Capítulo 2

Não existia fonte de iluminação maior que a beleza. Sua presença se infiltrava pelos olhos e insuflava a alma a verdadeira compreensão do infinito. E era isso que eu fazia, escondido atrás das rochas nas imediações do rio de Cristal. Aquele local abençoado, com cachoeiras e pedras roliças e coloridas, criava um cenário perfeito para contemplar a mais perfeita beleza: os ombros desnudos das servas do palácios. Sim, ombros! Poderia existir região mais sensual e hipnotizante, além de clavículas fundas e ombros brancos, como a lua, expostos a plena luz do dia?! Nem nos meus sonhos mais libidinosos poderia existir momento mais sexy. Mal piscando os olhos, me vi absorto na cena, os mantos róseos soltos ao lados, mãos de longos dedos segurando a pilha de roupa que as donzelas vinham para lavar.

Eu agradecia aos céus pelo rio de cristal ficar tão próximo do Palácio da Nuvens, assim sempre haveria tal banquete aos olhos a cada quinzena.

- Não existem palavras o suficiente para descrever tamanha beleza.

- Poetizou, Xiao Ling.

- Ainda acho meio errado, Wu-ge. Somos pervertidos?

- Pervetidos?! Não Xiao Ling, somos admiradores da beleza, só isso.

Empurrei Ling Wang de leve, para a visão a frente ficar mais esclarecedora.

Talvez se eu não fosse um ferreiro, tentaria o caminho das artes, uma pintura dos ombros daquelas beldades  com certeza me faria rico. Tudo bem, talvez não rico, mas encheria meus bolsos de alguns taéis. Aiya, estou agindo como aquele velhote do meu shifu! Isso azedou meu humor e me fez rosnar com raiva, um pouco alto demais devo admitir.

As garotas se viraram agitadas em nossa direção, de seus lábios carmesins veio uma série de palavrões um tanto quanto pesados para donzelas de aparência tão pura.

-- Pelo fogo nos setes céus?! Não se pode lavar roupa em paz?!

-- Ei, pirralhos, o que pensam que estão fazendo?

-- Pervertidos!!!

Uma palavra: lascou. Puxei Ling Wang.

- Vamos antes que venha a guarda palaciana!

- Se formos presos, minha mãe me mata! - guinchou Ling Wang.

Juntos nos viramos e corrermos, como dois desesperados. Quem diabos, quer ser flagrado admirando as servas do Palácio sem autorizaçãodo grande Ancestral? Essa infração era punida severamente, algo sobre ter olhos vazados com a ponta de uma faca fervente!

Atravessei a linha das árvores. Salgueiros foram ultrapassados por minhas pernas velozes. Me virei, só para dar aquela conferida se ninguém estava me seguindo, quando dei de cara em algo duro, como uma parede. O impacto me fez desequilibrar e desabar ao chão, igual uma boneca de pano.

- Aiya, quem botou uma parede aqui?

Ergui o olhar e um homem me encarava, era alto e parecia um tronco de árvore devido a sua postura altiva, tinha um ar arrogante e frio, como a superfície de um lago congelado. E era possuidor de uma beleza tal que até os deuses o invejariam, as estrelas ficariam enciumadas e a lua se tornaria um pálido círculo, sem charme ou encanto. Meu coração começou a bater errático no meu peito. Medo deu lugar a mais sincera admiração. Acho que eu tinha a boca levemente aberta, porque eu a sentia seca. Esqueci a razão da minha fuga e fiquei ali sentado no chão, apenas o encarando.

Uma ideia passou pela minha cabeça. Ele seria um dos cultivadores imortais do Palácio das Nuvens? Um soldado?! Um guarda palaciano? A simples ideia que ele fosse um guarda e que me prenderia, me fez engolir em seco, toda a admiração murchou e eu comecei a elaborar a minha rota de fuga. Me levantei espanando as minhas roupas como se estivesse muito calmo. Eu poderia correr, mas a espada em seu cinto seria desembanhada antes que eu fosse muito longe, além disso um escape imediato seria uma assinatura de culpa. E até que provem, eu não sou culpado de nada.

