Capítulo Sete: The King
Naquele início de noite na capital londrina, Steven estava bem sentado à mesa da cozinha lendo o seu jornal, o que não era comum pois aquele conjunto de manchetes normalmente seria lido ao longo do dia, especialmente de manhã, após um café reforçado. Independente disso, ele simplesmente quebrara certo hábito exercido pela a maioria das pessoas, talvez porque não tinha mais o mesmo tempo para a leitura diurna - de fato, seu trabalho dentro das propriedades Butzek como metalúrgico fora intensificado pela alta demanda nas produções de peças componentes de objetos científicos e dentre outras coisas. - Sua esposa estava por ali, como sempre cuidando da casa ao mesmo tempo que fazia companhia a ele.
- Você deveria ler as suas matérias em um lugar mais tranquilo, não acha Steven? A cozinha não é um lugar muito apropriado para isso - comentou Clara, que parou por um instante para comentar.
Ele sorriu sem tirar os olhos da página que estava lendo.
- Como não há mais varanda para ler, prefiro estar perto da minha esposa querida - disse ele. Olhando para o teto, e suspirando, algo lhe foi lembrado. - Lembra quando eu ia ao quarto da Nathaly só para usar aquela varanda? Isso sem contar com a varanda da outra casa antes de mudarmos de bairro. Quando criança, Nathaly vivia indo ao meu encontro, atrapalhando inocentemente a minha leitura com aqueles olhos me olhando, querendo a minha atenção. - Ele deu alguns risos harmônicos ao abaixar o jornal da altura de seus olhos, emocionado ao lembrar daquele passado. Clara foi às suas costas e apertou um dos ombros dele.
- Ela é um verdadeiro orgulho para nós. Apesar das lutas que temos para não a perder por conta dos seus dons e ao estranho chamado, ela está conseguindo superar tudo isso.
- E já superou. Essa... Mãe Natureza não irá tirá-la de nós, de jeito nenhum. E nem terá a mesma ousadia em se apossar de você novamente. - disse Steven, intensificando seu ego. - Mudando de assunto, por que Nathaly demora tanto para sair do quarto? Ela vai se atrasar, não acha?
Nem houve tempo para que aquela pergunta fosse respondida quando Nathaly apareceu na cozinha. Tendo suas atenções voltadas a ela, eles a olharam dos pés à cabeça, deslumbrando-se pela forma como a filha estava. Nathaly estava usando aquele vestido e o par de saltos verdes claros presenteados pelos Butzeks em seu aniversário de dezoito anos; os seus cabelos negros presos em seu característico rabo de cavalo e franja jogada ao lado direito da testa estavam mais requintados, e sua maquiagem que realçava seus olhos completava a produção. Um sorriso tímido e nervoso surgia naqueles lábios tingidos por um batom da mesma tonalidade da pele de sua boca.
- Então... Como estou? - perguntou Nathaly, com um olhar apreensivo e nervoso.
Clara distanciou-se de seu esposo, apressando seus passos para estar perto da filha e apoiou suas duas mãos nos ombros dela, abrindo aquele peculiar sorriso de uma mãe bastante atenciosa e doce em seu carinho.
- Você está muito linda - disse ela sob uma grande admiração.
- Concordo com sua mãe, Nathaly. Aliás, você está parecendo com a sua própria mãe quando tinha a sua idade - argumentou. - E parece que vai a um... encontro.
Na mesma hora, Nathaly ruborizou, desviando suas atenções que estavam em seu pai para a sua mãe, no intuito de encontrar "refúgio" aos comentários finais tão diretos feitos por ele naquela brincadeira.
- Pare com isso, Steven. - Clara o olhou, e recebeu algumas risadinhas presas enquanto ele fingia ler seu jornal. Então, ela voltou com suas atenções à filha. - Não liga para ele, meu amor. Você sabe que seu pai é assim, brincalhão quando quer. O que importa é que você está linda, e superando suas indiferenças.
- Eu sei, mãe. Não se preocupe - disse Nathaly, espantando a vergonha com um sorriso. - E obrigada pelos elogios de ambos.
Clara passou uma de suas mãos sobre o lado do rosto de Nathaly.
A campainha tocou. Nathaly olhou rapidamente para a porta e logo olhou para a mãe. Ela parecia estar novamente nervosa, agora com o que iria acontecer naquele momento. Sorrindo, Clara tomou a iniciativa em ir atender. Quando a porta foi aberta e ela abriu passagem, John entrou ao apartamento da família. Ele também estava bem arrumado.
- Boa noite, Sr. e Sra. Kate. - Sempre simpático, os saudou com um sorriso.
- Sr. Mitchell. - Steven se levantou. - Aposentou sua farda de soldado?
John riu.
- Não, Sr. Kate. Se eu aparecer onde vamos daquele jeito, é capaz de todo mundo ficar preocupado. - Ele olhou para Nathaly e, automaticamente, observou sua produção feminina, o fazendo pausar por alguns momentos. - Agradeço por permitir... que a filha de vocês pudesse me acompanhar ao evento.
- Não precisa nos agradecer, John - disse Clara, com aquela simpatia ao jovem.
- Eu digo o mesmo, Sr. Mitchell. Mas olha... - pausou Steven, colocando sua mão no ombro do jovem, criando certo receio nele - Cuide bem da nossa filha. - Ele abriu um sorriso, para alívio de John.
- Não se preocupe, Sr. Kate.
John recebeu algumas leves batidas em seu ombro. Nathaly aproximou-se dele e ambos se despediram, deixando o apartamento. Steven fechou a porta e voltou olhando para sua mulher.
- Eu admiro a sutileza dele - comentou Clara, referindo-se a John.
- Sim... E quando eu disse que parecia que ela iria a um encontro, fui imediatamente repreendido, não é mesmo?
O casal trocou olhares, acabando em uma troca de sorrisos.
Em um terreno alugado, a equipe de circo se instalara na cidade com aquela imensa tenda para promover suas apresentações artísticas e culturais por meio de um tour pelo país. Nos bastidores, o diretor de circo, e possivelmente um empresário, andava por ali para acertar os últimos detalhes para o início do show. A equipe já poderia ouvir, de forma abafada, a chegada das pessoas pagantes para assistir.
- Como ele está? - perguntou ele, quando se aproximou de um de seus subordinados.
- Ele está adormecido nesse momento, senhor.
- Acorda-o, por favor. Está quase na hora para as apresentações. - Ele notou a aproximação de outro funcionário, que carregava uma caixa média de papelão, quando o outro se retirou para cumprir com o pedido, e o chamou: - O que é isso?
- É aquela caixa com os recipientes de aplicação, senhor - respondeu.
Ele fez questão de conferir o conteúdo da caixa, abrindo suas abas que compunham a tampa. Quando a tampa foi aberta, a luz do ambiente iluminou o interior da caixa, revelando pequenos frascos que armazenavam uma espécie de dose de cor avermelhada transparecida. Era bastante peculiar à tonalidade do mineral Cinábrio.
