Decisões Eternas

GRETA

O quarto da princesa Greta era simples, mas carregava um charme peculiar.
As tapeçarias de tons terrosos envolviam o ambiente em uma aura de serenidade rústica, enquanto a coleção de armas e artefatos de guerra conferia uma sensação de poder e prestígio. 

A escrivaninha, repleta de livros sobre o mundo mortal, refletia uma mente ávida por saber mais do lugar para onde estava sendo enviada. Entre os volumes, talvez houvesse obras sobre táticas militares, estudos sobre a história dos reinos vizinhos, ou mesmo romances que ofereciam um vislumbre das vidas e sonhos dos seus súditos. 

A besta favorita da princesa, repousando com um certo orgulho sobre a escrivaninha, parecia ser uma extensão de sua própria personalidade destemida. Ao lado, espadas de lâminas finas e reluzentes descansavam em suportes de madeira escura, cada uma com uma lâmina gravada com runas antigas que sussurravam histórias de batalhas passadas. No espaço acima da cama, um chicote de couro trançado com precisão estava pendurado com um orgulho silencioso, suas franjas pendendo como uma cobra adormecida. E, em uma prateleira especial, kunais afiadas estavam dispostas com cuidado, cada uma com um acabamento impecável que refletia a luz da janela.

A jovem Greta havia aprendido a lutar com seu pai, o Rei Calton, quando ele ainda estava presente em sua vida. Cada técnica, cada movimento de espadas e cada lição sobre estratégia eram ecos de momentos preciosos que ela compartilhava com ele. A ausência do pai a afetava profundamente, e, em muitos dias, a dor se manifestava como uma pressão constante no peito, uma sensação de que seu coração estava prestes a se despedaçar em milhões de fragmentos. Agora, Greta só tinha sua mãe, a Rainha Pearl, uma soberana ocupada e preocupada com uma possível ameaça ao reino.

Ela amava a mãe profundamente, adorava estar ao seu lado e sentia um imenso orgulho de tê-la como governante. O reino do Outono era conhecido e temido há séculos por ser governado exclusivamente por homens de pulso firme e extremamente rígidos. No entanto, quando a Rainha Pearl atingiu a maioridade e assumiu uma coroa que, segundo as histórias, ela não desejava, transformou o reino em um lugar seguro e livre de medo. Sob sua liderança, o reino do Outono passou a ser governado por uma mulher de imensa bondade e gentileza, embora também mantivesse uma certa rigidez à sua maneira.

Greta sabia que as primeiras horas da manhã raramente traziam boas notícias e quando bateram na sua porta logo no alvorecer do dia exigindo a presença dela no grande salão ela sabia o que a esperava. Uma reunião formal com a Rainha do Outono, não sua mãe. Sentindo o peso da conversa que teria com a Rainha, Greta ajustou seu manto e prendeu na altura do pescoço com um broche de ouro em formato de uma loba. Com um gesto firme, ela se preparou mentalmente para a reunião.

A princesa sabia que, na verdade, essa "reunião" estava mais para um conselho de guerra com a Rainha. A atmosfera estava carregada de tensão, e a princesa sentia o peso das decisões que teriam que ser tomadas. O que estava em jogo era muito mais do que uma simples discussão —era o destino de seu reino.

— Eu consigo! - disse, caminhando para fora do seu quarto e partindo rumo à sua grande aventura.

O Salão Real do Reino Outonal é com certeza uma majestosa fusão de elegância e natureza. As portas de madeira maciça esculpidas com intrincados padrões de folhas de carvalho davam as boas-vinda a princesa enquanto ela aguardava ser anunciada por um dos guardas que protegiam as portas.

As portas duplas se abriram e Greta quase ficou cega com a claridade que inundava o salão. Um Arauto deu um passo à frente e proclamou aos berros a sua chegada:

— A filha da Rainha e futura Rainha da Corte Outonal, a Princesa Greta Tower!

O lugar estava tomado de nobres da corte da Rainha. Greta conhecia bem pouco dos que ali estavam, mas, no meio de todos os olhares, ela conseguiu reconhecer sua melhor amiga e dama de companhia , Nyliss. Com seu cabelo dourado reluzente sob a luz dos lustres de cristal, acenou discretamente para Greta, oferecendo-lhe um sorriso encorajador.

