O Sumiço da Espada Invernal
KOHAN
Kohan caminhava logo atrás de Art, que avançava pela trilha com passos leves, mas firmes. Greta liderava o grupo, a bússola em sua mão apontando incansavelmente para o norte, sem nunca hesitar. Vixen, como sempre, permanecia entre todos eles, mais por conveniência do que por escolha. Ela já havia deixado claro que não precisava de proteção o tempo todo, mas Kohan começava a acreditar que precisava, sim.
Já haviam se passado horas na trilha, e os primeiros sinais de tédio e frustração começaram a se manifestar entre os companheiros. Suspiros escapavam, quebrando o silêncio. O sol, que antes brilhava intensamente entre os galhos, agora se esvaía, enquanto a noite se aproximava, trazendo consigo incerteza sobre onde estariam ao cair da escuridão.
— Que tal jogarmos um jogo enquanto desbravamos essa maravilhosa e... densa floresta sem graça do mundo mortal? — sugeriu Art, com uma voz suave e ligeiramente arrastada. Às vezes, ele soava como uma cobra sibilando.
Kohan trocou um olhar rápido com Greta, que mantinha o foco na bússola, e depois com Vixen, que revirou os olhos, visivelmente irritada com a ideia. O príncipe conteve um sorriso — Art parecia sempre saber como provocar uma reação, mesmo em situações mais tensas.
— E que tipo de jogo você tem em mente? — Kohan perguntou, tentando manter o tom casual, apesar do crescente cansaço que sentia.
— Um jogo de perguntas, talvez. Cada um faz uma pergunta pessoal, e todos devem responder honestamente. Algo simples, mas que pode nos ajudar a nos conhecermos melhor — ele sugeriu, com um olhar que brilhava com uma curiosidade maliciosa.
— Ótimo — resmungou Vixen, sem disfarçar o sarcasmo. — É exatamente o que eu quero, um jogo de perguntas com pessoas que mal conheço.
— Se for isso ou continuar em silêncio até escurecer, eu prefiro o jogo — disse Kohan, tentando aliviar a tensão. — Talvez isso torne a caminhada menos monótona.
Greta, que até então não havia se pronunciado, soltou um suspiro leve.
— Tudo bem, mas vamos manter as perguntas... razoáveis — disse ela, sem tirar os olhos da bússola.
Art sorriu satisfeito.
— Excelente. Eu começo então... — Art hesitou por um segundo, como se, apesar de ter sugerido o jogo, não soubesse o que perguntar.
Antes que ele pudesse continuar, Vixen interrompeu, sua voz cortante como uma lâmina.
— Qual de vocês também acha que essa missão é suicídio? Levanta a mão. — A pergunta foi direta, carregada de uma frustração que ela parecia acumular a cada passo. Seu olhar era tão afiado que parecia querer perfurar alguém.
O grupo parou imediatamente, trocando olhares silenciosos. Todos sabiam que, em algum nível, Vixen havia vocalizado o que todos temiam, mas ninguém tinha coragem de admitir em voz alta.
— O que foi? Só disse o que todos vocês estavam pensando. — Ela cruzou os braços sobre o peito, sua postura desafiadora realçando ainda mais seus seios.
Kohan observou Vixen por um momento, mas não disse nada. Ele percebera que, até então, não havia prestado muita atenção aos detalhes físicos de seus companheiros de missão. Art, por exemplo, era ridiculamente bonito, como se tivesse saído de uma lenda antiga. Mas, ao mesmo tempo, havia algo inquietante nele — uma letalidade silenciosa que transparecia na maneira como vestia sua armadura de combate, impecável e imponente. Kohan sentiu uma pontada de inveja. Se ao menos ele tivesse metade do estilo e da confiança de Art, que, apesar da aparência juvenil, parecia ser o mais novo entre eles.
Quanto a Vixen, sua presença era uma mistura intrigante de beleza e ameaça. Mesmo que Kohan não suportasse seu jeito provocador, não podia negar que havia algo magnético nela. Seu rosto, esculpido de forma quase sobrenatural, carregava uma frieza elegante. O perfume que ela exalava, doce e envolvente, trazia consigo o aroma das fadas do Verão. Seu vestido, um exemplo perfeito da magia de seu reino, era feito de um tecido leve e fluido que flutuava ao redor dela como uma aura etérea. Delicadas flores douradas e prateadas bordavam o tecido, parecendo ganhar vida com cada movimento que fazia.
