II. Pernoite

Inicialmente, vimos só casas de taipa e algumas plantações, assim como nos arredores da minha própria cidade natal. Quando fomos nos aproximando e caminhando pelas primeiras ruas asfaltadas, vimos mais à frente uma construção imensa se comparada às demais, de arenito e estilo de arquitetura bem parecido ao da universidade — mesmo que inferior.

Ferreira nos explicou que aquela era a prefeitura, onde o irmão dele trabalhava. Com animação que pareceu artificial demais para mim, aproveitou para nos descrever o que realmente era Carmela: um entreposto da universidade para pesquisar sobre as ruínas da Cidade Azul, como elas são chamadas.

Basicamente, moram na cidade os pesquisadores e os trabalhadores que fazem o entreposto funcionar. Também podem ser vistos turistas (especialmente ricaços de Brasas do Sul) se hospedando na orla do oásis em certas temporadas, principalmente no inverno, quando o mormaço é minimizado.

Na rua estreita, algumas crianças que ainda jogavam bola se afastaram assustadas da nossa pequena caravana e seguimos em um ziguezaguear de ruelas sujas de areia do deserto. Chega a ser cômico e trágico como até em uma cidade universitária existe pobreza.

Avançando até a prefeitura, já cercada de casas de um e dois andares em melhores condições e mais recuadas das ruas de pedra, finalmente pudemos ver o oásis, que já refletia menos luz. Uma cerca de madeira e um portão separava os bangalôs do restante da cidade. Era neles que ficaríamos.

Deixamos os camelos em um estábulo nas proximidades a um preço bem salgado e entramos na prefeitura. Algumas burocracias depois e encontramos o irmão de Ferreira, que se apresentou como Fábio. Parecia estar na casa dos 30, sujeito de bigode espesso, cabelo curto com duas entradas já profundas e óculos com armação de tartaruga. Das roupas, só lembro que usava um terno marrom. Em pleno deserto!

Tinha uma cara cansada, de estresse crônico. Toda vez que penso em trabalhar em alguma pesquisa nas ruínas, tenho medo de acabar como esses funcionários públicos eternamente atarefados que levam os problemas para casa e vivem com insônia. Pelo menos já vivendo com insônia, estou com meio caminho andado.

Sem muitas cerimônias, por se dizer ocupado (apesar de há muito ter dado ponto), nos deu as chaves para dois bangalôs de três quartos e combinou conosco, com sua voz monótona, do nosso ponto de encontro ser em frente ao portão principal da prefeitura, às 6 horas. Lá faríamos o pagamento da estadia também. E desejou sinceramente que aproveitássemos a pernoite.

Por cortesia, Lorena, dirigindo-lhe um sorriso, até perguntou se queria ir com o grupo comer em algum dos bares, ao que Fábio recusou, mas muito agradecido. Quando saímos do seu escritório, Ferreira zombou dele, dizendo que, com aquele jeitão, a única mulher que ele beijou foi uma múmia paleolítica. Anacronismo extremo da parte dele.

Atravessamos o jardim de uma única palmeira cercada de várias flores e gramíneas em frente à prefeitura e abrimos o portão. Tivemos uma vista completa do oásis. Como era de se esperar, é mais um laguinho, com uma parte sua a extremo leste destinada para o consumo de água pela cidade. Alguns turistas ainda nadavam e ao longe pude observar um surfista que criava uma onda usando a própria varinha. Bem impressionante.

Não acho que seja de lá muita importância falar como era o interior do bangalô que dividi com Alphonsus e Tomás. Basta o senhor visitar Carmela para descobrir. Apenas digo que é surpreendentemente confortável, com tudo que se precisa ter em uma casa, mais alguns quadros e até um rádio. Logo nos dividimos: os dois dormiriam em camas separadas em um dos quartos e eu ficaria na de casal, no outro. Gostei do arranjo. Sempre gosto de ter privacidade quando durmo.