- Aiya, um homem nem pode caminhar em paz!

- Por acaso estava espreitando as servas? - ele me acusou, assim, na lata.

- Quem? Eu? Nunca.

- Um homem andando pelas imediações no exato instante que as donzelas gritam "pervetido", diz muito por si só. - replicou, sua voz grave era cortante como o fio de uma faca.

- Diz? Não, não diz. Não de mim. Eu não gosto dessas coisas vis! Tal ação se refere a homens desonrados e indignos e esse, com certeza, não é o meu caso. - eu menti, com meu clássico sorriso no rosto.

Ele me olhou. Sua expressão era um enigma que ainda não desvendei, mas que me intrigava ao ponto do fascínio. O encarei mais do que a cordialidade aconselhava, então uma ideia descabida, mas que me salvaria a visão, me faz dar uns passos em sua direção. O sujeito desconhecido cheirava a incenso e cedro, uma combinação adequada a sua postura imperiosa. Coloquei um dedo em seu peito.

- Como eu dizia, tal coisa não me atrai. Sabe, ver servas desnudas me dá ânsia de vômito, em contrapartida, um Shao Ye portador de beleza e dignidade, me agrada. E muito. - dei ênfase na última frase e abri meu sorriso ladino, o qual costumava arrancar alguns suspiros das donzelas

Seus olhos tinham um tom inebriante de avelã, além de serem possuidores de uma intensidade e ancestralidade, como se tivesse visto muito do mundo. Uma alma velha, deduzi. Ele depositou sua atenção em mim. Não transparecia nojo pela minha declaração descarada de ser um corta-manga. Isso me dava abertura para outras investidas. "Vamos ver até onde ele aguenta minhas insinuações até sair correndo de mim", eu me sentia uma raposa enquanto dava um meio sorriso.

- Entendo. - assegurou desviando o olhar, numa ação quase tímida.

Essa sua reação me fez rir.

- Agora que sabe, que sou um corta-manga, espero que não me perturbe com perguntas estúpidas sobre servas, mas sim com seu nome shao ye. Embora, se não quiser dizê-lo, e desejar me empurrar contra aquele salgueiro e me beijar, também não me desagrada.

Consigo um par de orelhas vermelhas, o homem parece uma mistura de indignação e descrédito pelas minhas falas tão abertamente desavergonhadas. Eu quase explodo em gargalhadas, quando ele se distancia e bufa num gesto de fingida impaciência.

- Ainda não acredito em sua inocência, contudo, deixarei passar. - sua voz estava estremecida. Ora, ora! Uma rachadura tinha sido feita no lago congelado de sua personalidade? Ele estava abalado pela minha presença, afinal tenho certo charme, ou pelas minhas palavras?

Antes que eu tirasse alguma conclusão, ele virou as costas e se afastou com razoável rapidez, quase como se corresse de mim. Isso me deixou atiçado, dei um meio sorriso.

- Ainda não acredita? Então venha aqui e me beije! - minha provocação o fez correr em direção a linha dos arbustos.

Aquele desconhecido era engraçado e fofo, eu poderia brincar mais com ele. Com um sorriso no rosto, dei as costas para o caminho que ele tomou e segui a trilha, que me levaria de volta para a casa do Mestre Fei Ying.

Quando alcancei a casa de meu mestre (ou devo dizer o que restou da moradia, depois que eu a queimei?), avistei Ling Wang andando de um lado para o outro, como uma galinha de pé queimado. Ele coçava a cabeça com nervosismo e roía as unhas com avidez, assim que me viu expirou alto e alívio dominou seu rosto.

- Bai HuoWu!

- Eu mesmo.

Ele correu na minha direção.

- Algum guarda o pegou? Você vai ser preso?

- Não. - dei de ombros.

- Isso é bom. - ele deu um sorriso e me abraçou os ombros, caminhamos juntos para o interior do terreno, que supostamente deveria ficar a casa e a forja do melhor ferreiro do mundo, sim, eu não exagerei.