Enquanto Art parecia pronto para uma batalha sangrenta, Vixen estava pronta para o velório de qualquer um que ousasse cruzar seu caminho. Kohan, por mais irritado que estivesse com ela, não podia negar que havia algo em sua postura altiva que o fazia admirá-la, mesmo que em segredo.
— Eu não acho que seja uma missão suicida — falou Art — mas concordo que tudo isso é muito estranho.
— Você acha que a Deusa se precipitou em nos mandar para cá? — Greta virou-se para olhar seus companheiros.
— Não! — Kohan vociferou, sua voz ecoando pela floresta. — Ela é uma porra de uma Deusa, nunca cometeria um erro desses. Temos que confiar na nossa missão e seguir em frente.
— Você só diz isso porque a dádiva roubada é do seu pai. — Vixen não deu tempo para Kohan absorver as palavras antes de continuar com acusações. — Até onde sabemos, seu pai deveria ser responsável por ela.
Ela não estava errada, e isso fazia Kohan querer socar qualquer coisa à sua frente. Seu maldito pai havia dado instruções claras sobre como seguir com a missão: liderar, encontrar a espada, incriminar a Corte do Outono por puro despeito, e voltar como um herói — algo que Kohan sabia que nunca seria.
— Sim, meu pai é um babaca, e todos sabemos disso — Kohan respondeu com a voz controlada, embora a menção de seu pai amar mais a espada do que a ele mesmo o incomodasse profundamente. — Mas se tem algo que meu pai ama mais que a si próprio, é a Espada Invernal. Ele não permitiria ser ludibriado tão facilmente dentro de seu próprio castelo.
— E você? — A pergunta veio de Greta, que mantinha os olhos na bússola mágica. — O que você sabe sobre o roubo? Até agora você não nos deu detalhes sobre a dádiva do seu reino. Três de nós aqui nunca nem a viram pessoalmente.
A pergunta trouxe à mente de Kohan muitas lembranças de um passado recente, que agora pareciam pertencer a outro Kohan — um Kohan que desejava apenas liberdade, cavalgar com seus cavaleiros e treinar com seu Elo de Espadas. Um príncipe sem trono para herdar, que jamais quis ser rei como o pai.
— Está bem, vocês querem saber sobre a espada? Eu vou contar o que sei sobre a Espada Invernal e o que lembro do dia em que foi roubada. Mas antes, precisamos de um lugar para dormir. Está escurecendo e não estamos mais perto de sair desta floresta do que estávamos antes.
— E onde você pretende que durmamos? — Art perguntou com descrença e decepção no rosto. — Você não está sugerindo que durmamos AQUI, neste chão imundo e nessa floresta desconhecida. Não, obrigado.
— E você tem uma ideia melhor? — Greta estava ao lado de Kohan nessa, pelo menos.
— Não, mas... — Art hesitou, sem palavras para se justificar. — Ótimo, mas eu vou querer o lado com mais grama. E vamos fazer uma fogueira!
Kohan quase riu, contendo o riso que subia pela garganta. Ele estava começando a gostar de Art mais do que imaginava. Os trejeitos dramáticos, a fluidez quase musical de sua fala, e o brilho juvenil em seus olhos estavam conquistando a simpatia, e até certo respeito, do herdeiro invernal.
— Claro, uma fogueira seria boa. — Foi tudo que Kohan disse antes de começar a recolher galhos e folhas para a fogueira.
Enquanto os quatro juntavam madeira suficiente para a noite, Kohan refletia sobre o quanto estava disposto a contar a seus companheiros sobre o roubo da dádiva e as histórias que a envolviam. Sabia que o momento estava chegando, mas quanto mais compartilhava, mais ele revelaria sobre si mesmo — e isso o deixava desconfortável.
****
Os quatro estavam sentados sobre a grama do chão e observavam uns aos outros, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Kohan estava refletindo sobre como poderia iniciar uma conversa sobre a Espada e o roubo que havia tirado de seu castelo. O peso das palavras o oprimia; enquanto ele sempre se sentia à vontade para discutir esses assuntos com seu amigo Kirk, abrir-se para estranhos era uma tarefa assustadora.
O olhar de julgamento estava presente, como uma sombra pairando sobre ele. Kohan podia sentir a raiva emanada de seus companheiros, embora não fosse direcionada a ele, mas sim à sua linhagem e a tudo que seu reino havia causado a eles.