O salão estava como ela sempre amou, era o com teto tão alto que se perdia de vista. Era como se não tivesse um fim.  A sensação de outono era evidente. Folhas secas, de cores vibrantes como amarelo, laranja e vermelho, estavam espalhadas pelo chão, criando um tapete natural sob os pés. Árvores espalhadas pelo salão, com galhos decorados de folhas coloridas e algumas penduradas no teto, adicionam um toque rústico. O ar era impregnado com o aroma característico do outono, uma mistura de folhas secas, terra úmida e um toque de madeira.

Greta caminhou graciosamente até o tablado onde encontrava-se o trono de sua mãe. Ela sabia que não precisava se ajoelhar perante a rainha, mas fez uma leve mesura diante dela.

— Vossa Majestade!

— Minha filha, a hora tão aguardada finalmente chegou. Hoje é o dia que você tanto sonhou, o momento de provar ao reino o quanto é digna da coroa. — A voz da Rainha Pearl era centrada e firme, com uma certeza imensa em cada palavra. — Este é o seu momento, Greta. Lembre-se de tudo o que aprendeu e do que representa para nosso povo essa missão. 

— Sim, Vossa Majestade, mas como eu vou fazer o que é esperado de mim se nenhum de nós quatro cruzou as fronteiras antes? — Greta lutava para esconder o medo crescente dentro de si, que se intensificava a cada segundo que passava.

— É exatamente por isso que todos estão aqui — a Rainha levantou-se de seu trono, sua presença imponente dominando o salão. — Para testemunhar e certificar a decisão que eu tomei.

O silêncio na sala era quase palpável, carregado de uma tensão que parecia aumentar a cada palavra da Rainha.

— Eu, Rainha e Protetora do Reino Outonal, abdico da minha dádiva e passo para minha filha e sucessora do trono, Greta Tower. 

O salão explodiu em murmúrios de indignação e surpresa, como um rugido de tempestade prestes a desabar. Greta sentiu a cabeça girar e suas pernas vacilarem sob o peso esmagador da situação.

— Mãe, a senhora não pode... O que está fazendo? — Sua voz tremia com um desespero crescente.

— Eu já tomei minha decisão — disse a Rainha, sua voz cortante como aço. — Você, Greta, vai para o mundo mortal com os filhos de outros reis e rainhas, e eles também terão seus truques.

Ela fez uma pausa dramática, e o silêncio na sala parecia engolir as palavras. O olhar da Rainha se fixou na filha, uma expressão de pesar misturado com determinação em seu rosto.Greta estava paralisada, sem entender completamente o que sua mãe estava insinuando. A Rainha desceu das escadas de seu trono com uma graça quase etérea, dirigindo-se a Greta com um olhar de uma mãe preocupada e implacável.

— Há muitos anos, eu fui para o reino mortal e vi o que aqueles seres que a Deusa tanto ama são capazes. Vi destruição, morte e o medo propagado pelos que estão no poder. E eu nunca deixaria você correr riscos por um erro que não foi seu. 

A Rainha retirou um objeto reluzente de dentro da manga de seu vestido, que era, de fato, uma obra de arte em si. Greta ficou hipnotizada pelo brilho intenso do item, um misto de ouro e pedras preciosas que parecia pulsar com uma energia própria.

— Aqui está — disse a Rainha, erguendo o objeto com uma das mãos. — A dádiva do nosso reino. 

Greta olhou fixamente para o item. Ela tinha ouvido muitas histórias sobre a dádiva do Outono, uma bússola encantada que sempre mostrava o caminho para casa e revelava a entrada dos reinos etéreos. A incredulidade de Greta era palpável; nunca a dádiva tinha sido usada por ninguém além do rei governante atual.

— A bússola não funciona com herdeiros, Vossa Majestade. É sabido por todos — a voz de um lorde ecoou baixo, mas claro, do fundo da multidão.

