Extra 1 - parte 2


(Aviso: o suicídio é retratado nesse capítulo)

Ele fugia a cavalo. Mas não iria longe. Dei um meio sorriso. Despejei mais energia interna, a fazendo flutuar em meu entorno como uma nuvem, movi as mãos, Yin e Yang. Positivo, negativo. Existir e não existir. O segredo era que tudo dependia da vibração certa. Luz é matéria, corpo também. A diferença era a vibração, a dança das partículas e sua peculiaridades.

Terminei os movimentos e meu corpo se deslocou no espaço, distâncias vencidas pelo transporte de matéria, o que chamavam comumente de teletransporte.

Havia um caminho que cortava por trás da colina da forja em construção do Mestre Fei Yin, agora havia um cavalo sendo atiçado por um cavaleiro nervoso. Eu conhecia a maneira que ele montava no equino.

Afinal, eu criei o assassino que matou meu ferreiro.

Era final do inverno, a neve fria derretia no topo do salgueiro, ele era um pequeno nabo rechonchudo que chorava pelos pais numa cabana abandonada. Guerras sempre devassam tudo no seu entorno, como uma besta irracional, massacrando vidas e deixando atrás de si cadáveres, viúvas e órfãos. Não havia dignidade honrada em nenhuma batalha, não havia grande causa, só sangue e morte.

Ele, Fei Yin, era herdeiro do que a guerra deixara. Um órfão, cujos pais morreram por estarem no lugar errado, num momento ruim. Suas pernas dobradas perante os corpos, sua cabeça apoiada nas mãos. Embainhei a espada, os torturadores estavam mortos, tombados num canto.

"Garoto", o chamei, ele ergueu a cabeça assustado. Estendi a mão. "Venha comigo", convidei. Ele hesitou, olhos focando os pai e depois focando em mim. Lentamente, ele se moveu em minha direção. Após enterrar seus pais, o levei comigo até a Seita Sol Poente. Cuidei dele junto dos outros órfãos que encontrei ao longo do caminho, lhe dei uma casa, o ensinei a ler e escrever. Vi seu interesse em magia da tribo dos corvos, mas não levei muito a sério. Era apenas uma criança, sendo assim não usaria tal coisa contra outra pessoa, não é? De qualquer forma, ele também parecia inclinado para a ferraria e o indiquei ao melhor ferreiro, justamente para afastá-lo da magia.

Ele sempre foi esforçado em cada peça, não era um grande gênio, mas seu esforço compensava a falta de criatividade. Às vezes, quando eu ia visitá-lo, ele se queixava dos mestre e dos seus irmãos aprendizes. Outras vezes, eu via a ganância e a inveja crescendo nos recantos de seus olhos, como um nevoeiro transformando suas íris em versões opacas. Mas ignorei, ele era apenas uma criança.

Mais tarde houve um acidente na forja, seus irmãos ferreiros morreram e seu Mestre também, pouco tempo depois ele surgiu com uma espada semi-divina. Como a havia forjado? A estrutura do metal, não parecia com algo que ele pudesse ter feito, mas eu não me questionei muito, ele era uma boa criança afinal.

Ele se firmou com um grande nome para si: o melhor ferreiro do continente. Havia aprendizes, mas esses nunca ficavam, sempre sumindo, enquanto as invenções patenteadas por Fei Yin aumentavam. Mais uma vez eu deveria ter desconfiado, mas a minha cegueira era maior que a de um cego de nascença, porque aos meus olhos ele ainda era o pequeno nabo que ensinei a cavalgar, a ler e escrever. Ele ainda era pequeno e sorridente.

Contudo, era impossível continuar assim. Ele amaldiçoou o próprio aprendiz e matou Bai HuoWu. Fei Yin tinha ido longe demais. Mais um teletransporte. Eu estava a sua frente, ele puxou as rédeas do cavalo, o animal se assustou e empinou, o lançando para fora da sela. O homem caiu como um saco de batatas contra o chão duro, ouvi seu lamento. Notei seu nervosismo, seu medo. Sim, ele deveria sentir pavor quando me visse.

– Vou perguntar uma vez: Por quê?

– O que está perguntando, gege? Estou numa viagem de...

Ele mal terminou de falar quando notei uma caderneta aos meus pés, obviamente deveria ter caído de suas vestes. Me abaixei para o pegar, ele se moveu rápido quase tomando o caderno, lhe dei um tapa nas mãos, ele se afastou com uma careta.

– Não é o que está pensando. – ele começou a despejar uma desculpa mal formulada que nem me dei ao trabalho de ouvir.

Abri, na primeira folha estava escrito: "esse caderno pertence a Bai Huowu, o gênio e futuro ferreiro imortal, se encontrar devolva!" Eu nunca vi sua letra antes, mas era torta e mal feita, como de uma criança impaciente. Adorável. Por um momento pensei em seu sorriso e depois, lembrei do seu corpo gélido; dele se desfazendo em pó em meus braços. Tristeza me chutou de volta para a raiva pura. Fechei o caderno.

– Desde quando rouba? – meus dentes se apertaram numa raiva silenciosa.

– Eu não roubei! É um preço modico por ensinar tanto a Bai HuoWu! Eu já disse! Ele foi embora e me deixou alguns presentes.

– Eu vi o cadáver dele! – gritei com ódio.

Fei Yin empalideceu, sua boca se abriu, depois se fechou. Ele olhava para o chão, como se estivesse abalado.