Fui o primeiro a me arrumar no banheiro. Saí da casa e acendi um cigarro, sentindo a areia fofa. A água deixava o mau agouro do deserto menos escancarado. Estava me sentindo em paz, até para minha própria surpresa. Fiquei tão absorto observando os banhistas saindo que nem notei Sara apertando meu ombro atrás de mim e tomei um susto que a fez rir.

Ela estava bem alegre. Ficou elogiando a casa que íamos passar a noite e disse que a cidade era bem bonitinha, ao que concordei. Ficamos falando de besteiras então. Eu perguntando se ela sabia o que iria comer, respondendo que com toda certeza não tomaria biero. Disse depois que estava muito feliz de estar viajando entre amigos e que, desde que o pai militar voltou com ela e a irmã de volta da Nieneslando para Brasas do Sul, não tinha feito mais nenhuma viagem.

Minutos depois os outros se juntaram a nós. Como sempre, Ferreira reclamou de eu estar fumando e ignorei-o. Os outros assomaram sua indignação, mas em um tom mais cômico dessa vez. Sei bem que não se deve fumar perto de outras pessoas, mas foram eles que chegaram depois, oras! Mas é claro que eu sabia que Ferreira nem se importava. Só queria ficar me incomodando. Não me abalei por isso. Eu quis tentar aproveitar a noite.

Foi por volta dos oito horas que nos sentamos no Coquetel Amarate, o bar mais conhecido de Carmela. Pegamos uma mesa inteira para nós e fizemos os pedidos. A maioria pediu licor e conhaque e aperitivos com a carne divina da região.

Por não estarmos na temporada, ainda havia mesas vazias, apesar de bastante gente estar comendo. Tinham as mais diversas aparências. Os homens vestindo camisas de botão floridas falando ruidosamente eram turistas, disso eu sabia.

Certo, sobre o bar: espaço aberto, com teto de telhas, pilastras de madeira para suportá-lo, piso de azulejos e, na direção do oásis, umas redes para se deitar. O balcão de verniz onde fica o barista é bem iluminado e na estante se pode ver todo tipo de bebidas do espectro de cores. Perto, também fica uma porta que levava à cozinha. Toda a iluminação feita com fogo em piras, que vez ou outra é mantido aceso por bruxos.

Em uma espécie de palco, do qual nos sentamos distantes, acontecia uma apresentação de dança. Anéis de fogo criados pelas varinhas de bruxos eram atravessados pelas dançarinas vestidas em saias vermelhas, que logo depois vinham por trás dos bruxos e, tomadas pelo braço, valsavam. Um homem com a camisa aberta mostrando bem o peito cantava por cima da gravação de uma vitrola. No final, todos batemos palmas com entusiasmo.

Tomás, que sabe controlar o elemento fogo, elogiou a performance. Falando da destreza dos movimentos e a técnica de movimentos circulares para manter um disco de fogo parado no ar. Alphonsus, por sua vez, comentou da música criticando o cantor.

— Sinceramente, achei a voz dele muito fraca. Ou estava bêbado ou precisa urgentemente de uma aula de canto!

— Você diz isso porque não vai ter a oportunidade de cantar as suas músicas, admita.

Para o comentário do amigo, Alphonsus se levantou e disse que iria pegar a viola para tocar mais tarde.

— Ui, ficou sentido!

A isso, Tomás recebeu um dedo do meio, rindo. Que amizade aquela a deles.

Nesse meio tempo, Lorena estava comentando que usava esse tipo de dança como referência em suas aulas de anatomia. Dessa vez, me senti incluso na conversa. Até pude elogiar suas últimas pinturas! Também conversava com Sara das minhas últimas leituras. Apesar dela me interromper com frequência para falar de como tal acontecimento a lembrava de tal coisa, ainda assim me diverti conversando ao lado dela.

Toda a minha serenidade, porém, seria interrompida com a volta de Alphonsus segurando sua viola ainda encapada e a chegada de duas garotas, uma mais velha, morena de cabelos longos soltos e bem bonita, e uma mais nova, acanhada de cabelo preto preso com uns fios escapando e uma franja, de lábios bonitos e pele meio amarela.