— Não consigo vê-lo, Lorde Tawin — respondeu a Rainha, sua voz firme e fria, sem sequer se voltar para procurar o dono da voz. — Mas como eu disse antes, eu abdico dos poderes da dádiva. Assim, minha filha, como herdeira do trono por direito, é a nova dona. A dadiva lhe respondera como é de costume.

O silêncio se aprofundou, carregado de um suspense quase palpável, enquanto a Rainha entregava a bússola para Greta. A atmosfera estava carregada de uma tensão que parecia pressagiar um futuro incerto e perigoso. Greta sabia que sua vida, e talvez a de todo o reino, estava prestes a mudar para sempre.

— Esperamos grandes feitos da sua parte, Princesa — disse a Rainha, estendendo os braços e envolvendo sua filha em um abraço que misturava orgulho e preocupação.

A multidão continuava a murmurar, o burburinho crescente preenchia o salão com um som ameaçador, como um mar revolto prestes a desabar. Greta podia sentir a frustração e a desaprovação palpáveis ao seu redor. Os olhares dos lordes e ladies se fixavam nela, como se fossem flechas invisíveis, e o peso de suas expectativas parecia esmagar sua vontade.

Sua respiração começou a acelerar descontroladamente, e suas mãos estavam úmidas de suor. Greta estava novamente se afundando naquela sensação familiar de sufoco, de estar presa em um labirinto sem saída. O teto, que antes parecia majestoso e distante, agora parecia ameaçadoramente baixo, como se estivesse prestes a desabar sobre ela.

Greta tentou se afastar, mas os olhos de todos pareciam seguir seus movimentos, intensificando ainda mais seu sentimento de ser observada e julgada. Ela forçou-se a levantar a cabeça, mas o desconforto e o medo era demais, como se estivessem se manifestando fisicamente em seu corpo. O abraço da Rainha, que deveria ser reconfortante, agora parecia uma prisão dourada. Ela sabia que sua vida, e talvez o destino de todo o reino, estavam agora entrelaçados com o poder da dádiva e os desafios que viriam. E no meio desse caos, ela não podia deixar de se perguntar se estava realmente pronta para o que estava por vir.

*****

— Tá, você ganhou uma joia da sua mãe e daí? — Nyliss estava jogada na cama de Greta, mexendo distraidamente com uma das muitas facas espalhadas pelo quarto. A faca que ela estava segurando tinha sido encontrada por baixo do travesseiro da garota.

Depois da reunião com a Rainha, Nyliss se encontrou com Greta antes mesmo de ela conseguir chegar até a porta. As duas se abraçaram com força, como se quisessem se prender uma à outra, e saíram do salão, que aos poucos se esvaziava, dirigindo-se diretamente para o quarto de Greta.

A mochila de Greta, pronta para a missão, estava jogada em um canto do quarto, com seu conteúdo parcialmente visível devido ao fecho aberto. Assim que a porta se fechou atrás das garotas, Greta teve um acesso de raiva incontrolável. Ela chutou a mochila para longe, fazendo-a deslizar pelo chão e bater com força contra a parede. Em seguida, socou o boneco de treino que estava no canto do quarto, fazendo-o balançar e quase cair. Com a raiva crescendo, Greta pegou uma faca da mesa próxima e, com um movimento brusco, arremessou-a contra a parede, a lâmina cravando-se com um som agudo e definitivo.

Nyliss observava, sem saber se devia intervir ou permanecer em silêncio. O quarto estava agora cheio de tensão, o ar pesado com a frustração e a fúria de Greta. Ela sabia que, por trás daquela explosão de raiva, havia algo muito mais profundo e doloroso, mas o medo de mexer mais nas feridas parecia ser maior que a vontade de ajudar.

— Está se sentindo melhor agindo como um troglodita do norte? — Nyliss enrolava uma mecha do cabelo em um dos dedos enquanto a amiga se jogava na cama ao seu lado.

— Para você tudo é uma grande brincadeira, não é? — Greta jogou o travesseiro na amiga. — Estou falando sério, Nys! Como vou fazer tudo que estão me pedindo se eu só tenho dezenove anos, caramba?

