareira.
— Não, eu fico na outra e você fica nela. — Disse ele, sua voz parecia diferente.
— Não vou dormir. — Avisei cautelosa, sabia que o príncipe não concordaria com o que eu estava prestes a propor, porém era necessário. — Preciso sair.
— Aonde você vai? — Perguntou.
— Tenho que voltar ao castelo, ver se a situação melhorou, se conseguiram capturar os soldados que tentaram invadir.
— E você espera mesmo que eu fique aqui enquanto você vai até lá? — Questionou ele irritado.
— Sim, eu espero. — Avisei.
— Que tipo de homem, fica escondido enquanto uma mulher vai verificar se a situação melhorou?
— O tipo de homem que espera um dia ser rei. — Rebati.
Nós nos encaramos por um momento, joguei a capa sobre os ombros e levantei o colchão da minha cama, apanhando outra adaga que mantinha escondida ali. Estendi-a ao príncipe.
— Você precisa ficar aqui, mesmo se fosse em meu lugar, não saberia como chegar aqui. Sei que é afrontoso que eu vá, mas como já disse antes alteza, sua vida é mais valiosa que a minha.
— Não posso deixar que faça isso. — Disse ele, segurando-me pelo braço.
— Posso deixá-lo inconsciente alteza, contudo se o fizer, o senhor ficará indefeso se alguém invadir a cabana enquanto eu estiver fora. Prometo que tomarei cuidado para que nada me aconteça, no entanto, eu preciso ir até o palácio, se tudo estiver sob controle, vosso pai deve estar louco sem notícias suas.
Ele ponderou sobre aquilo e então beijou minha testa, os lábios dele estavam frios e o príncipe logo interrompeu o beijo. Senti meu coração acelerar um pouco com o gesto, apesar de ter sido algo simples, afastando-me dele eu fiz uma reverência.
— Volto antes que o senhor perceba. — Avisei.
Henrique assentiu enquanto eu fechei a porta atrás de mim, dessa vez com o capuz para me proteger do vento, rezando para que ele não tivesse febre, eu comecei a caminhar em direção ao lugar onde deixamos os cavalos. Ao chegar ao lugar peguei o cavalo do príncipe e montei nele, esperava conseguir chegar a algum lugar minimamente seguro de onde tivesse uma boa visão dos portões do castelo.
Preocupada em deixar rastros que levassem diretamente ao príncipe, eu segui outro caminho, mais longo, porém poucos ousavam percorrê-lo. Atravessar o terreno onde fora travada a guerra a mais de vinte anos era suicídio, se você não soubesse onde estavam as armadilhas que ainda existiam no lugar.
Contudo pelo bem do príncipe eu precisava tentar. Segui com o cavalo lentamente pelo lugar, tentando evitar que o animal se machucasse, desviei os olhos do caminho abaixo de mim e olhei ao redor, por um instante pude ver uma luz a poucos metros de distância de onde eu estava, desci do cavalo.
Tirei a adaga da bota e comecei a caminhar pela neve fofa indo em direção ao lugar que achei ter visto a luz, escondendo-me atrás das árvores, espreitei o lugar, era realmente uma fogueira, entretanto eu não tive uma visão muito boa do que estava acontecendo perto dela, avancei para a próxima árvore. Dei um passo para o lado e não senti o chão, apenas afundei na neve, gritei apesar de tentar não fazê-lo, a queda foi de pouco mais de dois metros, caí em cima de algo razoavelmente macio.
A adaga voou da minha mão e eu ouvi um grito abafado além do meu. Ergui-me de um salto e uma pessoa tossiu, a coisa macia sobre a qual eu caí fora uma pessoa, percebi horrorizada.
— Quem é você? — Perguntei, tentando me afastar o suficiente para que ele não me visse na escuridão. Não bem o bastante para perceber que sou mulher. Percebi com terror que estava sem a capa, com certeza o trapo ficara preso lá em cima na árvore.
— Eu quem devo perguntar. Foi você quem despencou em cima de mim.