- Ótimo. - Fechou a caixa. - Deixa-a em um lugar que ninguém possa ver ou mexer além de nós, evidentemente. Caso perdermos o controle da situação mais uma vez, teremos isso para resolver. Tem sido extremamente útil.
O funcionário concordou com a cabeça. E a organização dos últimos detalhes prosseguiu nos bastidores.
No lado de fora, a fachada estava repleta de luzes amareladas e outras espalhadas pelos postes improvisados de madeira cravados em terra para iluminar os arredores do lugar, e algumas barracas de comidas e até acessórios estavam tendo suas presenças junto ao evento - o ambiente externo estava realmente bonito para aquela noite de céu limpo, embora a brisa um pouco fria da noite londrina marcasse presença comunal. - Havia ainda centenas de pessoas chegando, e no meio delas estavam John e Nathaly.
- Nossa... Como está lindo este lugar sob esse céu lindo - disse Nathaly, admirada.
- Sim - concordou John, olhando para o alto à altura da fachada. - Está tão lindo quanto os...
John pausou de repente em seu discurso. Nathaly ficou sem graça por uma sensação que apenas ela sentira em seu ser, e pouco notável exteriormente - o que seria?
- Então... Você ainda recebe cartas da Alice?
- Sim, sim. - Ele deixou de olhar para o alto para prestar atenção à amiga. - Ela ainda me manda. Eu já até pedi a ela para que escrevesse em menos linhas, pois o meu tempo no quartel não permite ler textos longos - riu, recebendo sorrisos dela. - E em uma dessas cartas, ela me contou que o pai dela está se recuperando muito bem, e que ela começou a estudar uma área envolvendo medicina igual a Raphaela, eu acho. Não entendo muito bem, sabe.
- Que boas notícias, John. E essa deve ser a área de estudo dela mesmo, como da Raphaela - comentou.
Um observava o sorriso do outro.
- Vamos entrar? - perguntou John - Temos que aproveitar do início ao fim.
Ela assentiu com a cabeça. John acabou indo à frente não porque ele deixara de ser um cavalheiro, mas por causa da própria Nathaly, que permaneceu parada por alguns segundos antes de seguir, possivelmente pensando em mais coisas em relação a toda a conversa até ali. E uma mera parcela do velho receio também poderia ser a causa das retrações isoladas, e repentinas, nela. Entretanto, nada que fosse realmente justificável para o seu comportamento.
"Que comece o espetáculo!", essa famosa frase enfática soara pelo megafone usado pelo diretor, e os instrumentais começaram a ser tocados no estilo circense para dar as boas-vindas ao público e assim iniciar o show. Houve vários números de apresentações ao longo do evento, deixando todos mais eufóricos, principalmente ao dono do circo, satisfeito com a performance. John e Nathaly também acabaram se envolvendo facilmente com o clima alegre, e riam e se divertiam juntos, esquecendo de seus respectivos problemas pessoais; John deu um relance, observando a tímida felicidade de sua amiga, que a todo instante colocava a mão na boca para abafar os risos. Nunca ela esteve tão alegre e esquecida dos problemas como naquele momento. Aquela noite tinha tudo para ser inesquecível. Nathaly percebeu os olhares rápidos e olhou para o seu amigo, que virou o seu rosto em direção ao palco.
O número final havia chegado, anunciado pelo próprio diretor naquele megafone. Aproximando-se de um de seus assistentes, sussurrou:
- Tudo certo?
- Sim, senhor - respondeu-lhe.
- Podem abrir as cortinas - autorizou, apontando para os fundos do palco.
As cortinas se abriram, revelando o que há muito tempo estava ali atrás aguardando o momento certo. Era uma jaula com um grande gorila aprisionado em seu interior, sendo alegoricamente anunciado:
- Senhoras e senhores, apresento-lhes o nosso xodó, o mais forte e inteligente... The-e-e-e King!
A plateia aplaudiu empolgadamente ao anúncio.
A jaula foi aberta. De início, o animal parecia resistir em deixar a cela, mas quando recebeu um estranho olhar do mestre de circo, ele deixou a jaula lentamente, centralizando-se ao palco. Após executar algumas coisas para atrair ainda mais as atenções e credibilidade do público e retornar ao centro do palco, os olhos castanhos do mamífero percorriam toda a plateia, encarando-a, até que seu olhar se encontrou com o de Nathaly. Ela teve uma sensação de que ele a olhava como se tivesse identificado e encontrado algo importante, criando-se uma conectividade; porém, era passada uma mensagem de raiva, ódio. A estranha troca de olhares foi interrompida quando uma ordem em se posicionar de costas para uma parede falsa feita de madeira foi dada, e o gorila foi; depois, outra ordem foi dada pelo seu diretor: abrir os braços e as pernas. Ele respeitou aquela ordem, para a admiração do público com sua esperteza; Nathaly observava já com uma outra fisionomia, tudo estava estranho para ela. Os membros do animal foram presos aos braceletes de ferro parafusados à madeira.
- Senhoras e senhores, sei que não é normal realizar este último número com um animal, mas peço a todos que não se atemorizem ou se escandalizem, ou me denuncie à polícia - disse o diretor, sempre usando o megafone para se comunicar com o público, arrancando risos das pessoas com a piada no final. - Garanto-lhes que não irão se arrepender.
Dando um sorriso, ele foi até um suporte com objetos cortantes, todos de uma mesma classe - faca -, e pegou um.
- Não seria eu a fechar esse número, senhor? - perguntou um assistente próximo a ele. O diretor o encarou.
- Mudanças de planos. Quero fechar com chave de ouro - respondeu, olhando de lado em direção à plateia.
Ele se posicionou frontalmente de onde o gorila estava, em uma distância mediana. Armando o objeto, preparou o lançamento em direção ao animal. Então, lançou a primeira faca, que cravou na madeira próximo à lateral do rosto do gorila; a segunda faca foi pega para o segundo lançamento, com direito a um pequeno malabarismo em seu manuseio - na plateia, Nathaly ficava apreensiva, para a percepção de John. Mas ela pôde disfarçar no último segundo. - Quando a segunda faca estava prestes a ser jogada, o gorila começou a ficar inquieto, exercendo uma grande força para se soltar, e um dos braceletes dos braços se rompeu. Não demorou muito para que os demais braceletes se soltassem, e assim estar livre. Os assistentes de palco tentaram contê-lo, mas foram lançados para longe; e o diretor, sabendo que não conseguiria, abandonou o palco às pressas. O animal emitiu um som ensurdecedor, mostrando sua raiva. Aquilo trouxe a certeza de que não fazia parte do número e o temor alastrou-se a todos os presentes, e houve um grande tumulto para fuga.
- Precisamos sair daqui - disse John, já vigilante, estimulando o seu lado de soldado.
Sem dizer nada, Nathaly se afastou de John, que foi coberto pelo mar de pessoas e o fazendo perdê-la de vista. O jovem ficou extremamente preocupado no meio do tumulto.