Art, sentado de pernas cruzadas, observava cada movimento de Kohan, seu olhar intensamente curioso e, por um momento, quase solidário. Vixen mantinha os braços cruzados, seu rosto expressando uma mistura de ceticismo e desdém, como se estivesse esperando que Kohan cometesse um erro ao falar. Greta, por outro lado, parecia mais aberta, seus olhos analisam
Kohan respirou fundo, buscando coragem nas profundezas de sua voz. Ele sabia que deveria compartilhar a verdade, não apenas para aliviar seu coração, mas para que seus companheiros entendessem a gravidade da situação. A Espada Invernal não era apenas um objeto de poder; era um símbolo de seu legado, da luta de seu povo e do peso que ele carregava em seu coração.
Kohan estava prestes a contar algo que havia mantido trancado em sua mente por anos, e a raiva latente o consumia a cada palavra. Ele respirou fundo e, com a voz carregada de mágoa, começou:
— Quando eu tinha seis anos, minha mãe me colocava para dormir todas as noites. Não falhava um único dia. Naquela época, meu quarto ficava na torre sul, perto dos aposentos reais. Numa dessas noites, já deitado, esperei. Esperei... mas ela não apareceu.
Sua voz baixou, tomada por um tom sombrio, enquanto os outros permaneciam atentos, curiosos e incertos.
— Eu saí do meu quarto, descalço. O chão estava gelado, coberto por pequenas crostas de gelo. Mas eu não sentia nada. Só queria encontrar minha mãe. Caminhei até os aposentos dela, como sempre fazia. Quando cheguei, dois guardas estavam na porta, e de dentro... uma luz. Achei que fosse a lareira. Mas então, ouvi os gritos dela.
Kohan parou por um segundo, o som da fogueira ecoando ao redor. Ele ergueu a cabeça e olhou nos olhos dos companheiros, a escuridão da memória pulsando em suas palavras.
— Os gritos eram da minha mãe. Eu... corri. Passei por baixo das pernas de um dos guardas e entrei. Foi a cena mais dolorosa que já vi.
— O que estava acontecendo? — Art perguntou, inclinando-se mais perto.
— Ela estava... nua da cintura para cima. Seu vestido rasgado. Meu pai... estava parado diante dela. A Espada Invernal nas mãos dele, e dela, sangue azul... escorrendo pelos cortes nas costas. Três cortes profundos. Eu podia ouvir cada gota de sangue pingando no chão. — A voz de Kohan assumiu um tom assustador, como uma tempestade prestes a explodir. — Minha mãe chorava. Ela nunca chorava.
Greta não conseguiu se conter e explodiu:
— Seu pai devia ser preso nas Ilhas Sem Estações!
Kohan bufou, a raiva transbordando.
— Meu pai? Ele é muito pior do que qualquer um de vocês possa imaginar. No meu aniversário de dezesseis anos, ele me mandou para uma floresta congelada cheia de criaturas malignas. Chamou de "treinamento", mas os Sufocadores que encontrei lá me disseram que ele queria que eu morresse.
— E como você sobreviveu? — Vixen perguntou, fascinada, mexendo em uma mecha de cabelo.
Kohan sorriu, um sorriso sombrio e amargo.
— Derrotei os três Sufocadores. Arranquei suas cabeças e suguei a magia das árvores da floresta. Voltei mais forte. Joguei as cabeças aos pés do meu pai. Foi assim que ganhei o apelido de "Príncipe Kohan, o Cruel".
Todos estavam em silêncio, absorvendo o peso de suas palavras. Kohan continuou:
— Meu pai é obcecado pela Espada Invernal. A trata melhor do que a mim ou minha mãe. Ele a exibia no trono como se fosse a própria essência do poder. E eu... comecei a odiá-la. Odiei a espada por tudo o que ela representava. Até que uma noite, eu a roubei.
— Você o quê?! — Vixen arregalou os olhos, descrente.
— Roubei a espada. Não aguentava mais. Queria fugir, mas os guardas me capturaram. Meu pai fez comigo o mesmo que fez com minha mãe. Três cortes nas costas. A dor... — Kohan cerrou os dentes, as palavras se arrastando com o peso das lembranças. — Achei que fosse morrer ali. Mas ele me deixou, sangrando no chão.
O silêncio dominou a todos novamente, o peso da revelação caindo sobre eles.
— E o que aconteceu depois? — Art sussurrou.
— Acordei, curado. As marcas ficaram, mas a dor se foi. Quando me levantei, meu pai entrou exigindo saber como eu havia "roubado" a espada novamente. Ela havia desaparecido. Alguém mais a roubou. É por isso que estou aqui. — Kohan respirou fundo. — Para encontrar a maldita espada que destruiu a vida da minha mãe e a minha.
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