Shifu Fei tinha um renome internacional, ele foi o primeiro a forjar uma arma semi-divina, a qual o poderoso Liu Yuanqi - um imortal ordenado como 12ª Senhor das Tropas Douradas da planície ao sul e líder de uma seita de cultivação nas montanhas do Sol Poente - teve a honra de possuir. Era uma espada de fio reto, com adornos na empunhadura em ouro. Também tinha inscrições na lâmina de aço azuli, as quais eram um arranjo feito pelo imortal das inscrições que complementam a arma, a elevando mais alguns níveis, a tornando parcialmente divina.

Era uma arma verdadeiramente bela e primorosa, pelo que vi nos desenhos, pois nunca tive a sorte de analisá-la pessoalmente. Suspirei e entrevi meu shifu, ele estava sentado numa pedra embaixo da mangueira e rabiscava algo em um papel semi queimado. Havia um sorriso estranho em seu rosto, aparecia até um velho ganancioso contando seus taéis de prata. Às vezes eu me perguntava como um ferreiro tão talentoso se escondia atrás de tanta usura.

- Shifu, parece animado! - comentei me escorando no tronco da mangueira.

- Eu vou ficar rico. - ele tossiu. - Quer dizer, vão para a floresta, cortar algumas árvores para reconstruir a cabana.

- Mas Shifu, o senhor nos ensinou a forjar e não a construir. - falou Ling Wang com uma expressão indignada.

- Que observação genial - replicou o velho irônico, revirando os olhos - Chamei um construtor da Vila, ele chegará pela tarde. Então, vão arrumar a madeira.

E assim, entre suspiros, subimos a montanha para cortar árvores.

A burro reclamava com o peso dos troncos, pobre animal. Cocei a cabeça. Eu mascava a raiz doce do capim de mel, era saboroso e afastava a fome, já que a minha sacola de moedas andava vazia ultimamente. Era evidente a necessidade de inventar algo para vender no Mercado Fuzhin ou nesse ritmo, eu morreria de fome.

Comecei a girar meus neurônios, tentando espremê-los e criar uma incrível invenção. Não poderia ser nada muito requintado ou difícil, algo mais caseiro, que nobres e servas desejassem ter. Mas o quê?

Subitamente, Ling Wang se levantou da traseira da carroça.

- Aquilo é um cavalo? - ele estreitava os olhos, como se aquilo o fizesse ver mais longe.

- Cavalo? Mestre Fei ia receber a visita de algum nobre? - indaguei , enquanto conduzia o burro.

- Não que eu saiba. - respondeu Ling Wang, coçando o queixo.

- Estranho.

Trocamos olhares. O burro avançou a passadas lentas e assim, vagarosamente chegamos ao portão. Desci e fui amarrar as rédeas num toco de frente da casa. Passei analisando o cavalo, era de estipe puro-sangue, branco e bem cuidado. Aquele animal comia cereais de ótima qualidade e isso me fez o invejar. Como poderia um animal comer melhor do que eu? Suspirei e cuspi o capim de mel. Esse era uma espécie de cavalo de uso exclusivo dos cultivadores, e não de qualquer cultivador.

- Um imortal, no mínimo. - murmurei.

E eu não estava errado em minha suposição. Eu o vi de costas, a mesma figura ereta de cabelos como tinta preta sacolejando ao vento, ele parecia uma pintura. Suas vestes em um tom verde chato, o dava um aura quase divina. Meu mal humor se dissolveu, como uma nuvem que é diapersa com o vento. Dei um meio sorriso e gritei:

- Shao Ye!!! Veio me ver? Quer me dar aquele beijo? Porque eu estou completamento disposto!

Ele se virou, surpresa pintando sua face invernal, depois um leve corar deu vida as suas bochechas. O homem estalou a língua.

- Não acredito, você de novo?
- Porque a surpresa?! Gege não veio me ver?

E assim o deixei sem fala, enquanto me empedurava em seu braço e dava meu melhor sorriso sem vergonha.

Iria fugir de mim pela segunda vez?

Notas

Ge: usado para se referi a um amigo mais velho.

Shao Ye: Jovem mestre.

Corta-manga: termo chinês que equivale a gay.

Gege: também é a forma para se chamar um amante.

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