A morena perguntou em uma voz aguda se éramos de Brasas do Sul. Três de nós responderam que sim. Os outros, Lorena, Ferreira e Tomás falaram em outros lugares. Com aquela vozinha, respondeu falando rápido.

— Sério? Bem que achei o jeito de falar de vocês diferente. Meu nome é Anna. E essa aqui é...

— Alice.

Monossilábica, a amiga de Anna era bem diferente dela, com uma voz mais baixa e agradável. Sara, em especial, cumprimentou ela com especial gentileza.

— Não, esse não é seu nome querida.

— Talvez. Mas me chamem assim. Odeio meu primeiro nome...

Anna realmente gostava de provocar Alice.

— Ei ei, querem saber como a bonita se chama?

— NEM OUSE.

— É Mi-

— Anne, eu não estou brincando.

— Nerva!

Sendo gentil pela primeira vez naquele dia, Ferreira disse que não era um nome tão ruim assim. Ruborizando, Alice disse que era um nome de velha, ao que respondi:

— Minha filha, colocaram o nome Raimundo em mim!

E todos riram! Provavelmente aquele foi o momento mais feliz do meu dia.

Então Ferreira, sem nem esperar, convidou as duas garotas a se sentarem conosco e Lorena as encorajou. Anna ficou sentada entre eles dois, enquanto Alice ficou do outro lado de Sara, provavelmente pela afinidade que as duas sentiram imediatamente uma pela outra. Os outros disseram seus nomes depois de mim.

A conversa passou a ser totalmente direcionada às duas enquanto a comida chegava. Falante, a mais velha nos contou que as duas nasceram em Carmela, mas que ela era filha de mãe costureira e Alice, de pesquisadores. Falava mais ou menos assim:

— A bonita aqui mora em um apartamento perto da prefeitura enquanto eu fico em um barraco na periferia. Sorte a dela!

— Então como vocês duas se conheceram sendo tão diferentes?

Lorena perguntou isso bem curiosa. Alice disse que na escola, graças a um clube do livro que ela criou. A morena então continuou:

— Eu tava em uma fase leitora, então quis conhecer gente que lesse. Durou só alguns meses e li dois livros que sendo bem sincera, odiei. Mas a Alice é um amorzinho e a gente é amiga faz... três anos? Acho que é isso. Ela só tinha 14 e eu 16.

Sabendo desse interesse da mais nova em livros, Sara então começou a puxar assunto com ela. Anna, por sua vez, elogiou a roupa de Lorena que deu um de seus sorrisos simpáticos. Sendo costureira por influência da mãe, ela disse que tinha o sonho de abrir um ateliê grande em Karáchio.

Ferreira elogiou a ambição do seu sonho. Já ele disse que queria ser arquiteto em Grasa, já que lá estava acontecendo uma verdadeira revolução na arquitetura. Prédios imensos, ruas largas para os carros, que dizem ser o meio de transporte do futuro, etc. Que nem de vassouras iríamos precisar mais!

Tomás, mais cético, discordou. A magia pode estar sendo cada vez menos usada, segundo ele, mas ainda era uma parte importante de quem somos. Quando se tornasse estudante nas Torres Sherbet, mostraria para o mundo que o fogo não servia só para apresentaçõezinhas de arte ou para a guerra. Alphonsus pareceu ficar ofendido com o comentário.

— Apresentaçõezinhas?! Para a sua informação cultura é importante sim.

— Nunca falei o contrário. Só quis dizer que magia é mais importante que servir de ornamento na dança e arraigada demais na nossa cultura para ser superada pela modernidade. Ela é sagrada!

— Cultura também é sagrada, Tomás meu garoto. Mais tarde te relembro disso.

Anna ficou interessada no talento musical de Alphonsus e foi informada do contrato que ele assinou com a gravadora Camarão Boreal, recebendo a informação com palmas. Tomás ficou mal humorado diante da derrota ideológica.

Alphonsus continuou a contar sobre a música na vida dele. De como era filho de sanfoneiro e cantora de ópera e cantava na igreja quando novo. Descobrindo a viola aos 14 anos e frequentando bares, os rapazes mais velhos o ensinaram músicas novas e até lhe mostraram Gregório Pinheiros, por quem se apaixonou. E desde então tenta escrever músicas que "uns gostam e outros não".