Apanhei a adaga presa a minha coxa e a empunhei, pronta para atacar o homem que estava aqui. Era difícil ver na escuridão do lugar, entretanto forcei minha visão para ver os contornos do homem que estava agora de pé e ele estava apontando um arco para mim.
Odiava receber ordens, especialmente de mulheres. Sempre soube que havia algo estranho nos modos de Eliza, mas pelos deuses, a mulher usa calças por baixo do vestido.
Virei à garrafa de bebida na boca, era forte o suficiente para me embebedar, todavia não o bastante para me deixar inconsciente, precisava pensar, se algo acontecesse a ela no caminho para o castelo, eu tinha que encontrar o caminho de volta.
Precisaria estar pronto para rastrear, apesar de não ser muito bom nisso e de estar sem uma capa. O frio lá fora me mataria de hipotermia, caso eu saísse sem estar agasalhado o bastante.
Joguei-me na cama e encarei o teto caindo aos pedaços da cabana de caça, girando a faca entre os dedos. Imaginei que tipo de mulher Eliza realmente era, a garota com certeza gostava de se impor e a audácia de dar ordens ao príncipe herdeiro, um riso se formou em meu rosto, apenas isso já poderia lhe dar uma visita as masmorras do castelo, sem contar que ameaçou me bater.
Bufei esfregando o rosto, certamente a bebida fora demais, meus pensamentos estavam confusos, se houvesse a entrada de alguém realmente perigoso, com toda certeza eu não conseguiria me defender.
Imaginei se dormir por uns minutos não ajudaria a clarear meus pensamentos, então fechei os olhos, no entanto mantive a faca colada a mim todo o tempo, qualquer barulho naquela porta que emperra facilmente me acordaria.
Meu coração acelerou com a possibilidade de esse homem ser o assassino de meu pai. Respirei fundo enquanto permanecia parada, sabia que naquela escuridão nem o melhor dos arqueiros teria mira o suficiente para atirar com precisão, mesmo estando a dois metros de distância.
Com certeza eu teria tempo de atacá-lo, se ele errasse o tiro. Senti minha mandíbula bater devido ao frio, meu corpo começava a tremer novamente, então ouvi a seta dele cair ao chão e o som de panos se movendo. Então um barulho de algo sendo partido e, o lugar iluminou-se. Por um instante achei que a luz viesse das mãos dele, porém vi um pequeno objeto redondo na mão do estranho.
— Eu tinha certeza de que você era mulher. — Disse ele, pisquei os olhos desesperada para conseguir vê-lo. O homem a minha frente tinha os olhos azuis e os cabelos castanho-dourado, as feições dele eram joviais, ele não deveria ter mais que vinte e dois anos.
— Como você soube? — Questionei irritada.
— Você caiu em cima da minha barriga.
— O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Deu para sentir que você tem seios. — Falou ele com um sorriso. Senti minhas bochechas queimarem. — O que você faz sozinha num lugar como esse?
Permaneci em silêncio tentando não demonstrar que o comentário deixara-me constrangida. O pequeno objeto nas mãos dele apagou-se e o homem vasculhou as roupas novamente a procura de mais, quando estávamos outra vez nos vendo ele franziu o rosto.
— Não vai responder minhas perguntas? — Inquiriu.
— Não vou responder a nenhuma de suas perguntas, enquanto não ver uma de suas flechas. — Informei.
— Minhas flechas? — Ele pareceu confuso.
Fiquei em silêncio ainda tentando me manter calma, mesmo que o frio me congelasse e a adaga de metal frio parecesse sugar o pouco calor que ainda restava em meu corpo. O homem puxou uma das setas e estendeu na minha direção, observei a seta de penas negras enquanto a luz se apagava.
— De onde você é? — Perguntei.
— Você não responde minhas perguntas, mas acha que eu devo responder as suas? — Rebateu ele.
— Pode acender outra luz? — Pedi. Ele bufou, entretanto, ouvi-o mexer nas roupas e a armadilha iluminou-se.