O gorila destruía tudo o que estava por perto, tomado por uma imensa revolta. Nathaly apareceu às suas costas, arriscando-se a chegar um pouco mais perto dele. Ele parou o que estava fazendo em sua ira e olhou para ela; a encarou raivoso ao reconhecê-la, mas antes que ele pudesse fazer algo, Nathaly usou seu poder telepático animal para tentar uma conversa e saber os motivos de seu momento indomável. Porém, houve uma reação estranha: eles tiveram uma rápida troca de imagens em suas mentes, como se fossem lembranças, e uma dor os acometeu, bloqueando a telepatia na sequência; Nathaly caiu sentada no chão, elevando sua mão à altura da testa. Mesmo desnorteado, o gorila ainda tentou avançar nela, mas foi espantado por John com um pedaço de madeira enquanto ele a envolvia com outro braço passado por trás dela; o mamífero se retirou. Perigo afastado, ele soltou a madeira.
- Venha - disse John, pegando na mão delicada dela.
Eles correram, chegando à área externa, junto às pessoas.
- O que deu em você para tentar enfrentar aquela coisa? Não me deixe preocupado, Nathaly - disse John, temeroso e ao mesmo tempo aliviado.
Nathaly ainda sentia o contato das mãos, e olhou para baixo. Percebendo a reação, John logo soltou a mão dela, caindo em sua real; vagarosamente, Nathaly reerguia seu rosto, até olhar para ele. Eles permaneceram calados, um olhando para o outro, enquanto a desordem e o barulho em suas voltas continuavam.
Dentro da cabana, o gorila andava por ali, ainda zonzo. Mas ele não se entregava, e continuava procurando o seu próximo e possível alvo: o diretor. De repente, ele sentiu uma picada na lateral de suas costas, e aos poucos foi perdendo os sentidos, cambaleando-se, até cair ao chão. Atrás dele estava o seu alvo, que injetara aquela dose avermelhada nele.
Ainda naquela noite, já tudo sob controle, a equipe passaria a noite por ali para desmontar a tenda no dia posterior. Decepcionado, o diretor não parava de encarar o gorila na jaula. Ele ordenou que seus subordinados o deixassem só, mesmo recebendo conselhos e insistência da parte deles para não estar sozinho com o mamífero, e deixaram a salinha. O homem estava pensativo, começando a caminhar pelo ambiente.
- Você me trouxe mais um prejuízo, garoto. Perdi o dia por sua causa. Mais um! - esbravejou, rangendo os dentes para não gritar. O seu animal apenas acompanhava-o no olhar. - Você perderá o posto de ser chamado The King. - Não achando o suficiente, ele decidiu se aproximar da jaula. - Ouviu? Será banido do nome por desrespeitar as regras e fazer tudo aquilo. Sou eu quem lhe dou as ordens, e não você! Nunca se esqueça que humanos estão acima dessa pirâmide de seres viventes sobre a face desta Terra. Sabe, estou a pensar em aderir outro animal no seu lugar. Esse sim irá se sujeitar às minhas políticas circenses. Está me ouvindo?
Ele chegara ao seu limite com o seu animal-joia. Um nível de estresse nítido. Eles se olhavam, um homem e um animal se olhavam, seriamente.
O gorila parecia ter tragado para si aquelas críticas, mas de forma negativa. A sua respiração tornava-se ofegante e seu dono sequer se importava, acreditando que fazia parte de mais uma repreensão recebida, que logo iria passar. Mas começou a franzir sua testa quando percebeu que os olhos de King estavam mudando para um vermelho brilhoso - muito provavelmente, nem o animal esperava por aquilo. - Ele não conseguia tirar seu olhar do animal, algo o tragava, até que o gorila começou a sugar as suas habilidades cognitivas.
- Abra a jaula para mim.
King pronunciou suas primeiras palavras graças ao ganho de vocábulo através de um poder despertado, que supostamente mexeu em seu DNA no processo, igualando em 100% ao DNA humano quanto às capacidades. Sem expressão, seu dono pegou as chaves e abriu a jaula, deixando-o livre. Dessa forma, o extraordinário mamífero também descobriu que poderia fazer suas vítimas lhe obedecerem, como marionetes sem cordas. Ele se transformara em um macaco-humano sugador de cognições, e telepata. Era assustador.
Enquanto conversavam em outro setor, dois dos funcionários avistaram o diretor chegando, sem pronunciar uma palavra.
- Está tudo bem, senhor?
Quando foi questionado por um deles por causa de sua estranheza ao se aproximar, ele o atacou com um único golpe de faca no pescoço; o outro tentou o conter, mas também foi gravemente ferido no pescoço. E os dois estavam sangrando no chão sob os olhares do diretor.
- Excelente - congratulou o gorila, que surgiu das sombras logo atrás.
Eles foram ao palco onde acontecera as apresentações daquela noite. Novamente, o diretor obedeceu às novas ordens: se posicionou naquela mesma forma que o animal ficara da última vez. A expressão antes serena do diretor transformou-se em desespero momentos depois. Ele se sentia preso à madeira, mesmo não havendo os braceletes. Aquilo era fruto da falsa sensação que o seu animal silvestre de estimação lhe trouxera com sua telepatia que poderia até ser hipnotizante.
- Agora, é a minha vez de realizar aquele número com você - disse o assustador King.
Ele pegou em mãos uma faca bem afiada e maior às outras, e abriu um sorriso malicioso. Um funcionário poupado pelo diretor surgiu ao lado do gorila, também sendo controlado. A faca foi entregue ao homem.
- Que comece o seu último espetáculo... diretor - anunciou King, malicioso.
Não houve gritos. O que aconteceu foi súbito, nem dando chances de sequer haver gemidos. O grande macaco desceu do palco e olhou às arquibancadas vazias. Ali, recordou da moça que avistara ao lado de um rapaz - John -, a Nathaly, e imagens da vida dela vistas naquele encontro de telepatias malsucedidas invadiram sua mente. Ele bufou.
- É você...
Ele fechou seus punhos, quase os estalando tamanha era a força, e deixou o circo, deixando mais ao fundo o ajudante do diretor olhando estaticamente para frente. À sua frente, estava o diretor morto com a respectiva faca cravada no meio de seu peito, atravessando suas costas e o fazendo estar preso à madeira de fato. E o mais intrigante: morrera de olhos abertos.
Dia seguinte. Subindo as escadas da universidade, Raphaela e Nathaly conversavam sobre a noite anterior:
- Um gorila se enfureceu no meio das apresentações? - perguntou Raphaela, estando impactada no olhar.
- Sim. Houve uma baita de uma confusão. Tentei contê-lo com meu poder telepático, mas algo me bloqueou, não consegui ter contato com ele.
Elas entraram ao pátio, indo às escadas internas.
- Que estranho isso. - Raphaela ficou calada por alguns segundos. - Mas e aí? Como foi o seu passeio com... John?