– Morto? Pelos deuses, o que Ling Wang fez? Eu sabia que tinha inveja de Bai Huowu, mas chegar ao ponto de matá-lo! Que horrível, deveria correr atrás dele gege, e o degolar! Nem escute o que aquela cobra dizer é tudo.

Ele não terminou de falar, o segurei pelas vestes, seu corpo se erguendo.

– Deve achar que sou idiota, não é? – o sacudi.

Subitamente, eu senti, era como um ponto de luz chamando a minha atenção.

Parei.

Das bagagens do cavalo, tinha algo meu. Larguei Fei Yin, ergui minha mão e invoquei. O objeto respondeu, saltou para fora da bagagem e se jogou em minhas mãos. Seu poder me deixou com os pelos eriçados e animação fez meu coração bombear mais forte. A desembalei, uma espada de lâmina transparente como vidro e um caractere "luz". Uma espada divina, exatamente como Bai Huowu prometeu.

– A espada que corta as trevas. – era o nome da lâmina, ela se apresentou em minha mente e me mostrou o rosto de seu criador no instante que disse isso. Os olhos de Bai HuoWu cintilavam, ele parecia satisfeito, haviam manchas escuras em suas bochechas, ele não estava bem. Sua atenção se focou no fio da espada, por um momento pareceu que ele olhou diretamente para mim, havia um meio sorriso em seus lábios. A imagem se apagou.

Abri os olhos, sentindo minha visão nublar com as lágrimas, não vertidas.

– Eu posso explicar. Eu a fiz e estava indo vendê-la! É claro, que quando fosse a leiloar mandaria um convite para você.

– Porque leiloaria uma espada com dono? – perguntei embainhado a lâmina, a raiva cedeu a dor latejante do luto.

– O quê? – Fei Yin indagou desacreditado.

– A Espada só reconhece um dono, estamos conectados.

– Como isso é possível?

– E disse haver forjado a espada. – dei uma risada. – Você é um péssimo mentiroso.

Suspirei, agora decepção se juntou a mescla de raiva e luto. Passei a mão pelo rosto.

– Você matou seus irmãos ferreiros e tomou a espada semi-divina que uso, de um deles não é?

– Não...

– Chega de mentiras. – falei num tom severo.

Fei Yin se encolheu como uma criança sendo repreendida.

Ficamos em silêncio e por fim, o homem falou num tom baixo:

– Estou cansado de ser o coitado órfão, de ser menos que os outros! Sempre desprezado! Meu mestre me humilhava, todos os dias, quando você não estava, ele deixava bem claro que eu nunca seria alguém. Então, eu fiz o que precisei fazer para ter poder e ser importante, afinal o que gira o mundo sempre será o dinheiro e se eu o tivesse, ninguém ousaria me diminuir.

– Eu te criei tão mal assim?

– Não, acho que já nasci podre. – ele deu de ombros. – Talvez quando os meus pais morreram numa guerra que nem era a sua, algo em mim apodreceu. Eles eram comerciantes, Liu Yuanqi... Por que um punhado se soldado acharia divertido os torturar? Essa pergunta me assombrou todos esses dias.

Eu me senti triste e deprimido, a sensação de fracasso ecoou como uma voz em meu interior. Suspirei, falhei com Fei Yin. Mão contra o rosto. O deixei ir longe demais, deveria ter feito algo antes de chegar esse ponto, mas aos meus olhos ele ainda era o pequeno nabo, inocente e brincalhão. Era essa a maldição dos pais? Sempre enxergar os filhos como crianças?

Depois de algum tempo, Fei Yin voltou a falar:

– Eu preferi ficar com a podridão em meu interior do que mudar. O que eu seria fora das trevas? Só um ser patético que sempre sentiu a falta dos pais e descontou isso em todos ao seu redor. E isso não é sua culpa, gege. Você fez tudo o que podia, sempre. – ele sorriu para mim – Eu sou podre, é quem sou.

O encarei por segundos, absorvendo a realidade. Suspirei. Luto, raiva dele e de mim mesmo me afogando. Eu deixei que isso acontecesse e sou tão culpado quanto ele. Afinal, quem é conivente com um crime também é criminoso. Mão contra meus olhos. E eu me achando o "bonzinho" nisso tudo. " O que foi que eu fiz?", uma pergunta tola mediante a verdade, pois, eu criei um monstro.

Estendi qi e icei como um fio que manobrou no ar e prendeu as suas mãos juntas, o algemando.

– O levarei diante dos Juízes da corte superior, eles julgarão os nossos crimes.

– Juízes? Não. Acho que não.

Franzi o cenho, a maneira como falou me eriçou os pelos.

– O que você fez, criança estúpida?!

Me aproximei no exato instante que baba surgiu em sua boca, suas pernas cederam e ele desabou. Veneno. O segurei, tentei lhe influir qi, mas foi em vão, em pouco tempo seu corpo parou de tremer e sua respiração cessou.

Acabou. Estarrecido, segurei seu corpo frágil e mole. Aos meus olhos ele ainda era o pequeno nabo de 50 anos atrás, apenas uma criança inocente que temia o escuro e pedia para deixar as lamparina acesas quando a noite chegava. Beijei o topo da cabeça do pequeno nabo.

"Adeus".

Olhei para a lua, seu brilho pálido parecia doentio, exatamente como eu.

Raiva, luto, tristeza e decepção formando um caldo cáustico, que descia pela minha garganta, queimando tudo por dentro.

Tinha acabado.

Lágrimas rolaram pela minha bochecha.

Tinha acabado, eu o perdi. Meu ferreiro, ele se foi e eu não tinha ninguém a culpar além de mim mesmo.

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