— Querido, eu tenho certeza que eu vou gostar. E você, Lorena, o que faz da vida?

Ela, timidamente, falou de sua vida financeira falida como artista e que tem interesse no Geometrismo.

— Você é vanguardista! Queridinha, se eu conseguir abrir meu ateliê, vou te procurar para você criar estampas para mim. Adoro essa estética!

Lorena agradeceu lisonjeada.

Instintivamente, nem passou pela minha cabeça falar dos meus sonhos. Por que nem eu os sei direito. Eu quero me tornar professor em alguma escola tradicional? Ser arquivista? Buscar pós-graduação? Trabalhar nas ruínas para desvendar a língua perdida da civilização Maura, quem sabe de alguma outra ao redor do mundo? Não faço a menor ideia.

Não sei se já falei para o senhor, doutor, mas o futuro parece uma coisa muito distante para mim. Mesmo que daqui a 3 anos já tenha que começar a pensar com que emprego vou me sustentar. Já que meus pais vivem insistindo que eles não vão estar comigo para sempre e que preciso ir atrás da minha independência. Que o dinheiro da mineração pode acabar a qualquer momento. E sinceramente concordo com eles, mas não sinto tanta animação pelo futuro.

Àquela altura, já tinha escurecido por completo. Sara e Alice conversavam muito próximas uma da outra sobre livros e escrever. A minha amiga acabou revelando algo que nem eu sabia: que venceu um concurso de escrita na escola dela! Já Alice contou que venceu um concurso do vice-reino, o que deixou Sara impressionada e, ela mesma disse, com inveja. As duas, rindo, prometeram ler o que a outra escreveu.

Então, Ferreira trouxe um grande assunto à mesa. Que o motivo de termos vindo a Carmela era visitar as ruínas da Cidade Azul às seis horas amanhã e as convidou para ir conosco. Sem nem pensar, Anna respondeu:

— Ai amigo, quero sim! Nunca tinha visitado elas. Eu sabia que ia ser bom conhecer uns viajantes. E você, Lice?

— Ah, pode ser. Nem tenho nada para fazer amanhã mesmo.

— Então está decidido. Seis horas na frente da prefeitura, hein!

Sara e Alice retomaram a sua conversa. Sara contava sobre seu livro preferido, Retrato de um Fantasma, com imenso entusiasmo. Como eu também li a obra por sua influência, também tentei participar da conversar fazendo um comentário besta sobre algum dos personagens e fui completamente escanteado. As duas deviam estar totalmente focadas no diálogo. Ainda assim, não me senti bem.

Depois que terminamos de comer, fomos na direção das redes. Alphonsus se sentou em uma delas e fizemos uma roda nos sentando no chão, com a exceção de Sara e sua nova amiga, que foram caminhar na direção da orla dos bangalôs. Como eram relativamente afastadas das mesas, não atrapalhamos o movimento do bar. Me sentei junto a Lorena e Tomás. Minha amiga deve ter percebido minha expressão de indiferença, pois perguntou se eu estava bem.

Quase lhe falei o quão só e deslocado me sentia dali, da minha vontade de voltar para casa, das incertezas do futuro, enfim, enfim. Mas usei a desculpa de que estava com sono, que foi imediatamente acatada. Poderia ter falado com ela mais tarde, mas não sei em que isso daria. Lorena pode ser muito desatenta para questões sérias. Digo por experiência própria.

Alphonsus então tirou sua viola acústica (é assim que ele a chama) e decidiu cantar duas canções: Depois de Amanhã e Bolero das Cem Noites. Nem queira me perguntar como eram as músicas, doutor. Sou péssimo de lembrar melodias e só lembro de uma pequena parte da segunda.


Cem noites sem você

Tentando te esquecer.

