V. Dias Corridos
Estranhamente, me sentia revigorado da longa inércia. Ainda assim, falhei nas primeiras tentativas de retomar a subida. Sem desanimar, consegui me acostumar com as pedras e subi num bom ritmo, andar após andar.
A água acabou, eventualmente. Para matar a sede, precisava lamber as paredes úmidas da caverna espiral, um horror. Era o preço a se pagar por me demorar lá dentro.
Dormi tantas vezes entre as subidas que meu ciclo de sono com certeza estava desregulado. Entre pesadelos, acordava sem mais conseguir dormir. Ou dormia tanto que meu corpo inteiro pesava toneladas.
Via nos sonhos o rosto dos meus amigos e festas da faculdade em que fiquei escanteado a meu próprio lado. Acordava muito triste, mas me forçava a dissipar o sentimento em respeito a mim. Não cairia novamente na minha espiral.
Há muito, acabaram as frutas e poucos sanduíches restavam para nutrir meu corpo caquético e exausto. A pedra com inscrições desconhecidas ainda estava comigo. Ao menos, os andares já estavam imensos. Faltava muito pouco para chegar na sala da qual caí. Todas as dores da vida resultaram naquele momento, nas últimas pedras agarradas até o topo. Uma dor triste. Lentidão, angustiante. Mas eventualmente...
Lá estava o último andar iluminado de cristais! Esse, estranhamente, tinha piso. Arenito, como do templo. Olhei uma última vez para onde fiquei preso. Pela dor e principalmente por me sentir desnorteado, não me senti alegre ou vitorioso. Nem aliviado. Saí de lá com um gosto amargo na boca cheia de sede.
Segui o piso de arenito por um túnel que eventualmente se converteu em escadas circulares. Subindo-as, percebi que voltei ao templo. Mancando, notei o piso desabado de vários dias antes e a sala logo abaixo. Não me ative aos detalhes nas paredes e do chão, o quão sufocado estava o ar. Só quis sair o quanto antes dali.
Refiz o caminho guiado por Fábio com muita cautela e reencontrei as escadas da pequena pirâmide ao topo do monte Qadeen. Feito isso, ofegante, senti meus olhos lacrimejarem diante da luz do Sol. Estava de tardezinha, quase anoitecendo! Admito, um sorriso se abriu no meu rosto e não me contive. Aquele pôr do Sol do deserto que deixa o céu multicolorido não era triste nem solitário como o do Bar Amarate. Era um de sorrisos infantis, o alívio de realmente estar vivo.
O cansaço me pesava muito. Desci o monte pelos caminhos de pedra e reentrei nas ruínas da Cidade Azul. Me perguntava sobre o que os pesquisadores achariam do artefato que trazia na mochila. Sentia a areia nos sapatos, o suor encharcando as roupas sujas. Imaginei aquela cidade com vida, minha vista ficando escura, o corpo ainda mais pesado. Devagar, o acampamento onde deixamos nossos camelos e caí no chão, desacordado.
Sem sonhos, num dos melhores sonos que já tive, aos poucos acordei no hospital, encarando o teto azul e as paredes ladrilhadas. Me mexia com dificuldade e até estava enfaixado. Curandeiros tinham cuidado de mim enquanto estive desacordado.
Uma enfermeira, minutos depois, me checou. Perguntou como estava, se tinha dor, o de praxe. Fui informado que estive dormindo por bem dois dias e desaparecido por onze. De fato, uma curandeira veio checar meu estado e contou do meu estado de desidratação e subnutrição quando fui levado ao hospital por uma equipe de pesquisadores que estava no local.
Depois disso, não há muito o que contar ao senhor. Os dias passaram corridos, chatos, imóveis. De divertimento, só tinha um livro e a comida do hospital em Carmela era terrível! Não recomendo ao senhor. Estava começando a ficar ansioso por ninguém me visitar, quando Fábio veio, primeiro até que meus pais e os outros. Sorriu para mim e jogamos conversa fora. Extremamente preocupado comigo, pediu efusivamente desculpas por não ter prestado atenção se todos do grupo estavam junto com ele.