- Eu gostei - sorriu, mostrando sinceridade na resposta. - Ri muito. Nunca me senti tão bem como ontem.
- Não pergunto como foi o passeio em si, mas como o foi com seu amigo de longa data.
- Foi normal... O que quer dizer com isso, Raphaela?
- Que ele...
- Não, ele e eu não temos nada. Ele é apenas o meu amigo.
- Ora, não faça vista grossa, Nathaly. Aliás, nem é preciso usar a minha visão de raio-X para examinar o coração dele e lhe dar a confirmação. - Aproveitando que elas haviam chegado ao andar de suas salas, Raphaela parou e fixou seu olhar nos olhos da amiga. - Ele gosta de você - disse ela, com uma voz mansa e sorrindo.
- Sim, como amiga. Uma grande amiga.
- Não, Nathaly. Trata-se de algo que vai muito além de uma amizade. Sei que seus olhos verdes brilham intensamente quando você está com ele ou ouve falar dele. - Ela não obtinha reação dela para argumento. - Quando você sumiu por causa daquela viagem maluca no tempo com a Jennifer, ele ficou tão preocupado que parecia ter perdido algo valioso.
O barulho no ambiente ocasionado pelo tamanho movimento entre alunos e professores se intensificou ainda mais, chamando a atenção de Nathaly - ou seria um pretexto para mudar o rumo do assunto?
- Está na hora de irmos às nossas salas, Raphaela. Caso eu não lhe veja no intervalo, hoje não vai dar para você ir ao meu apartamento. Jennifer me chamou para mostrar algo que ela descobriu. Tchau. - Nathaly ia dando às costas.
- Nathaly - chamou Raphaela. Nathaly se virou para ouvi-la. - Preciso lhe contar uma coisa...
- Aconteceu algo?
- Não... Na verdade, sim... Quando eu fui ao apartamento onde Jennifer mora para pedir a ajuda dela para ajudar sua mãe e você no Egito, eu vi uma caixinha sobre a mesa da cozinha, parecendo ser de remédio. - Ela observava Nathaly em seu momento pensativo olhando para o lado. - Eu não sei lhe afirmar isso. Foi apenas uma impressão minha, talvez.
Nathaly olhou para ela, ainda estando sem palavras para reagir ao que ouvira. E assim elas estiveram, mudas por alguns instantes.
Em seu escritório presidencial da corporação, Eduard se encontrava sentado em sua cadeira executiva. Ele lia uma manchete de jornal que apoiara sobre a mesa, que dizia em seu título:
"Assistente de circo afirma ter ouvido gorila falar antes da estranha chacina da qual é acusado"
Quando terminou sua leitura, ele fechou o jornal. Sua concentração levou seus olhares ao um porta-retrato na mesa, onde sua esposa, a filha e ele estavam naquela foto, unidos. Ele não desviava o olhar do rosto de Juliana, perdendo um pouco a noção do que estava em sua volta, quando uma voz soou aos seus ouvidos:
- Piai.
Eduard ouvira Juliana lhe chamar de pai em alemão. Rapidamente, ele olhou em direção à porta, munido de uma esperança.
- Está ocupado, Sr. Butzek?
Não era sua filha a entrar à sala. Era aquela fiel secretária, com alguns papéis e prancheta junto ao seu colo, o olhando de forma receosa.
- Não - respondeu, voltando a si. - Pode entrar. Na verdade, você já está dentro - sorriu.
- Desculpe por entrar sem bater, Sr. Butzek, mas venho lhe entregar novos relatórios sobre o novo produto estético que desenvolvemos em laboratório. Já o adianto que está perto de ser lançado pelos nossos parceiros.
Ela chegou perto da bancada de seu chefe para entregar as documentações. Eduard não hesitou em estender o braço para pegá-los e analisá-los rapidamente.
- Ótimo.
A secretária olhou diferente para ele.
- Está tudo bem, Sr. Butzek?
Ele olhou em relance, demorando a respondê-la.
- Sim, senhorita. São apenas... coisas demasiadas em minha mente - disse ele. E levou sua mão ao queixo para massagear a região. - Por favor, entre em contato com o Sr. Hall assim que possível, e agende um horário para ainda hoje. Diga-o que preciso conversar com ele.
- Sim, Sr. Butzek. Com licença.
A secretária deu-lhe um sorriso simpático e deixou o escritório. Eduard mantinha seus olhos à porta.
Após mais um dia letivo na universidade, Nathaly fora ao apartamento de Jennifer, como combinado. Elas estavam no quarto, conversando sobre uma descoberta feita pela jovem norte-americana.
- Quer dizer que o seu poder da viagem no tempo não interfere ao nosso presente? - indagou Nathaly, cruzando os braços.
- Sim, Nathaly. Os valores e acontecimentos do passado não podem ser mudados se revivermos uma determinada situação - explicou. - Então, mesmo se eu conseguisse salvar a vida dos meus pais, eu não teria eles no presente. É como se houvesse uma força sobre a linha temporal. E meus poderes são limitados quanto a isso, nada posso fazer.
O semblante de Nathaly caiu ao ouvir tal conclusão, mas teve personalidade para se desvencilhar e não afetar diretamente sua amiga com a tristeza.
- E... sobre a viagem ao futuro?
- Tudo indica que posso fazer isso. Basta apenas eu igualar a velocidade da luz novamente para que ocorra isso através dos meus poderes - disse Jennifer. - Foi assim que retornamos ao nosso tempo atual daquela vez, não?
- Sim... É verdade - concordou, fazendo a lógica. - E o salvamento que fizemos de Newton? Como explicar?
- Fiz algumas pesquisas aprofundadas sobre isso. Sir Newton morreu por complicações renais, e não de um tiro - esclareceu Jennifer. - É bem provável que a invasão da polícia naquela hora pôde ter evitado a tragédia em fração de momentos, embora haja pouquíssimas informações sobre o caso. Não sei explicar muito bem.
Nathaly sentiu sede. Ela pediu autorização da amiga para beber um pouco da água do filtro. Jennifer a orientou pegar o copo dentro do armário da cozinha. Chegando lá, vagarosamente, Nathaly abriu a porta do móvel e, quando pegou o copo e ia o tirando dali, ela acabou derrubando uma caixinha não vista por ela. Pegando-a do chão, notou que era de remédio, e logo veio em sua mente o que Raphaela lhe contara. Então, abriu-a e tirou uma cartela. Ainda não conformada, destacou um comprimido do plástico. Quando seus dedos polegar e indicador entraram em contato direto com a medicação, na hora começaram a ser corroídos. Sua reação foi imediata, soltando o remédio, e o reflexo de defesa a fez também largar o copo, que era de vidro, espatifando-se no chão em um rápido som agudo. Após observar sua mão afetada, mas já regenerada, viu Jennifer a olhando da porta que dava à cozinha. Sua feição era de tristeza, já contando com a provável decepção de Nathaly por haver escondido aquilo dela.
