Capítulo 6

Bai HuoWu

Fomos para um restaurante de panela quente e pedimos dois pratos, da especialidade do lugar, uma deliciosa sopa picante de caldo vermelho vivo. Ótima para esquentar o sangue em dias frios. No caso, não estava tão frio assim, mas quem diabos não gosta de comida picante?! Principalmente quando esta é acompanhada de um bom licor de ameixeira, aromático e suave.

Nos sentamos numa mesa voltada para a sacada, nada melhor que tomar um ar puro enquanto se bebe um bom licor de ameixa. Coloquei um tanto para o didi Wang e tomei o restante do gargalo, não era minha ação mais civilizada, admito. No entanto, diante de tanto estresse para fazer uma espada divina e não pensar mais na figura elegante de Liu YuanQi, que me arremessava num estado de confusão acerca da minha sexualidade, eu só tinha uma alternativa: beber e muito.

Na mesa da frente, se sentaram dois sujeitos encapuzados, usavam um manto escuro. Obviamente não queriam ser identificados, ou eram mercenários ou cultivadores demoníacos. Nenhuma das duas opções era algo bom.

Um alerta se acendeu na minha cabeça, principalmente quando começaram a lançar olhares em nossa direção.

Tem algo errado, mas eu não poderia me mexer agora ou eles notariam que percebi a movimentação. Duas opções: fugir ou esperar e ver o que querem. Escolhi a segunda, talvez por preguiça de correr ou pela fome. Dei de ombros mentalmente.

Ling Wang estava falante hoje, talvez fosse a animação por ver a bela elfa Tian Nuang. Sua paixonite pela mulher, sempre o transformava num tagarela.

– Acha que consegue cumprir o acordo com o imortal? – aquele maldito falou alto, quase voei sobre ele e o esmurrei.

– Cala a boca! Aqui não é bom lugar para falar sobre isso. – falei entre dentes.

– Achei que teria orgulho de dizer que um imortal praticamente o contratou.

Enfiei um bolinho em sua boca e lhe dei um olhar de aviso, ele se encolheu no lugar.

– Tem olho, mas não percebe a situação?

– Que situação?

Fechei os olhos e suspirei em frustração, Ling Wang era um jovem de 16 anos muito avoado, principalmente para alguém que tem um treinamento inicial de cultivador. Seu tio era líder de uma seita menor ao sul e ele não se adaptou bem a tal vida, por isso mudou de ofício e hoje é um ferreiro-aprendiz.

De qualquer forma, os encapuzados se levantaram e começaram a caminhar em nossa direção, olhos lilás cintilando por trás da escuridão que o capuz lançava em seus rostos.

São Cultivadores demoníacos. Fechei os olhos absorvendo tal constatação. O meu azar acabou de me encontrar.

Como um ferreiro já fui abordado por todo tipo de gente, desde guerreiros juniores aos seniores, mas nenhum guerreiro esnobe ou riquinho se comparava aos cultivadores demoníacos. Eles eram uma grande incógnita, se fossem pacíficos ofereceriam algum trabalho e insígnias de bronze, se não fossem, ou eu fazia o trabalho, ou morria. Eles apareciam de tempos em tempos e um bom ferreiro deveria saber como lidar com tal público.

Terminei de comer a sopa às pressas enquanto acionava um mecanismo na palma da mão, a qual me entregou minha melhor adaga semi-celestial, um dos meus trabalhos bem sucedidos e que ninguém sabia, nem meu mestre tinha conhecimento. Bem, um bom aprendiz deve ter um segredo ou dois guardados na manga.

– Esteja em alerta. – avisei.

Didi arregalou os olhos e mal perguntou o motivo, quando a dupla chegou à mesa, um de cada lado, para evitar fugas.

– São ferreiros?

Tomei um gole da jarra de porcelana e dei um meio sorriso.

– E quem quer saber?

– São ou não?

– Podemos ser ou não, quem sabe? – dei de ombros.

– Não me faça perder a paciência. – o fio gélido de uma faca encostou em meu pescoço.

Meu sorriso se alargou, ergui uma sobrancelha.

– Digo o mesmo.

Minha lâmina cutucou suas costelas.

Ele me encarou, um meio sorriso fez sua boca se enviesar. Depois afastou a faca e deu alguns passos para trás em respeito.

– Como o esperado. Fico contente que não perdeu sua essência. – o sujeito falava como se me conhecesse, o encarei.

Aquele par de olhos lilases eram intensos e soturnos, como uma noite com eclipse, sem luar, só breu. Ele sofreu muito, num nível que talvez eu nunca entenderia. Deduzi no ato. E de forma perturbadora, ele parecia familiar. Como um rosto de um amigo querido, que o tempo tratou de borrar na lembrança.

– Nos conhecemos? – perguntei franzindo o cenho, tentando lembrar de onde o conhecia.