— Foi Sara quem deu pelo seu desaparecimento quando você sumiu. Não sabe do meu desespero! Deixei o grupo esperando próximo aos camelos enquanto desesperadamente vasculhei o templo, para além até da nossa rota, até que encontrei um buraco no assoalho. Presumi que você caiu num precipício e, chegando em Carmela com todos, que estavam bastante preocupados, notifiquei a universidade e o corpo policial. Mandaram equipes de busca horas depois, mas foram incapazes de descer àquela distância tão grande da caverna. Nem temos mapeado todo o templo também! Pesquisadores vieram junto, mas sem sucesso no fim das contas. Raimundo, foi um milagre você ter sobrevivido, quando outros pesquisadores nem sequer tiveram os corpos encontrados.
Também falou da pedra que encontraram na minha mochila e disse que era uma descoberta extraordinária para o processo de tradução dos hieróglifos. E seguiu falando por vários minutos o porquê disso, enquanto eu ouvia com um sorriso amarelo. Nos despedimos com mais um pedido de desculpas dele.
No dia seguinte, meus pais vieram, profundamente emocionados. Ainda assim, pensava nos amigos. Realmente tinham se preocupado comigo? Começava a duvidar. E os pensamentos prolixos que tive na caverna começavam a voltar com todo aquele tempo livre que tinha na recuperação do hospital. Ler não me ajudava.
Mais dias se passaram, monótonos e tristes. Até que finalmente todos os outros vieram. Além daquela preocupação momentânea e superficial com meu estado, me atualizavam do que acontecia em Fantasto (mais revoltas republicanas) e do quão felizes estavam de eu estar bem. Sara, particularmente, quase não largava minha mão e me sorria com ternura similar ao sonho que tive. Por um instante, não me senti tão deslocado.
Antes de todos partirem, desejei ficar um momento a sós com Lorena, a que ela aceitou com certa relutância. Fechando a porta do quarto, comecei me desculpando pelas asneiras que falei sobre Ferreira e perguntei como era estar junto dele.
— Ainda tá pensando nisso?! Raimundo, você ficou preso tanto tempo e eu jurei que nunca mais te veria! Não importa essa briguinha idiota. Nos conhecemos faz tanto tempo que isso não importa. Sempre voltamos a ficar juntos no fim do dia.
Falei que estava aliviado. E ela contou que sim, estavam bem juntos.
— Você merece alguém que te trate bem. Fico feliz que me enganei sobre ele. Eu achei que você só mandaria uma carta e não viria...
— Eu não guardo rancor. Achei que você me conhecesse melhor que isso!
Rimos alto juntos com algumas histórias que ela disse ter ouvido enquanto fiquei desacordado. Era ótimo estar com ela depois de tanto tempo, doutor. Com certeza é uma das poucas pessoas nessa vida que eu seria capaz de dizer que um "eu te amo". Podíamos não ter o entendimento completo um do outro, mas tentávamos, com todo o coração.
Finalmente tomei coragem de contar para Lorena o que não disse aos outros. De todos os pensamentos que tive lá dentro e do quanto me fizeram mal. Ela ficou muito emotiva e outro pedido de desculpas recebi. Nossa amizade teria morrido junto comigo. Brigados...
Ao mesmo tempo, ela disse que eu não deveria estar pensando nessas coisas. Que deixasse para tratar com um psicólogo, porque foi de fato uma experiência traumatizante que só conversando com ela não seria superada tão facilmente.
— Esquece disso por enquanto, menino! Você saiu de lá por conta própria escalando sozinho! Deveria estar contente.