Depois de mais um dia de trabalho, Steven saía das portas dos fundos que ligavam ao estacionamento de funcionários. Ele percorreu alguns metros até chegar ao seu carro. Tirando a chave do bolso e a encaixando no miolo da fechadura da porta, e rodando-a, sentiu que algo estava atrás dele. Ele teve a certeza daquilo quando uma sombra começara a crescer às suas costas, a ponto de ser refletida na lataria do veículo. Paralisou-se. Virando-se lentamente de cabeça baixa, Steven erguia seu rosto aos poucos, até que encarou o que estava o observando; porém, ele travou, não tendo a coragem em se mover, e o seu olhar ficou inerte, sem piscadelas.
Na cozinha do apartamento, Nathaly já dera os conselhos devidos a Jennifer sobre o uso periódico da medicação, sendo uma reação inesperada da parte dela para a Jennifer, que acreditou que levaria uma bronca e poderia levar uma conturbação à amizade entre elas.
- Espero que você tenha me entendido. Evite usá-lo, pois pode lhe fazer mal - disse Nathaly, paciente e atenciosa. - Quando a crise vier, seja mais forte do que ela.
- Tentarei, Nathaly.
- Tentar? Isso não é questão de uma alternativa. É uma decisão.
- Vou fazer isso. Sei que meus pais não estão felizes com isso, eles não me querem sofrendo assim. - Jennifer olhou para baixo por alguns segundos. - Sabe, você é como uma irmã para mim. E eu já disse isso uma vez, para seu pai. Mas, às vezes, você parece inspirar minha mãe, como se eu a visse em minha frente através de você com as atitudes e conselhos.
- Que bom, Jennifer - disse Nathaly sorrindo, enquanto colocava sua mão no ombro da amiga. - Preciso ir agora. Se precisar de algo, só me ligar. Estarei em casa.
Olhando em volta, Nathaly ainda lhe pediu outra coisa antes de ir:
- Ah! Como o primeiro sinal de que você me entendeu, cuide melhor do seu apartamento, dando uma organizada, está bem?
Abrindo um sorriso não muito espontâneo, Jennifer confirmou com a cabeça com seus braços cruzados. Nathaly deixou o seu apartamento, e ela permanecia ali, parada, olhando para a porta já fechada e sem ninguém. Seu mero sorriso se desfazia aos poucos, dando espaço às reflexões mais íntimas em seu ser.
Nathaly chegara ao térreo de seu apartamento com uma sensação de alívio por ter conseguido ajudar mais uma vez sua amiga - analisando o momento, era uma confiança tremenda para chegar ao ponto de se sentir daquela forma, pois a aparente situação não passou de meros conselhos verbais, o que possibilitaria o livre arbítrio à Jennifer. - Ela subiu até o número onde morava e abriu a porta, como sempre chamando sua mãe e logo em sequência o seu pai para avisá-los de sua chegada. Porém, ninguém a respondeu, concluindo que eles haviam saído. Coincidentemente à sua presença na residência, o telefone começou a tocar. Ela de pronto atendeu, talvez crendo que era Jennifer ou Raphaela, ou mesmo seus pais.
- Alô?
- Nathaly? Sou eu, John - disse seu amigo, que estava usando um telefone do quartel.
- Oi, John... Aconteceu algo?
- Não, está tudo bem. Na verdade, estou ligando para... convidá-la a sair comigo mais uma vez. O que aconteceu ontem colocou tudo a perder em nosso passeio. Queria redimir isso, do jeito que você realmente merece.
Nathaly ficou surpresa; deu um goto e não sabia o que falar. Estava envergonhada e sem jeito no outro lado da linha.
- Nathaly? Ainda está aí?
- Oh, sim. Estou, sim.
- Então... Você aceita para agora? É o único horário que tenho livre.
- É... - Ela segurava forte o telefone devido ao nervosismo. E quem sabe a mão não estava transpirando no material. Mas ela teria que dar alguma resposta - S-sim, aceito. Mas preciso esperar meus pais voltarem para avisá-los antes.
- Não se preocupe, Nathaly. Já conversei com eles sobre o assunto, aqui mesmo, pelo telefone - assegurou-a. E ela ficou calada do outro lado da linha. - Bem, preciso que me encontre no seguinte endereço, que fica aos arredores do quartel. Lá, nos encontraremos para irmos.
Após marcarem o ponto de encontro, eles desligaram seus telefones. A maneira como Nathaly estava diante do telefone desligado culminava ainda mais o seu nervosismo para um novo encontro amigável entre eles. Seu coração poderia estar querendo sair pela boca.
Nathaly chegara à região marcada por John. Ela estava às costas da entrada de um imenso galpão. Ouvindo um ranger, virou-se e viu que a porta menor embutida na porta de ferro rolante estava entreaberta. Ela foi até lá para fechá-la, mas algo a pedia para entrar ali enquanto resistia, pois era um lugar privado, seria uma invasão; no entanto, aquele pensamento foi mais forte do que ela, a fazendo entrar. Já dentro, deparou-se com um ambiente organizado, com grande estocagem, dando a entender que era algum armazém, possivelmente de alimentos. Conforme observava aquele ambiente, ela ficava cada vez mais distante da porta da qual entrara, sob o eco de seus passos provocado pelo seu saltinho. Ela parou, mas o eco continuou com dois passos extras. Havia mais alguém por ali. Seria algum funcionário? Um vigia? No mesmo instante, ela entrou em estado de vigilância, movendo seus olhos verdes de um lado para o outro sem mover o seu pescoço e corpo. Então, apelou para os seus poderes, usando a sensibilidade aguçada à presença, encontrada em alguns animais para alerta de perigo, permanecendo imóvel. A sua última sensação foi que alguém estava apontando algo em sua direção. Ágil em seu reflexo, Nathaly levou todo o peso de seu corpo para o lado, se jogando, quando um disparo de arma de fogo fora efetuado, atingindo uma mercadoria cheia de farinha. Uma cortina de fumaça branca formou-se. Em meio a dissipação da fumaça, John apareceu abaixando o seu rifle. Estando sério, ele começou a caminhar em direção à Nathaly, em passos firmes.
- Não sabia que era tão sensitiva e ágil assim, Nathaly - comentou ele, sem esboçar empatia, já erguendo e armando seu rifle novamente.
- John?
Ele não deu tempo para Nathaly continuar falando ao disparar mais uma vez contra ela, que novamente conseguiu se desvencilhar do tiro, e uma nova cortina de fumaça se formou com outro saco sendo atingido. Ela se escondeu atrás de algumas caixas empilhadas.
- John... Por que está fazendo isso? - Nathaly estava muito assustada.
- Ainda pergunta, Nathaly? Ontem era para ser o nosso dia, mas nada deu certo. E não foi por causa daquele gorila. Foi por causa de você, que a todo instante se retraía de mim.
Nathaly mantinha-se calada. Estava surpresa com o que ouvira. Mas ao mesmo tempo aparentava consentir às palavras dele, pois deixara seu semblante cair um pouco.