– A madame, deseja vê-lo. – ele respondeu, ignorando minha pergunta anterior. – Venha e não resista.

Os acompanhei, lançando um olhar para didi, que tinha a boca aberta em total e absoluta confusão. Essa criança, suspirei. Nos direcionamos para as escadas de madeira preta e muito bem encerada, subimos os degraus em direção ao segundo piso, portas foram ultrapassadas, chegamos ao fim do corredor e entramos no maior cômodo. Um aroma de incenso tomava o ambiente e uma música dedilhada na pipa ecoava no lugar.

Atrás das telas suspensas e cortinas rosadas, estava A Madame, as tatuagens em seu corpo contavam de suas habilidades únicas. Cada desenho eram frutos de feitiçaria proibida e que lhe rendia poder e juventude quase eterna. Havia uma pipa apoiada na lateral de sua cadeira, o instrumento era feito em madeira nobre, com desenhos de dragões entalhados. Um objeto bem incomum e pela aura que emanava, era muito poderoso.

Meu olhar saiu da pipa para seu rosto. Ela me encarava, olhos de um tom roxo denunciavam sua origem antiga. Contavam ser descendente de um povo há muito extinto, mas ninguém sabia dizer de qual. Muitas civilizações haviam prosperado ao longo dos milênios e muitas foram mastigadas por guerras ou epidemias e hoje eram apenas história num livro antigo. Então, era difícil deduzir a qual ela pertencia.

Também ouvi dizer que havia um super chefão, muito poderoso, diziam ser irmão mais velho da Madame, um antigo príncipe ou rei, sei lá, só sei que era uma grande escória, a qual eu torcia para nunca ver.

– Ouvi que aceitou um contrato de um imortal. – sua voz se elevou e em seguida a canção na pipa cessou.

Fui forçado a me ajoelhar perante sua presença. Ela tinha cabelos pretos como piche, corpo pequeno, quase frágil como uma boneca de porcelana, possuía a pele num tom pálido que beirava o doentio. A Madame tinha aquele ar de liderança incontestável, o que fazia normal o ato de se ajoelhar, como se você estivesse diante de uma princesa ou uma rainha. De qualquer forma, era uma mulher mortalmente bela, como uma faca afiada.

– Sim, Madame. – respondi a sua pergunta anterior.

Houve um breve silêncio, ela parecia pensativa, quase nostálgica. Seus olhos inspecionando meu rosto, numa atitude quase de sede voraz.

– Está animado com isso?

– Sim, Madame.

– Seu sonho ainda é ser um grande ferreiro? – ela me encarava, mas não parecia me ver de fato, era esquisito.

– Sim, Madame.

– Entendo. Dou-te um conselho, pequena criança: "nunca confie num imortal, eles se fingem deuses, mas são homens. E homens são corruptos e gananciosos".

– Não, eles nos protegem de monstros como você. – repliquei.

– Mesmo? – ela deu um meio sorriso, havia uma sombra de tristeza em sua expressão. Não estava ofendida, mas magoada. Por incrível que pareça, tal constatação me fez quase querer me desculpar pelas palavras anteriores. Quase. – Já ouviu sobre o minério de Luxer?

– O translúcido, capaz de amplificar qualquer coisa?

– Isso.

– Estão extintas.

– Mesmo? As minas do oeste podem ter secado, mas foi encontrada uma ao norte. É bem recente. Vá, pequeno ferreiro e veja a verdade por si mesmo.

– Por que se interessa em me mostrar essa suposta verdade, Madame?

– Porque você não é qualquer um. – ela tomou um gole de seu vinho e num gesto, me dispensou.

Ao sair da sala me senti meio estranho, afinal A Madame nunca chamava ninguém para dar um conselho, então o que aquilo representava? Que verdade era essa que desejava que eu visse?

A forja de HuanHu ficava na cidade, ir até ela era meu último percurso do dia, já que a carroça estava cheia do carregamento do metal anteriormente requerido a elfa Tian Nuang. Inclusive, didi Wang ainda estava sorridente como um idiota depois de ganhar um beijo na bochecha da elfa, vulgo sua paxonite.

Ele suspirava a cda cinco segundos, rosto vermelho como costuma ficar quando está ébrio, mas eu sabia que o verdadeiro álcool que inundava seu sangue era paixão, pura e simples.

– Deveria dizer para ela. Amor guardado é como uma faca cravada no peito, quanto mais tempo sem tratamento, mais sangue se perde e mais perto da morte se anda.

Didi Wang deu um suspiro mais longo e me lançou um olhar queixoso.

– Eu não conseguiria. E eu preciso focar em ser um bom aprendiz ou minha mãe vai convencer meu tio a me aceitar de volta na Seita de Cultivação.  – ele fez uma careta. – Eu não quero voltar para os pavilhões! Aquele lugar me dar arrepios!