— Escute, Greta, pelo que eu entendi, você só vai acompanhar o Príncipe de Inverno e os outros em uma missão. Você não é responsável por liderar e muito menos por encontrar alguma coisa para aquele rei nojento.

— Mas e se eu fizer algo errado? E se eu não estiver à altura? — Greta levantou-se e começou a caminhar pelo quarto, suas mãos tremendo ligeiramente. — Em poucas horas, estarei me encontrando com a Deusa e os outros companheiros. Minha mente não para de pensar em tudo que pode dar errado.

— Calma, Greta. Todos têm suas dúvidas. — Nyliss sentou-se na cama, seu tom de voz mais suave. — Você não precisa ser perfeita. E se algo der errado, você não estará sozinha. Você pode confiar nos outros também.

Greta respirou fundo, tentando acalmar seu coração acelerado. Ela sabia que Nyliss estava certa, mas as dúvidas ainda pairavam em sua mente. Como confiaria neles se ela nem ao menos conhecia um deles. Ainda mais o herdeiro do norte, O Príncipe Kohan Snow. Seu pai deve te-lô intruido muito bem. 

— Você tem razão, como sempre! — admitiu Greta para a amiga — mas não posso confiar plenamente neles, ao menos não ainda.

— Agora que você está recobrando seu juízo mental... — Nyliss levantou-se da cama saltitando e foi até o armário da amiga. — Já preparou suas roupas pomposas e suas adagas afiadas, Princesa?

Greta sabia que era função de sua dama de companhia, ou seja, Nyliss, arrumar sua bagagem e acessórios para qualquer imprevisto. Mas a amiga tinha tendência a exagerar, e quando ela dizia exagerar era no sentido mais claro da coisa. Ela colocaria vestidos e corpetes, joias e chapéus requintados e, se deixasse, muitos, mas muitos sapatos.

— Com toda certeza. Ou você achou que eu deixaria você cuidar disso? — Greta sorriu, pegando sua mochila e mostrando para a amiga.

— Um kit completo de calças, camisetas, calcinhas e tudo que for necessário para uma missão.

— E se você precisar ficar bonita para seduzir um mortal? — Nyliss deu uma risadinha levantando as sobrancelhas. — Ou quem sabe um dos jovens príncipes!

O rosto de Greta ficou vermelho, mas não de raiva ou vergonha. Ela se segurava para não rir da suposta piada da amiga.

— Você vive num mundo de fantasia, não é mesmo, Nyliss? Eu jamais usaria dessas artimanhas com mortal algum. Já os príncipes? Prefiro me manter longe de encrencas.

— Claro, porque é isso que a Princesa Greta sempre faz, não é? — Nyliss largou as peças de roupas que havia pegado do guarda-roupa, deixou sobre a mesa e foi caminhando em direção à saída.

— Espere, eu não mandei você se retirar. E o que você quis dizer com "é isso que eu sempre faço"?

— Eu só quis dizer, minha lady, que você sempre desconversa quando o assunto é as artes do amor. Então eu pensei que seja porque a senhora ainda não... desculpe, estou falando demais.

— Eu não... Eu não faço isso. — Greta começou a remexer suas mãos, que suavam frias.

— Claro que não, foi um erro de observação. Peço desculpas, princesa.

Nyliss se retirou do quarto quando a princesa acenou com a cabeça, dispensando-a. Será que sua dama de companhia estava certa no que disse? Era óbvio que certos assuntos sempre a deixavam encabulada.
Desde muito nova, ouvia as conversas de Nyliss e de outras criadas e fingia não ouvir. As coisas que elas diziam fazer com seus namorados ou "amigos" próximos eram deveras assustadoras e muitas vezes intrigantes. Greta ficava com vergonha do que ouvia e sempre pedia para que Nyliss fosse com ela a alguma parte do castelo, só para trocar o rumo da conversa.Mesmo agora, com sua maioridade, Greta ainda se sentia pouco à vontade com o assunto. E, apesar de já ter dado alguns beijinhos por aí em nobres inferiores da corte, ela de fato nunca chegou a fazer o que Nyliss e as outras empregadas diziam ser a melhor coisa que os homens sabem fazer com uma mulher.

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