- Alice não está mais em nosso caminho. Lembra? Por que ainda tem medo de se abrir comigo? Há algum segredo que não queira que eu saiba, por isso o medo? - O silêncio vagava. - Responda, Nathaly! - gritou, assustando sobremaneira sua amiga.
A pressão das palavras era tanta que os olhos de Nathaly ficaram marejados, como se houvesse algo para dizer, mas entalado em sua garganta.
O silêncio persistente como resposta incomodou a John, que carregou e mirou a arma justamente em direção às caixas onde Nathaly estava escondida, e disparou. Em seu reflexo sobre-humano, Nathaly se jogou ao chão. Ela logo foi acometida por uma fraqueza devido a uma fumaça gasosa que passou a exalar da tubulação perfurada pela bala. John se aproximou dela, direcionando o rifle à altura da cabeça de seu alvo; segurando-se da agonia que sofria pela ação nociva do gás, Nathaly implorava com o seu olhar.
- Já sei o seu segredo. Mas você não será mais de ninguém...
O gatilho era levemente pressionado para o disparo letal, mas John foi tomado por uma moleza. A mesma fumaça do gás que enfraquecia Nathaly envolveu a ele entrando em suas narinas. Então, ele perdeu por alguns instantes seus sentidos, soltando a arma e caindo de joelhos no chão.
- John... - disse Nathaly, com uma voz fraca entre gemidos.
Vendo seu amigo naquele estado, ela enfrentou a fraqueza que havia em seu corpo, e conseguiu ficar de joelhos com as mãos sobre o chão, na posição de engatinho. Porém, as dores físicas ficaram mais fortes, e via no dorso de suas mãos as veias esverdeadas e pele sendo corroída em resposta aos sintomas; antes que elas pudessem piorar, com dificuldades, Nathaly identificou o furo do cano contentor da substância gasosa e soldou-o com a sua já debilitada visão de calor, estancando o vazamento. Aos poucos, a fraqueza sumia e suas veias voltavam para debaixo da pele, bem como a própria pele voltando ao seu normal, e ela obteve força instável para que pudesse socorrer a John.
- John? - Se ajoelhou, de modo a estar do mesmo tamanho de seu amigo - Está tudo bem?
- Mais ou menos... - John olhava para o alto com dificuldade - Onde estou?
- O que aconteceu?
- Não sei lhe dizer muito bem... Eu... tinha ido comprar algumas coisas fora do quartel e algo me abordou repentinamente... Um macaco de grande estatura... - Ele de repente arregalou os olhos - Era aquele gorila do circo. E ele estava acompanhado de duas pessoas, um casal...
- E você conseguiu identificar quem eram? - perguntou Nathaly, já temerosa com tudo e com a possível resposta.
Depois de forçar um pouco sua memória, John se espantou, e olhou para ela.
- Eram seus pais, Nathaly. - Ele se levantou rápido. Nathaly o acompanhou no movimento. - Não sei o que está realmente havendo, mas preciso salvá-los. Retornarei ao quartel e chamarei a polícia para ir até aquele circo. Talvez estejam lá.
- Não esqueça da arma, John.
Olhando para baixo, ele agachou-se e pegou o rifle.
- Por que eu trouxe isso? E está faltando balas.
- Nem queira... saber.
Deixando suas indagações e ponderações de lado, John chegou perto de Nathaly, e a olhou.
- Vai ficar tudo bem. Apenas vá para casa, está bem?
Ele repousou sua mão no ombro dela, e ambos tiveram seus olhares conectados. Então, o jovem deu às costas saindo às pressas; Nathaly apenas o aguardou sair de sua presença para entrar em ação, a ação com qual já estava familiarizada mesmo contra a sua vontade diária: a ação de heroína.
Imbuída daquele pensamento em salvar seus pais e entender a real situação, Nathaly dirigiu-se àquele circo para iniciar sua averiguação. O local estava ainda montado, do jeito que avistara da última vez, com a única diferença da presença da luz natural entardecida do sol refletindo sobre o terreno e sobre a tenda do circo. Aproximando-se, viu que fitas isolantes da polícia interditavam a entrada principal, mas aquilo não era um problema. Ela simplesmente trabalhou as flexões de seu corpo para passar por entre elas, sem cortá-las. Já na área interna, ela andava pelo setor onde ocorriam as apresentações, lembrando-se do caos da noite passada; erguendo os seus olhos para o palco, avistou um homem de costas, com as mãos para trás. Aquelas costas eram inconfundíveis para ela. Era seu pai.
- Então, foi aqui que vocês vieram ontem? Hm... Gostei do lugar. - Steven se virou, já sabendo que sua filha estava logo às suas costas a certa distância. - Sabia que viria, filha.
- Pai? O que está acontecendo?
- Acalme-se, filha. - Enquanto ele falava e dava mais alguns passos, Clara apareceu ao seu lado, o acompanhando, ambos com um sorriso amigável; Nathaly estava atenta. - Sua mãe e eu queremos conversar com você.
- E o que seria?
- Sabemos que você tem um caminho a seguir, um destino, traçado pela Mãe Natureza, dona de toda a riqueza natural da Terra, e que prometeu lhe dar como sua herdeira. Mas... e se a extinção dos seres humanos fizesse parte do seu destino, teria coragem em nos matar?
- Jamais faria isso com vocês, pai. Por que pensam isso? O que aquele gorila fez com vocês? - Os movimentos de seus olhos, que dividiam suas atenções aos seus pais, mostravam sua preocupação.
- Ele apenas nos mostrou a verdade, meu amor. Uma verdade que tanto queríamos saber. - Clara aproximou-se da filha, com extrema afinidade de mãe. - Uma nova era na Terra está chegando através de você. Você apenas precisa se entregar para o cumprimento do propósito - explicou, estando muito contente em seu sorriso. - E não se preocupe pela forma como seu pai lhe dirigiu a pergunta. Na verdade, estaremos isentos da grande extinção em massa na Terra: a dos humanos. Foi prometido que estaremos vivos ao seu lado para uma nova terra, e céu.
Nathaly não entendia muito aquelas palavras. Que plano era aquele, tão esquisito e confuso? Ainda os olhando, ela notou que os olhos de seus pais ficaram congelados, ausente de qualquer movimento, assim como seus corpos. Pareciam zumbis à sua frente, parados no tempo.
- Realmente achei que você iria confiar mais em seu destino ao ouvir aqueles que mais a amam nesse mundo, e a quem você mais confia, seus pais.
Aquela voz grossa soada às suas costas fez Nathaly se virar, vendo King parado com as mãos para trás a poucos metros dela.
- Como você consegue falar? O que fez com os meus pais, para que dissessem mentiras?
- Graças as injeções contentoras que o meu dono me dava, adquiri a façanha de me comunicar como um humano. Sobre os seus pais, eu os convenci com a razão. - Ele apontou à sua própria cabeça.