Eu ri de sua expressão e ele fez uma careta, voltou a encarar o horizonte pintado de rosa e alaranjado. O pôr do sol tingia o firmamento, como um pintor no auge de sua criatividade. E pela milésima vez, Ling Wang suspirou.

Voltei minha mente aos meus problemas, eu só precisava de um forno para fundir a liga metálica. Só isso, um forno. E a forja de HuanHu era minha última esperança.

O burro seguia lento pelas ruas vazias, a grande aglomeração se fixava nos arredores do Mercado.

De qualquer forma, hoje eu não voltaria para casa, talvez passasse a noite em alguma estalagem. Na mais barata, é evidente. Eu não pretendia gastar nenhum ouro ou insígnia de prata, não quando nem sei se as misturas de minérios dará certo.

Não muito longe, avistei a placa típica para identificar a casa de um ferreiro, era de madeira e tinha uma espada e uma ferradura gravada, embaixo o nome "HuanHu".

Senti um gosto doce e azedo na ponta da língua, era o sabor da nostalgia.

Parei a carroça e desci.

– Fique aí, Ling Wang.

– Pode deixar. – ele falou pensativo, ainda com a mão sobre a bochecha beijada.

Me voltei para a porta da frente, suspirei e adentrei. O ambiente era pequeno e havia um balcão mal cuidado há três passos da entrada, para a recepção dos clientes. Ela estava lá, Luo HuanHu, cabelos longos e pretos caindo por suas costas, seu rosto pequeno e rosado. Aquela garota, um dia, foi meu primeiro amor.

Meio melancólico, me aproximei. O anel em seu dedo, me fez lembrar de seu novo status "casada", devo admitir que ver isso doeu, mas nada que eu não pudesse esconder atrás de um sorriso dissimulado, meu melhor escudo e armadura.

– No que posso... Bai HuoWu?! – ela falou, havia surpresa em seu tom de voz, depois tristeza pintou seus olhos e raiva se manifestou em seu corpo pequeno.

– HuanHu, tão linda quanto sempre. – lancei, completamente desavergonhado. Era o que eu era, afinal, um grande desavergonhado e canalha.

– Fora! – seu corpo tremia, sua voz saiu carregada da fúria que borbulhava em seu interior e no momento seguinte, ela começou a jogar tudo o que podia em minha direção, seja lápis, caderneta, uma peça de prata, moedas.

– HuanHu, eu não era bom o suficiente para você e nós dois sabemos disso. Só fiz um favor para você quando saí da sua vida.– tentei falar enquanto me desviava, talvez o fato de estar sendo atacado me fizesse um pouco mais sincero que o normal.

– Não é bom o suficiente ou nunca quis ser? Ou talvez ainda tenha medo do que aquela vidente disse.

Só tocar nesse assunto fez a memória retornar. Era o festival da primavera, o amor florescia, ainda primevo, ainda jovial. Éramos um casal de adolescentes iluminados pelo luar, fazendo promessas de amor eterno, as típicas tolices de apaixonados. Entre as lanternas de papel e as barracas de comida, havia uma tenda que ofertava visões do futuro a um preço razoável. É claro, que HuanHu me arrastou até lá e me fez entrar naquele lugar pequeno e cheirando a cachimbo.

Talvez fosse o excesso de ópio que desse a "vidente" as suas visões ou talvez, ela realmente tivesse poderes paranormais? Quem sabe? Fato é, ela me olhou, só isso, um olhar. Então veio a fala que me marcaria para sempre: "Pelos deuses! Que tipo de aberração é essa? Tem algo muito errado! Sim, não passará dos 18 anos! Mas como viveria mais? Tamanha anormalidade não deveria existir no mundo! Fora daqui!"

Seja pela fala ou pela perspectiva da mortalidade, eu fiquei assutado. Talvez saber que havia algo errado comigo e da possibilidade de morrer jovem, me fez mais desenfreado, quem sabe? O que importa é que isso era passado. Fechei minha mão. Unha adentrando a carne.

– Foi há muito tempo. – retruquei.

– Sim, assim como a nossa amizade e o nosso amor. Agora, fora daqui!

– Eu sinto muito. – foi a última coisa que disse antes de sair e fechar a porta.

Tinha acabado.

Respirei profundamente, o tempo não volta, mas sempre segue. Por mais que se arrependa, a sua única alternativa é não voltar a cometer os mesmos erros. Também era a minha esperança, talvez eu não estragasse a minha vida, talvez, só talvez, aquela vidente esteja errada. Precisa está. Eu serei um grande ferreiro e o fracasso não é opção!

Mas a vida tem jeitos engraçados de nos surpreender...

Notas

Didi: irmão mais novo, modo de se referir a um amigo muito próximo.

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