Não olhei para meu companheiro misterioso de armadilha, pois algo nas paredes me chamou atenção, eram marcas de escavações. Se essa armadilha pertencesse há época da guerra, as marcas de escavações estariam quase apagadas, os efeitos naturais de chuvas e calor, teriam modificado as paredes, estas marcas eram recentes demais.
— Há quanto tempo você está aqui? — Perguntei. — E antes que você diga que não vai responder, saiba que se eu estiver certa nossas cabeças podem ser cortadas a qualquer minuto.
— Estou aqui há uma hora mais ou menos. Por que pergunta?
— Essa armadilha é recente, deve ter sido escavada há poucos dias.
— Então quem a cavou vai aparecer logo para verificar se pegou algum animal. — Disse ele. Avaliei sua expressão tentando ver algum traço de que ele sabia o que ia acontecer, no entanto sua expressão era confusa e ao mesmo tempo temerosa.
— Ou pessoa. — Completei. — É uma armadilha funda demais para capturar animais.
— Certo. — Ele olhou para as paredes. — O problema é que não há como sair, já tentei de tudo.
— Você não tinha outra pessoa para te ajudar.
— Qual a sua ideia? — Perguntou cauteloso.
— Você vai ter que confiar em mim. — Avisei.
— Confiar numa completa estranha, da qual eu não sei nem mesmo o nome? Claro, estou ansioso por isso.
— Liza. — Falei, sem querer dizer meu título, sobrenome ou mesmo o nome.
— Diminutivo de Eliza ou Elizabeth? — Perguntou. — Eu me chamo Igor.
— Eliza. Minha ideia é a seguinte, você me impulsiona para cima e de lá eu te ajudo a subir. — Propus.
Ele inclinou a cabeça para o lado, apesar da escuridão eu pude ver o movimento, por estar mais próxima dele agora, do que estive antes. Igor suspirou.
— Vou por minhas mãos juntas, você precisará pisar nelas e segurar em meus ombros, vou te impulsionar para cima e você terá uma chance de se agarrar a beirada para subir.
— Tudo bem. — Afirmei. Coloquei a adaga de volta na bainha e coloquei o pé nas mãos dele, segurando-me em seus ombros, Igor me impulsionou para cima.
Agarrei a borda da armadilha, o homem segurou meu outro pé e apoiou cada um de meus pés com uma de suas mãos, então me ergueu novamente, apenas precisei usar os cotovelos para me apoiar e arrastar-me para fora do buraco.
Agora em cima, eu vi o meu manto rasgado e preso na árvore, ponderei minhas opções, eu poderia ir embora e correr o risco de congelar, ou poderia ajudar aquele estranho a sair do buraco. Imaginei que seria falta de caráter não ajudá-lo, já que só consegui sair de lá por causa dele. Suspirei e apanhei o manto gelado.
Terminei de rasgar o manto e o dividi ao meio, amarrei as pontas dobrando o tamanho dele, então amarrei uma das pontas na árvore e joguei a outra dentro do buraco.
— Suba. — Ordenei, o vento gelado me atingiu e senti meus lábios travarem devido ao frio.
Logo o rapaz saiu e eu o vi com suas muitas roupas quentes, quase o invejei. Igor ficou de pé e os cabelos cumpridos dele voaram ao vento, minha fita voou soltando os meus, nós nos observamos por um momento.
— Estou indo embora. — Avisei.
— Seus lábios estão roxos. — Disse Igor. — Deixei uma fogueira aqui perto, você pode pegar um dos meus mantos e se aquecer por uns minutos.
— Não sei se confio em você para sentar e conversar. — Falei com um riso nervoso, porém o meu corpo não aguentaria muito mais tempo no frio. — Você primeiro.
Segui o estranho até o acampamento improvisado dele, antes que chegássemos lá, ele me segurou contra si tapando minha boca com uma das mãos e jogando-nos no chão. Os piores cenários possíveis passaram pela minha cabeça nesse instante, meu coração acelerou, enquanto eu tentei alcançar a adaga em minha bota.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top