Capítulo 7
Liu Yuanqi
Senti o vento, era a brisa fria de uma tarde de primavera. Na sala de janelas meio abertas, as flores de cerejeiras se imiscuíam, pétalas róseas cobrindo o chão timidamente, como um tapete ainda em elaboração. A serva diante de mim tinha a flor de fênix desenhada com tinta vermelha em sua testa, usava vestido em gaze sutil num tom rosado e puro, exatamente como uma trabalhadora do Palácio das Nuvens deve se vestir.
Eu indiquei a gaiwan servida, a incentivando a beber algo antes de começar o relatório urgente, nunca fui do tipo que tinha pressa. O tempo ensinava a ser cometido e pensar bem no que se estava fazendo, onde se estava pisando e em quem confiava.
Uma imagem mental de Bai HuoWu surgiu em minha mente, associado ao aviso claro da cultivadora demoníaca "fique longe dele". Estaria o jovem ferreiro envolvido com a Seita Demoníaca? Ou havia algo mais, como um segredo oculto?
A incerteza era o pior sentimento a se ter em seu âmago, porque este fermentava e se transformava em emoções podres e corrompidas. Incerteza, virava desconfiança, desconfiança virava ressentimento, ressentimento virava ódio, numa cadeia emocional que descia numa queda até o fundo mais trevoso que um ser humano pode estar e eu já estive nele. Eu vi o demônio nas trevas, que todos carregamos em nosso interior e sei o que ele pode fazer conosco para saciar suas vontades.
A cena em carmesim, num pátio encoberto pelo véu da escuridão noturna, retornou a minha mente como uma assombração. A mão que segurava a gaiwan estremeceu. Não pense nisso. Não foi minha culpa. Soltei o ar.
– Senhor Yuanqi está bem?
– Ah, sim.
– Está pálido. – ela comentou com um toque de preocupação na voz, sua mão pequena e delicada como porcelana se estendeu para tocar meu rosto, me afastei.
Detesto ser tocado por outras pessoas, isso sempre me dava a sensação de desconforto, como se eu estivesse sendo alfinetado pela senhora Jin, no castigo usual pela minha simples existência e pela vergonha que isso trazia a família Liu. Ainda lembrava de sua expressão de prazer e seu sorrisinho fino enquanto me espetava.
– Estou bem. Em seu recado, disse ser urgente. – respondi, eu precisava me manter focado, por isso fiz um grande esforço para colocar cada fantasma do meu passado de volta em seu baú.
Ela abaixou os olhos, sua boca marcada num tom claro de rosa, estava apertada numa linha tensa. A serva respirou fundo, tomando fôlego e ouso dizer, certa coragem. Afinal, ser uma espiã sempre seria um exercício constante de bravura. Sim, eu tinha "olhos" em cada parte do Palácio das Nuvens, em cada setor e em cada posição.
Fora do pavilhão dos imortais, eu tinha aliados entre as Seitas de maior prestígio e entre os de menor destaque. Como opositor número 1 ao Ancestral, eu precisava tomar os devidos cuidados ou não viveria para o próximo chá da tarde.
Um meio sorriso surgiu em meu rosto. Era engraçado como há algum tempo eu idolatrava o Ancestral como o maior herói que vivia sobre a face da Terra. Era como diziam "nunca conheça seus ídolos".
– O Ancestral se moveu para o norte, levou guardas e entrou em contato com a Seita Rosa da Lua. Aqui, interceptei isso. É uma cópia, mas achei que precisava ver com os próprios olhos e não ouvir apenas relatos.
Ela deslizou um papel fino e dobrado em minha direção, seus olhos castanhos analisavam a janela com receio. Não havia motivo para tamanho nervosismo, afinal cada canto era protegido por minha energia e pelos sêniores de confiança, treinados diretamente por mim. Peguei o papel e li as poucas frases em uma letra fina e bem feita "Esse é o sinal, a estrela e os animais ferozes. Preparem os recursos. Está perto"
A estrela Sattur sempre ditava desastres e pelo visto ela ainda não havia finalizando sua terrível influência no mundo. No entanto, como se casava com a fúria dos taoteis? E que recurso o Ancestral preparava? Havia muitas pontas soltas, eu precisava de mais informações. Dobrei o papel e o direcionei para a chama de uma vela, deixei que queimasse, chamas amarelas lambendo a folha, até somente as cinzas serem sopradas ao vento.
Era perigoso demais manter aquilo.
– Muito bem. Pode sair.
Ela me olhou por um longo tempo, frustração e compreensão inundou seu semblante. A serva se curvou com educação e graça. Se direcionou para a porta. Parou, se virou. Abriu a boca e voltou a fechá-la. Por fim, saiu e deslizou a porta de madeira atrás de si.
A jovem esperava alguma palavra a mais acerca da sua confissão no Rio Cristal.