Mas quando te vejo pela fresta

Da janela, o coração se esfarela


Uma coisa é certa, no momento que ouvi Alphonsus tocar e cantar, ele deixou uma impressão profunda em mim. É incrível como consegue manter uma voz melódica, mais fina, quando canta se comparada à voz mais grave convencional. Quis elogiá-lo efusivamente. Quis mesmo. Mas pensando em como tantas outras pessoas e amigos mais próximos já estavam fazendo isso, fiquei certo de que ele ignoraria meu elogio singelo que não valia de nada. Então fiquei quieto mesmo, balançando a cabeça em aprovação tímida.

Então, para a surpresa geral, uma moça vestida de blusa e saias pretas nos cumprimentou, dizendo ser da administração do Coquetel. Ela disse que muitos clientes e garçons ficaram surpresos com o talento do rapaz e perguntou se ele poderia cantar no palco. Como benefício, todos os amigos dele poderiam comer de graça. Ora, e com que entusiasmo ele não aceitou aquilo!

Instantaneamente, Tomás foi o primeiro a abraçá-lo pelo ombro e encorajá-lo a cantar.

— Esse é meu amigo, senhoras e senhores!

Enquanto os outros saíam do círculo para acompanhar Alphonsus ao palco, simplesmente tomei seu lugar e me deitei na rede, me voltando para o oásis. Bem sei que eu deveria estar aproveitando a ocasião, mas simplesmente não conseguia me forçar a engolir aquilo. E nem meus amigos pareceram notar minha ausência, então estava feito o arranjo.

Para me acalmar, adivinhe, doutor. Outro cigarro. Mas dessa vez não funcionou. O sentimento de isolamento e dor de cabeça ficaram mais fortes.

É até engraçado. Comecei a fumar porque me sentia mais incluído nas festas que aconteciam nos últimos anos de escola. E realmente funcionava, até que voltei ao esquecimento geral. Mas ainda assim, continuei fumando desde então. Talvez esse seja meu único vício, além de pensar demais.

Por algum motivo, também fiquei pensando no passado naquela hora. Mais especificamente da minha infância. De como eu sempre fui mais próximo da minha mãe, mas do meu pai nem tanto. De como sempre tive quase tudo o que queria, mas com poucos amigos, sendo uma criança solitária que passava as férias lendo e ouvindo radionovelas. Para falar a verdade, eu tenho todos os motivos para ser feliz. Mas não sei o que falta para preencher o buraco dentro de mim.

Até hoje eu não consigo me ver no futuro, nem como eu posso crescer, virar adulto. Acho que o senhor percebeu que o que menos contei nessa história toda são os meus interesses e o que eu tentei falar a essas pessoas. Ambos são escassos. De que eu gosto? Ler... fumar... história? Pois é. Nada de arte ou esportes ou magia, mesmo eu sabendo um ou outro feitiço de vento.

Inclusive, quando me sinto muito ansioso ou inseguro, eu simplesmente sou incapaz fazer feitiços. Não consigo usar a varinha. E para provas e situações importantes nas aulas práticas, isso me rendeu belos esporros dos meus pais, colegas e professores.

Mas realmente, uma coisa é certa: gosto de história. Quero saber mais sobre a cultura de povos antigos e suas línguas mortas, tentar descobrir como eram escritas, já que saber sua fonética é simplesmente impossível hoje. E também quero confessar outra coisa...

Estudo história para tentar encontrar uma fé própria. Nunca fui adepto do Rupertismo fora da infância, obrigado por meus pais. E peço mil perdões se o senhor for religioso. Mas é que nunca fez sentido para mim, mesmo quando meu pai me levava quando menino para a igreja, o porquê deveria venerar um guerreiro das estepes que fundou um reino unificado do mundo inteiro e matou milhões de pessoas para atingir esse objetivo, sendo que o único quê de espiritual da história é ter recebido o controle dos elementos por Deus!

Sim, quero ter uma fé própria. Não dá para imaginar que todo esse mundo diverso surgiu por mero acaso de ínfimas possiblidades combinadas juntas. Deve haver um deus, deuses, ou espíritos. Quem sabe. Nunca achei justo a forma como tratamos os Antikvaj, matando eles em massa pelos séculos.

