Capítulo 4
Liu Yuanqi
Eu estava analisando o céu noturno. As constelações que se mostravam anunciavam caos, principalmente por aquela estrela: Sattur, a qual sempre assinalava desastres. Foi assim há 500 anos, quando ela surgiu no firmamento e ocorreu um grande terremoto em GuaoJin. Foi assim há 1000 anos, quando um tsunami engoliu uma ilha inteira, levando consigo seus moradores. Sim, aquela estrela era sinônimo de infortúnio.
O que ela traria dessa vez?
Meus pensamentos pularam para outro assunto.
Nunca fui dado a pensamento terrenos, nem aos desejos que acometem aos outros homens. Amor? Paixão? São apenas histórias em livros voltados ao público feminino. Então, qual foi a minha surpresa quando Bai Huowu surgiu em minha mente, como uma erva daninha que cresce no campo?
Lá estava o sorriso dele, duas covinhas se imiscuindo em suas bochechas coradas, olhos castanhos como os de uma raposa, guardando pensamentos melindrosos e sagazes. Ele achava que eu tinha caído naquele teatro de que "ele é um corta-manga"? Me poupe, já vi muito nesse mundo e reconheço uma mentira quando escuto uma, mas admito que foi engraçado vê-lo se esforçar tanto para comprovar o impossível.
Eu poderia continuar nessa brincadeira, só para ver até onde ele vai.
Senti um meio sorriso se infiltrando em meu rosto e comecei a pensar numa boa data para uma próxima visita. Não podia ser tão perto, para ele não se sentir ao ponto de alegar que "não vivo sem ele" e nem longe o bastante para gerar um queixoso "você esqueceu de mim, gege".
Parei.
Xícara suspensa a meio caminho para a minha boca. Um flash. Ele agarrado ao meu braço, olhos cintilando de provocação, um sorriso brincado em seus lábios e uma palavra escorrendo de sua boca: "gege".
O tempo pareceu parar e um órgão, há muito congelado e inativo em meu peito, meu coração, deu um sinal de vida. Tum-tum. Tum-tum.
– Élder! Élder Liu Yuanqi! – a voz parecia alarmada, houve passos pelo corredor de madeira, toda a reflexão do momento se esvaindo, o rosto de Bai Huowu se apagando da minha mente.
Logo a porta foi deslizada e um júnior exaltado adentrou o recinto, seu hanfu laranja pálido amarrado meio torto, seus cabelos desalinhados, com fios se desprendendo de seu coque. Possivelmente, tal bagunça se deve a sua correria.
O observei enquanto sorvia tranquilamente o restante do meu chá de flor de damasco, ocultando minhas emoções atrás de uma máscara inexpressiva. O garoto, um jovem de não mais de 15 anos hiperventilava.
– Élder! – sua voz falhou, ele engoliu em seco e se curvou em respeito. – Élder, chegou uma mensagem do Palácio das Nuvens!
– Afinal, do que se trata para tamanho alarde?
– Animais enfurecidos estão atacando a torre de vigília em Nyan!
Depositei a gaiwan no pires e me levantei, sentindo urgência tomando as minhas veias.
– Acorde os sêniores da Seita, os conduza para o pátio leste! Partiremos em 10 minutos, no máximo! Agora, vá!
– Sim, Élder! – o júnior se curvou de forma desengonçada, devido à pressa e depois acelerou para fora do aposento.
Voltei a olhar para o céu e a sensação era que aquilo era apenas o começo, havia promessas de desastres no ar. Me virei, peguei meu qiankun e me apressei em direção a porta. Meus pés batendo suavemente contra a madeira, a noite tomava os corredores, sendo devassada pelas lamparinas de pedra de energia, que emitiam uma clara luz azulada.
Me conduzi ao pátio. Minha mente girava tentando entender o que aquilo queria dizer, animais místicos habitavam a parte mais funda da floresta e detestavam a presença de qualquer outro ser vivo. Eles só atacavam em situações extremas. Contudo, enfurecidos? O que havia acontecido? Em meus 1500 anos de vida nunca vi uma situação semelhante.
Meus dedos apertaram o punho da espada. Embora, seja o que fosse, eu precisava resolver isso!