Relembrei o que era, até então, um dia comum. Nos encontramos no ponto de sempre, entre as rochas e o início da floresta. Ela estava dando seu relatório mensal, eu a ouvia e nos protegia com a cúpula de invisibilidade, que desenvolvi após anos de prática. Os detalhes de sua narrativa a faziam uma espiã inestimável e eu a remunerava através dos cuidados prestados a sua avó materna, a qual era muito idosa.
Ao terminar sua fala, ela parecia ansiosa, mordendo o lábio inferior, mãos se apertando. Tinha algo a dizer e o disse "há muito cultivo em meus pensamentos a devoção a ti, o que dizes?".
Essas confissões vinham com certa frequência e por isso, nem se quer me abalavam mais. Eu apenas sentia cansaço, era sempre a mesma coisa, vazia e sem sentido, como qualquer emoção é.
"O que almeja está morto há muito tempo, sinto muito", respondi e me afastei. Isso aconteceu pouco antes de encontrar Bai Huowu.
Talvez a jovem esperasse uma mudança de ideias da minha parte ou se dispusesse a outros tipos de trocas de afeição, a qual eu preferia manter distância.
Quanto mais longe, menor a probabilidade que eu me sinta sujo de novo. Embora houvesse uma pessoa que me fazia querer não manter distância. E mais uma vez, lá estava Bai HuoWu enchendo meus pensamentos, ele era tão intrometido sendo em pessoa ou nessa versão forjada pela minha mente.
"Gege?", eu revi seu sorriso provocador.
– Élder?
– Sênior Cheng, mande o número 13 investigar Bai HuoWu, quero saber tudo o que for possível sobre ele. – tomei a decisão, eu precisava saber se o ferreiro era confiável ou não conseguiria dormir a noite.
Havia muitos deles antes. Eram pessoas que queriam me manipular, me usar como papel, que se utiliza para escrever, mas que logo perde utilidade. Perde a função.
Houve homens e mulheres, todos iguais.
Todos traiçoeiros.
Um meio sorriso surgiu em meu rosto, às vezes, eu queria rir de mim mesmo. Ri da minha condição defeituosa, a beleza que eu herdara de minha mãe, era uma maldição que me ameaçava, assim como aconteceu com ela.
Minha mão se apertou num punho.
No entanto, eu não teria o mesmo destino que ela: morta pelo homem que tanto amou. Eu não cometeria esse erro, primeiro eu não amaria e segundo, eu não confiaria em qualquer um.
– Sim, Élder. – respondeu o sênior, se curvando em respeito.
O homem saiu do quarto e mais uma vez fiquei só com as minhas memórias. Longas e cinzas, memórias.
Em pé, na beira do precipício, eu ouvia a canção dos ventos entre as pedras. Sua voz, num sussurro incompreensível, era a única coisa que restabelecia a mínima calma. Hoje, não era um bom dia para mim.
Desconfiança ondulava em meu interior, apertando meus órgãos internos. Eu lembrava o sabor da decepção, como um azedo que impregnava a boca e que nada o fazia esmaecer, nem o mais bem feito doce açucarado.
Eu tinha 4 anos quando me decepcionei pela primeira vez. Foi quando meu pai bateu em minha mãe, ele estava bêbado como quase todos os dias depois que as dívidas começaram a se acumular. Ele a chamou de "puta", exatamente como as pessoas na rua falavam. "Puta". Eu não sabia o que significava na época e nem a verdade que havia naquelas palavras, já que a minha mãe realmente era uma serva do bordel.
Ela era a mais bela dançarina, desejada por todos, mas só se deitou com um homem, o meu pai. Eu lembro que ela continuou jurando isso, quando dias mais tarde foi apedrejada na rua e eu fui arrastado pela empregada, a qual corria desesperada para me salvar da malta revoltada.
– Estou aqui.
O homem mascarado em seu hanfu preto, estava parado ao lado da árvore de boldo. Fui trazido a tona das águas das lembranças, onde eu me afogava. Encarei o sujeito, este era o espião mais velho sob minha batuta.
– Número 13. – o cumprimentei.
– Tenho o relatório. – ele era direto, como de costume.
– Comece.
– Bai Huowu, 18 anos, órfão. Foi criado por um casal de fazendeiros, que o acharam. Ele foi abandonado em sua porta. O criaram até os cinco anos, quando foi vendido a revelia da "mãe" para pagar dívidas de jogo do "pai". A "mãe" ainda o procurou por dois anos. Foi comprado por Mestre Fei Yin, desde então começou seu aprendizado como ferreiro. É tido como um gênio excêntrico, muitos da vila Cristal ou o respeitam, ou o evitam.
– Algum histórico com os cultivadores demoníacos?
– Não, só passagens aleatórias desse povo na forja com encomendas.
– Entendo. Dispensado.
Com isso dito, a figura sumiu e eu voltei a ficar pensativo.
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