Nathaly tentou se comunicar verbalmente com seus pais, mas eles permaneciam inertes olhando para frente.
- Não adianta. Eles não podem lhe ouvir agora - disse o gorila. - Eu usei o meu poder telepático, que também me foi dado por aquele... líquido vermelho.
- Cinábrio... - Nathaly pensou alto. - O que quer?
- Que você aceite o seu destino. Agora!
- O que você fez os meus pais dizerem não é o meu destino. Eu não tenho nenhum destino.
- Todo o reino animal e vegetal sabe: você é a humana santificada pela a nossa mãe para salvar a todos nós. Ela prometeu às nossas gerações do reino que enviaria uma salvadora para nos livrar desse mundo infectado por atrocidades humanas com suas revoluções, e que nos usam como cobaias para entretenimento próprio, tortura, maus-tratos e até mesmo alimento! Você tem, sim, um destino: trazer de volta os princípios perdidos.
Ela baixou a cabeça em ponderação, e a reergueu.
- Não era isso que ela me falou. Esse plano de destruir a humanidade na Terra estava fora de cogitação. Ela prometeu harmonia.
- A única harmonia na história é o nosso bem-estar, filha de nossa rainha e mãe. Voltarmos a viver em paz no ambiente que ela preparou e nos criou. - O animal inclinou sua cabeça, caindo o seu semblante. - Uma paz que nunca pude ter. Vi minha família ser exterminada diante daqueles humanos, que nos caçavam para fazer-nos escravos na África. Eles destruíram minha família. E ainda fui vendido para atuar nesse circo. Muitas outras espécies também têm dito o mesmo destino nesse mundo.
Ouvindo aqueles relatos, Nathaly imediatamente começou a lembrar das estranhas imagens compartilhadas quando ela tentara usar sua telepatia contra ele no primeiro encontro, chegando à conclusão de que eram lembranças. Em um rápido flashback, foi visto os mesmos momentos de atrocidades até a venda contados por King. Até ali, havia uma veracidade nos relatos.
- Sinto muito - disse Nathaly.
De repente, King transformou seu caído semblante em um de ira, arregalando seus olhos, que criavam pequenos vasos sanguíneos em torno. Erguendo seu rosto e suas mãos com punhos fechados aos céus, soltou um grito a plenos pulmões, misturando a ira com um grande pesar. Tomado por aquela mistura de sentimentos, ele a atacou com seus poderes telepáticos, mas nada acontecia.
- Eu não consigo usar os meus poderes contra você - reconheceu. E olhou para os pais de Nathaly. - Mas eles sim continuam sendo vulneráveis a mim.
Nathaly temeu. Então, uma ordem telepática do gorila foi dada ao casal: Clara voltou à sua consciência; Steven, ainda sob o domínio de King, pegou-a pelos cabelos, puxando-a até a uma mesa para serrar madeira que estava por ali - parecia já ter sido premeditado para usar como plano B. - Com uma mão, ele pressionava a cabeça da esposa contra a mesa enquanto a outra segurava o cabo da serra circular motorizada de correr sobre a superfície, ligando-a. Clara implorava ao seu esposo, e chamava pela filha, sem entender nada.
- O que está fazendo? - perguntou Nathaly, assustada.
- O que um dia eles, os humanos, fizeram com a minha família. Sei que você veio para nos salvar deles, mas quero ajudá-la nessa missão. Sem seus pais, não haverá sentimentos que a impeçam de abraçar o destino dado a você pela Mãe Natureza, a nossa rainha. Desde já, desperte a frieza mortificada em você até agora.
- Nathaly!!! - gritou Clara, chorando no cume do desespero.
Olhando para trás, Nathaly viu que a serra já estava próxima, a aproximadamente trinta centímetros, do pescoço de sua mãe, fazendo-a sentir um mero vento provocado pelo rápido giro do equipamento e o barulho cada vez mais intenso aos seus ouvidos. Era preciso agir rápido. Ela tentou correr para salvar sua mãe, mas recebeu um abraço por trás do gorila.
- Eles não são mais a sua família. Agora somos nós a sua família, ao lado de nossa Mãe - falou ao ouvido dela.
Em um instinto tanto quanto curioso, Nathaly se segurava para não usar a violência contra ele, tentando arranjar uma outra maneira de se libertar do abraço forte dele. Mas não tinha escolha, a vida de sua mãe estava em jogo. Então, ela equalizou a força, absorvendo a mesma força de um gorila, e a exerceu sobre ele empurrando, soltando-se; mesmo sabendo da inutilidade àquela altura, Nathaly usou seu poder telepático animal com toda a força que tinha. Como resultado, criou-se um campo magnético indo de encontro à cabeça de King, que certamente iria ser automaticamente bloqueado por sua mente mutante, mas não evitando a colisão. O impacto o levou para fora do palco, caindo sobre as arquibancadas e ascendendo a poeira dos destroços; Nathaly caiu de bruços apoiando suas mãos no chão, estando fadigada mentalmente.
- Filha! Aaaaah!
Suas atenções voltaram rapidamente à sua mãe.
- Perdoe-me, pai - disse Nathaly, consigo mesma.
Ela usou sua visão de calor no dorso da mão de Steven que estava sendo utilizada para pressionar a cabeça da esposa contra a mesa. Mas não contou que, naquela mesma hora, os efeitos manipuladores que estavam sendo exercidos nele se desfizeram, e em sã consciência ele acabou sentindo a ardência dos raios repentinos, soltando um gemido à reação. Por outro lado, Clara conseguiu se soltar segundos antes da passagem da serra não evitada por seu marido, chegando a cortar alguns fios de seu cabelo. Foi por pouco. Aliviada, Nathaly se colocou de pé, e olhou para trás, em direção às arquibancadas. King já não estava mais por ali.
- Filha - disseram Clara e Steven, em uníssono, quando se aproximaram dela.
- Por que paramos aqui? Eu não lembro de nada - disse Steven entre queixas da ardência que ainda permanecia sobre sua mão.
Quando Nathaly abriu a boca para o responder, eles ouviram a chegada dos oficiais ao interior da tenda, e ela acabou por ouvir a voz de John conversando com os policiais. Então, lembrou-se de ir para casa a pedido de seu amigo.
- Depois eu explico tudo em nosso apartamento.
Ela se retirou da presença dos pais ligeiramente. John e alguns policiais da corporação se aglomeraram para prestar socorro ao casal enquanto outros oficiais já vasculhavam o local munidos com suas armas. Mais distante, Nathaly ainda estava por ali, mas escondida atrás de alguns barris vazios. Dando uma espiada, ela acabou assistindo o tamanho zelo demonstrado por John aos seus pais, cada cuidado e diálogo. Baixando a cabeça, seus delicados lábios se remexeram, até que ela não pôde segurar o seu lindo sorriso. Saindo de seus devaneios, deixou o lugar primeiro do que todos.
No início da noite, Clara, Steven, Raphaela, John e Nathaly estavam reunidos na cozinha do apartamento pertencente aos Kates. Raphaela estava cuidando do ferimento na mão de Steven, enfaixando-a.