A visão filosófica e transcendental deles sobre a magia é sinceramente muito interessante para mim. O problema de Fantasto é que usamos muito a magia como uma arma de guerra ou como só mais outra matéria no ensino compulsório. Não sei se o que estou falando faz muito sentido ao senhor. Para mim, a magia perdeu muito a sua beleza com o tempo. E isso me entristece muito.

Minha melancolia, porém, foi logo interrompida por Sara que me cutucou, perguntando como estava. Disfarcei minha tristeza me sentando na rede. Falei que estava olhando o céu para tentar ver estrelas.

— Azar o seu. Está nublado pra cacete.

Dei uma risada sincera, concordando com ela. Minha amiga então se sentou comigo na rede e começou a narrar o que conversou com Alice durante esse tempo todo. E das discordâncias políticas que elas tiveram. Sendo bem sincero, os únicos defeitos de Sara são a sua incapacidade de lidar com outras opiniões diferentes da dela e sua teimosia sem precedentes. Fora o fato de guardar muito rancor.

Ainda assim, Sara continuou dizendo que provavelmente elas iam voltar a se falar depois. Que achou Lice divertida, mesmo que por fora fosse tímida, monossilábica. Ela pensou que a noite seria chata até conhecer Alice, que a entreteve.

Afinal, Sarinha não falava tanto com as outras pessoas do nosso grupo além de eu e Lorena.

Fiquei me sentindo mal com o comentário. Eu não teria sido capaz de tirar ela do tédio?!

Acho que percebeu o efeito de suas palavras em mim, pois logo depois pediu desculpas por não ter me feito companhia. E brigou de brincadeira, falando que eu deveria era estar com os outros, ouvindo Alphonsus cantar. Ainda me lembro o que respondi exatamente.

— Sei lá, as coisas que eles estão fazendo não me interessam muito. Fora que ficar perto de Ferreira ia deixar essa noite chata pior ainda.

Sara riu, concordando comigo. E fez-se silêncio entre nós. Com a música romântica de Alphonsus ao fundo, ficamos nos olhando. Pude dar uma bela olhada nos seus olhos verdes e a pele que estava vermelha por causa do sol que tomou ao longo do dia, mesmo com as proteções. A sombra que a luz fazia realçava o seu nariz fino e o formato redondo do rosto. Naquele instante ela pareceu ser a única pessoa em todo o bar. Ela realmente estava bem linda.

Aquele poderia ter sido o momento perfeito para pegar Sara nos braços e beijá-la, eu sei doutor. Mas não me sentia pronto para amar de novo ainda. Ou melhor, faltava coragem, Compartilhar com minha amiga a minha tristeza até hoje parece muita maldade para uma pessoa que teve uma vida tão complicada como a dela. 

Sara ficou parada em um momento, me olhando quase em êxtase. E então soltou, distraidamente.

— Sabia que eu gosto de um menino?

— É?

E desviou o olhar, envergonhada do que disse.

— Deixa para lá.

Algo me diz que ela se referiu a mim. Mas pelo motivo que acabei de contar, tive medo de perguntar. Que desperdício de momento foi aquele. A minha chance de encontrar amor...

Ouvi Tomás gritar ao longe de novo:

— Esse é meu amigo, senhoras e senhores!

Então, Sara me levantou e me deu um abraço forte que interpretei como amizade, devolvendo-o também. Ela disse então que iria ouvir Alphonsus cantar mais de perto e perguntou se eu não queria ir junto.

Mais uma vez, como eu fui burro! Simplesmente falei que ficaria ali por enquanto, pois estava bem cansado de viagem. Perdendo um pouco de brilho nos olhos, ela partiu meu coração com uma simples despedida.

— Tudo bem então. A gente se fala amanhã.

E se afastou dando as costas a mim. Continuei deitado e acendi outro cigarro, olhando para o céu. Uma forte vontade de soluçar veio, mas que não passou de vontade. Eu não consigo chorar em público.

Mas só porque não chorei não quer dizer que não estava horrivelmente triste.

Naquela noite, o céu estrelado não veio e mais um dia sem sal se passou.

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