— Também acho, mas eu estaria mentindo se eu contasse que minha vida mudou depois de ficar preso naquele buraco. Que sou mais grato por tudo, que encontrei Deus. Não, longe disso. Acho que não fiz mais que minha obrigação.
— Mais que sua obrigação?! Você ter saído foi um milagre!
— Talvez. Mas eu não sinto que tudo vai melhorar. Vocês vão seguir suas vidas, eu vou continuar sendo o mesmo Raimundo, com os mesmos interesses e a mesma conversa chata, agindo como um palhaço!
— De onde você tirou isso? Eu amo conversar com você! É uma das poucas pessoas com quem consigo ser sincera. Eu sei que você gosta de mim, e eu de você, mas não podemos ficar sempre juntos. Você sabe disso.
— Esse não é o meu ponto.
E expus mais um pouco do que eu senti lá dentro, do meu abandono e da falta de sinceridade que eu tinha com os meus amigos. Eu tenho tanto medo de passar mais um ano sozinho no quarto, sem ter quem chamar em casa. Sem ter quem amar. Tendo os mesmos sonhos, desejando as mesmas coisas. Alimentando minha espiral...
Lorena desejou sinceramente que eu me recuperasse bem. E me fez prometer que estaria aqui hoje com o senhor. Nos abraçamos e ela me deixou, com o olhar brilhante de seus olhos castanhos.
Mais tarde naquele dia, vi uma parte do show de feitiços do Dia de Todos os Espíritos. Uma tradição da região. Silencioso, mas lindo. Consegui me levantar e me apoiar na janela para ver melhor. Com certeza eram bruxos muito talentosos do norte.
Explosões de cores. Vermelho, azul, lilás, dançando no céu como se espíritos fossem. Um tributo aos espíritos que não aparecem mais na região do deserto.
Fiquei me perguntando o que os outros estariam fazendo lá em Brasas. Lorena e Tomás, se amando com certeza. Provavelmente na rua, pois Lorena adora sair quando pode. Alphonsus estaria tocando em algum bar, entretendo dezenas de meninas loucas por ele, quem sabe rapazes também, nunca se sabe. E Tomás, com certeza lançando feitiços com amigos de zoação. Todos eles se divertindo enquanto encarava estático a explosão do mundo.
Sara nem sequer passou pela minha cabeça. Tinha medo de conjecturar se encontraria alguém naquela noite e amaria essa pessoa no meu lugar. E assim perderia mais uma amiga. Uma melhor amiga. Um sonho meu. Que triste seria. Ela que tanta dificuldade tive de me aproximar e hoje mal consigo me imaginar vivendo sem ela. E no entanto... cada vez mais nos falamos menos, foi inevitável. Não fico necessariamente triste quando constato isso. Só... melancólico do que eu poderia ter feito de diferente. Se nossa amizade e amor estavam fadados MESMO ao fracasso. Porque nunca me sentia plenamente à vontade perto dela, pensando agora. Não era eu quem ela amava. Mas uma imagem projetada nela de mim. E que se me conhecesse, com certeza se decepcionaria de quem ficou gostando esse tempo todo. Uma pena, não, doutor?
Fiquei desejando com todas as forças que o ano que vem fosse melhor. Que realmente tivesse amor, estudasse o que queria estudar, conhecesse lugares, fugisse mais de mim. Tive vontade de fugir em meio ao show pirotécnico. Não aguentava ficar para trás enquanto meus amigos... o senhor sabe onde quero chegar.
Acho que adiantei a conclusão durante o que eu disse a Lorena que acabei de relatar ao senhor. É isso. Fim da história. Não sei se me sinto melhor depois de falar tudo o que pensei e penso, sem me censurar. Talvez tenha algum mérito nisso. O senhor é um estranho e mesmo assim não me sinto acanhado de falar dessas coisas, por mais chatas que devam ter parecido.
Muito obrigado por me ouvir... o que... o senhor acha que devo fazer?
11 de novembro de 799 Depois da Fundação
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