– Élder! Os sêniores chegaram! – anunciou outro júnior igualmente descabelado.
– Élder! O que aconteceu? – começaram os discípulos mais velhos, os quais já ostentava o bordado do sol se pondo na parte de frente das suas vestes. O típico símbolo da Seita Sol Poente.
Eles me encaravam em busca de diretrizes e alguma explicação.
Respirei fundo, controlando meus sentimentos de pânico, um líder deve ser calmo como um lago e nada, nunca pode abalá-lo.
– Precisamos ir a Nyan, imediatamente! – respondi, no meu melhor tom gélido.
– Ainda há outros para chegarem! – informou um júnior, também me saudando num cumprimento educado.
Uma decisão. Eu sabia que precisava tomá-la, se continuássemos atrasando não encontraríamos nenhum sobrevivente na torre de vigília. O tempo era de primordial importância.
– Partirei a frente junto daqueles que aqui estão! Sênior Guan, organize e mande reforços, o mais depressa possível. Vamos! – mandei de forma incisiva.
Uma palavra e espadas foram desembainhadas. Um retinido metálico enchendo o ar. O punho foi solto. A lâmina pairou, desafiando qualquer lei da física. Uma ordem com a mente, a espada se abaixou ao nível dos pés. Imantei a sola da bota com energia primordial e subi, grudando de imediato. Assim, começamos a voar e juntos tomamos posições, era a formação de ponta de flecha, eu ia à frente.
Vento sacolejava meus cabelos com rebeldia, meus fios chicoteava o meu rosto.
Acelerei, tudo abaixo de mim se tornou um borrão indistinguível de preto. O luar clareava nosso caminho, como uma estrada de lajotas prateadas. Condados foram superados, montanhas ultrapassadas, até que a cordilheira dentada, chamada do pico da Tempestade foi vista por mim ( escuridão ou longas distâncias, não era nada perante minha visão, ser um imortal tinha suas regalias).
Abaixo, um pagode tinha seu teto em chamas, se tornando uma tocha. Um pouco mais próximo, e o som da luta inundava meus ouvidos. O clangor das espadas. O uivo e rosnado das feras. Pedidos de misericórdia eram gritados. Embora, os animais não conhecessem clemência. Eram irracionais.
Fogo se espalhava como um círculo mal-executado, tinham tentado afastar as feras usando as labaredas e essas se voltaram contra os cultivadores e já lambiam, os pinheiros da orla da Floresta Yewan. Criando um imenso incêndio, que se atiçava e se espalhava ainda mais, impedindo um rota de fuga tanto para cultivadores quanto uma zona de retorno à mata para as bestas. Ou seja, fora um estratégia burra a utilização do fogo.
Havia inúmeros mortos, cujos corpos se estendiam pela relva, muitos estavam despedaçados. Senti uma escuridão eclipsando meu coração, a visão da morte nunca seria bela ou gloriosa. Longe disso, era monstruosa e sinistra.
– Conduzam os sobreviventes na direção do lago, tentem afastá-los do fogo e dos animais.
– Sim, Élder!
Assim, os cultivadores se espalharam, eles buscavam os sobreviventes, os quais eram a nossa prioridade.
A vida em primeiro lugar.
Localizei um júnior que perdeu o combate contra um taotei, e este estava prestes a engoli-lo numa mordida. Outros mais se acercavam.
Saltei da espada, flutuei. Meu pé se fixou no chão, um sinal do meu par de dedos e a espada se multiplicou e se lançou contra os taoteis descontrolados. A lâmina partiu a matilha de cinco ao meio, como se fossem papéis sendo picotados. Sangue azul ciano cobriu o solo, uma névoa escura se desprendeu de seus cadáveres e rotacionou, como um ciclone. Sussurros enchiam o ar.
– Está vindo. Irá ressurgir!
– Imortal! Cuidado! – gritou o júnior em minha direção. O jovem aprendiz ainda se levantava, seu rosto estava pálido.
A minha frente as trevas tomaram forma de punhais e se lançaram em minha direção, apertei o punho da espada e comecei a cortar as armas em pleno ar, essas se desfaziam em contato com o brilho semi-divino da minha lâmina. Suas formas cortantes, se desfizeram, como nuvem sendo dissipado com o vento, como se nunca tivessem existido.