- Nada mal, senhorita - elogiou Steven, olhando sua mão enfaixada. - Se eu fosse você, já pegaria o meu diploma. - Ele e todos riram do hilário comentário.
- Não, Sr. Kate. Eu ainda tenho muito o que aprender. - Raphaela olhou para Nathaly. - A filha de vocês que é muito mais inteligente do que eu. - Voltou a olhar para Steven, sorrindo. - E isso é mais do que certo.
- Ainda arde um pouco aqui. Sinto como se o calor tivesse alcançado um dos tendões.
Raphaela, ouvindo às novas queixas de seu paciente, fingiu estar pensando em uma resposta, quanto na realidade estava usando sua visão de raio-X para diagnosticar a região.
- Não. Não houve nada demais, Sr. Kate - sorriu, piscando um dos olhos à Steven, confirmando que usara seu poder. - Apenas siga as minhas orientações para a recuperação.
- Agradecemos, Raphaela - disse Clara. - Foi muito gentil da sua parte.
- Imagina, Sr. e Sra. Kate. O que for preciso, estarei à disposição.
Vendo que tudo estava sob controle após aquele indireto aval da jovem e estudante de Medicina, John começou a se despedir de todos. Como Clara estava ocupada dando atenção ao seu esposo, Nathaly foi quem tomou à frente para acompanhar o amigo até a porta. Os dois ficaram um de frente para o outro.
- Desculpa por lhe dar tanto trabalho com essa situação - disse Nathaly.
- A culpa não foi sua, Nathaly. Todos sabemos que, de alguma forma, aquele gorila entrou em nossas mentes para fazer tudo aquilo. Só não sei por que. - John olhou para os lados. Nathaly ficou calada, sabendo de um porquê que ele tentava descobrir junto a sua inteligência. - Já não bastasse as pessoas, agora temos animais anormais andando por aí. Todos são aberrações, só estão aí para infernizar as nossas vidas, não acha?
Nathaly deu de ombros, não sabendo responder. Afinal, ela tinha consciência de que ela não era normal como John pensava que ela fosse. Certamente, o medo de como ele reagiria ao descobrir sobre ela e tirar a máscara da forçada mentira que apresentava veio novamente, pois a amizade não poderia ser sinônimo de completa compreensão. Em uma reação quase que automática, ela baixou seu olhar, inclinando um pouco sua cabeça, até que sentiu levemente o dedo indicador de seu amigo sob o seu queixo, fazendo-a erguer o rosto.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não... Nada - sorriu. - Apenas estou um pouco sobrecarregada com tantas coisas.
John a pegou pela mão. A sua outra mão apoiou-se sobre a dela.
- Pode contar comigo. Sou o seu... amigo.
Eles se entreolharam, deixando um vácuo à conversa. Aquele vácuo foi interrompido logo na sequência, com chamados da cozinha de Clara para o jantar, convidando o próprio John. Mas ele educadamente o recusou, pois precisava voltar ao quartel. Então, ele se despediu de Nathaly, que o avistou andando até o elevador no final do corredor e recebeu um tímido sorriso dele. Ela fechou a porta vagarosamente.
Após uma janta descontraída com a presença de Raphaela à mesa, Nathaly estava em seu quarto tendo aquele momento íntimo com ela mesma. Ela passeava pelo cômodo com seus dedos entrelaçados e cabeça baixa, um comportamento característico de um pensante. Seus pensamentos a levaram para uma gaveta do criado-mudo ao lado da cama. Ela abriu aquela gaveta e tirou dela aquela mesma caixa de bombons dada por John, rendendo-lhe um inevitável flashback, com toda a certeza; ela ergueu seu rosto, olhando para o nada enquanto segurava aquela caixa firmemente contra seu colo.
- Filha?
A voz de sua mãe a fez rapidamente guardar a caixa de volta à gaveta do criado-mudo. Ela virou-se lentamente para ela, permanecendo muda.
- O que foi? - Clara fechou delicadamente a porta e se posicionou quando dera alguns passos à frente. - E essa carinha, me olhando com o brilho nos olhos?
Nathaly não respondia. Parecia sem coragem para dizer algo, até que:
- Eu... Preciso contar uma coisa.
Tomada pela curiosidade, sua mãe a esperava prosseguir com as palavras. Nathaly precisaria de coragem para exteriorizar o que estava dentro de seu ser naquele momento, ou que já vinha estado dentro há um tempo. Um desafio.
Butzek Corporation. Eduard ainda estava em sua sala executiva mexendo em seus papéis. Mas ele não estava ali apenas para aquilo, já estava até mesmo entediado pelo dia que teve. Ele estava aguardando a chegada de George, que confirmara comparecimento à empresa alemã.
- Obrigado por vir, Sr. Hall. Mas temos que resolver essa situação da minha filha.
- Eu já lhe disse, Sr. Butzek. - George andou até o empresário. - Não tenho poder para tirar ninguém do coma. Apenas sou um cientista que se aventura na área da Biologia.
- Desculpe-me Sr. Hall, mas tenho que dizer que não lhe designei para cuidar dos estudos em Juliana para me dar uma mesma resposta. E conheço a tamanha competência do seu trabalho na área científica.
George suspirou, muito provavelmente irritado com a pressão desnecessária em seu ponto de vista.
- O teor de resíduos daqueles minerais está bastante alto para a recuperação da sua filha. Por isso, sempre lhe dou a mesma resposta ao quadro. - O professor deu às costas. - A propósito, não sei por que o senhor ainda insiste em investir nesses minerais. São deles que estão surgindo coisas estranhas, afetando pessoas e... - Voltou a olhar para Eduard - animais.
Eduard sorriu em reação de discordância ao que ouvira. Agora, foi a vez do alemão virar as costas, indo à sua mesa e tomando seu assento, tranquilamente.
- Sei que fala isso por conta do que saiu na manchete de hoje. - Eduard pegou o jornal marcado na matéria e mostrou a ele. - A mídia pode burlar muitas coisas, Sr. Hall. Ou se não, houve um delírio por parte da vítima. Vamos combinar: animais não falam, e nem entram na mente de ninguém. Já tentei conversar com um macaco e, apesar de sua extrema inteligência, nada me respondeu. Apenas queria bananas.
George aproximou-se da mesa, olhando firmemente para o cientista.
- Você sabe que eu não estou dizendo palavras ao vento. Como cientista, eu sei o que se passa mais ou menos em sua cabeça. Você só não quer admitir que algo está errado e que você procura saber de perto cada situação ligada às coisas estranhas - disse ele. - Em meio a tudo isso, sua falsa ingenuidade deixou sua filha na cama, vegetando. Cuidado para as coisas não piorarem, Sr. Butzek. Boa noite.
Educadamente, o mestre cientista e biólogo deixou a sala, deixando Eduard com seus olhares fixos à porta enquanto pensava. E o que pensava?
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