– Imortal?
– Élder? – um sênior da minha seita desceu da espada.
– Leve o jovem. Agora.
– Sim.
O sênior não perdeu mais tempo e foi auxiliar o adolescente de 14 anos a se levantar. Juntos subiram na espada e ganharam os céus.
Mais grupos de taoteis me rodearam, eles rosnavam, cabeças sacolejando, baba escura e fétida deslizando pelo canto de suas bocas, parecia lama.
– Um miasma obscuro, mas como? – identifiquei no ato, eu já estudei os poucos livros "deixados para trás" da biblioteca restrita do Palácio das Nuvens, eu sabia do que se tratava. Ao menos recordava trechos.
"Miasma obscuro é uma reação imediata ao contato com uma fonte de maldade verdadeira, ou mais conhecido como o 'breu' ". A criatura, um ser que misturava as formas de tigre e dragão, não se importava com os meus pensamentos, ele atacou. Rodei retirando um conjunto de cinco agulhas embebidas em qi dos punhos do meu hanfu, elas eram mais afiadas do que a minha espada. Lancei, acertando três animais, que tombaram imóveis. Os outros dois conseguiram me alcançar e me jogar ao chão.
Caí de costas, o peso da pata no meu peito quase esmagava minha caixa torácica. Senti o fedor de morte na bocarra aberta. Antes que eu reagisse, uma música tocou, clara e nítida. Vinha de uma pipa e era tocada com maestria, o taotei pareceu confuso entre me comer e sair de cima de mim. Contudo, ele saiu, cabeça sacolejando, energia escura volitando de sua imensa pelagem.
Houve um uivo e todas as criaturas partiram em retirada, se encaminhando para a floresta. Não fiquei deitado, mas num movimento me coloquei em pé, olhos esquadrinhando a escuridão. Havia uma energia no ar, uma tão antiga quanto o próprio mundo. Um cultivador demoníaco, estava em algum lugar.
Eles são nossos inimigos naturais, se o vermos temos ordem direta do Ancestral, para matá-los. "Não os deixe falar, apenas os esmague como insetos que são". Eu nunca entendi isso, o que há demais num cultivador demoníaco? Porque essa necessidade de massacrá-los? Me lembrei que 18 anos atrás, havia uma vila desses cultivadores, ocultados pelas ruínas de Yankai, o antigo castelo dos deuses. O Ancestral fez questão de atacá-los, matando até mesmo jovens e crianças. Eu me neguei a ir, assim como outros que compartilhavam dos meus pensamentos. "Não vou compactuar com absurdos", essa fala foi o bastante para me marcar como o inimigo número 1 do Ancestral.
Suspirei.
Eu ainda tentava localizar a origem da música, até uma voz feminina se elevar perto de mim.
– Não se aproxime de Bai Huowu.
Ar saiu dos meus pulmões, num único expirar. Me virei, devido ao susto e a primeira coisa que falei foi:
– É amante dele?
– Eca, não. Mas volto a avisar, fique longe dele, seu imortal nojento! – ela usava um hanfu branco leite, havia tatuagens na pele visível, até seu rosto possuía desenhos, inscrições, como runas antigas.
Antes que perguntasse quem é ela, eu senti o peso de sua energia adensar o ar, lentamente a entrada de oxigênio se tornava sofrível. Mãos na garganta. Eu ia sufocar. Caí de joelhos ao chão e no momento seguinte a pressão se foi. Dei longas tragadas de ar, quase em desespero. Ergui a visão e a mulher, tinha sumido.
"Ficar longe de Bai Huowu? Mas por quê? Quem é ele e qual a sua relação com os cultivadores demoníacos?"
Notas:
Gaiwan: xícara sem asa.
Élder: mestre sábio do cultivo.
Qiankun: bolsa pequena.
Pagode: construção de 2 ou mais andares.
Taoteis: seres místicos metade tigre, metade dragão. São conhecidos por serem glutões e também apareceram no filme hollywoodiano "a grande muralha".
Pipa: instrumento musical chinês, ver vídeo do início do capítulo.
Atenção: essas imagens não são de minha autoria, elas foram retiradas do google com intenção meramente ilustrativa, todos os direitos reservados aos autores das fotos e das imagens.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top