Caça & Caçador
KOHAN
Olhos azuis o encaravam de volta.
Quanto mais ele observava seu reflexo no espelho, menos conseguia se reconhecer. Não era uma mudança física que o incomodava — afinal, ele pouco havia mudado desde que completou dezenove anos. A combinação de treinamentos intensivos e exaustivos o tornava o Fae mais forte, mais desejado e mais temido de todo o reino invernal. As lendas sobre o Príncipe eram escassas, mas suficientes para instigar o medo nos mais astutos, que sabiam bem o valor de manter distância. Desde que fora incumbido de liderar uma equipe em uma missão suicida pela espada, não apenas trazê-la de volta, mas também garantir a segurança do mundo mortal e dos etéreos, ele sentia algo diferente. A mudança que tanto o incomodava era interna.
Kohan lembrava-se bem de quando tudo começou a dar errado em seus planos e nutria um profundo ressentimento pelo pai por isso. Como ele pôde ser roubado em seu próprio castelo?
Perdido e alheio aos seus próprios devaneios, o príncipe sentiu um arrepio na nuca quando uma brisa leve entrou no quarto pela porta da sacada. Flocos de neve eram soprados para dentro, intensificando o frio que já reinava. Kohan sabia que tinha apenas um dia para se preparar para partir junto de seus novos companheiros.
— Você deveria voltar para a cama, meu grande príncipe. Amanhã o senhor terá um dia importante pela frente. — Kohan voltou-se para a moça de cabelos brancos feito prata derretida, que estava enrolada nos lençóis azuis, e mordeu os lábios.
— Uma proposta tentadora, Cípria, mas essa missão que a Deusa Nefis me impôs não sai da minha cabeça. — Ele levantou-se e caminhou até a cama, entrando debaixo dos lençóis.
Suas mãos ágeis foram logo de encontro à cintura da jovem, trazendo-a para junto de si. Seus corpos estavam a centímetros um do outro, causando sensações em Kohan que ele sabia que o fariam esquecer da missão. Cípria era uma das "amigas" que o príncipe mantinha no castelo; dentre todas, ela era a de quem ele mais gostava. Sempre dizia o que ele queria e, principalmente, fazia o que ele queria. Kohan tinha grandes sentimentos por ela, tão grandes que às vezes chegava a comparar com amor, mas o jovem príncipe não tinha experiência quando o assunto era esse.
— Talvez eu consiga ajudar você a esquecer por um instante. — O lençol que cobria seu corpo deslizou pela beirada da cama e foi de encontro ao chão no momento em que ela subiu em cima dele completamente nua.
Antes mesmo que a jovem pudesse colocar suas artimanhas em prática para ajudar o príncipe, a porta do quarto abriu-se com um estrondo, espalhando uma brisa intensa pelo ambiente.
— Quem se atreve a... — antes mesmo de terminar a frase, o príncipe se adiantou e cobriu-se. A figura que irrompera em seu quarto no meio da noite estava parada à porta com o mesmo olhar de sempre. — Pai, o que o senhor deseja?
Percebendo que o filho estava despido de suas roupas, apenas cobrindo suas partes com um travesseiro, o rei logo vasculhou o quarto em busca da companheira com quem seu filho passava as noites em claro. Quando encontrou a moça enrolada nos lençóis e ajoelhada ao lado da cama, caminhou até ela.
— Qual seu nome, docinho? — perguntou o rei em um tom amigável o que não era nada bom.
— Cípria, meu rei, me chamo Cípria. — Ela não ousou virar o olhar em direção ao rei. Conhecia histórias sobre seu temperamento instável.
— Vista-se, minha querida, e saia. — Disse o rei, voltando sua atenção para o filho que permanecia cabisbaixo. — Quanto a você, vista algo decente.
A garota vestiu-se e, ao passar pelo rei, fez uma breve reverência. Assim que ela saiu e passou pelos guardas que estavam na porta, o rei imediatamente fechou a porta do quarto. Com apenas um olhar seus homens entenderam a ordem e assim a garota foi seguida pelos guardas. Ao se virar, viu que seu filho já estava de pé e prontamente vestido.
— Eu não consigo entender, Kohan, qual o prazer que você sente em me ver irritado. — Ele sentou-se em frente ao espelho em que o filho se olhava mais cedo. Reconheceu aquele espelho. — Era da sua mãe, não era?
Kohan sentou-se na cama e fixou o olhar em seu pai. Ficou em silêncio; Sempre ficava quieto quando o assunto era sua mãe.
— O que você deseja? Por que me incomodar a essa hora? — o príncipe sabia que, no fundo, seu pai tinha algo em mente.
— Você é igualzinho à sua mãe, sempre fazendo perguntas em vez de ouvir. — Ele levantou-se da cadeira e começou a andar pelo quarto do filho sem olhar sequer uma vez para o garoto. — Já que você prefere que eu seja direto, eu o farei.
Kohan aguardava, ansioso, o momento da apunhalada lenta e dolorosa. Ele quase podia sentir o pai se preparando para o golpe.
— Amanhã, quando sua "incrível missão" começar, você vai ficar de olho na filha da rainha do Outono. — A voz do pai era dura, a frieza evidente. — Não confio nessas fadas; estou convencido de que foram elas que conspiraram para nos trair novamente. Faça o que for preciso para encontrar a minha espada. — Pela primeira vez em dias, ele olhou profundamente nos olhos do filho. — Quero que você se vingue por mim e pelo nosso reino.
— Você está louco? Isso é um crime, eu seria mandado para Ilhas sem Estações papai. – Esbravejou Kohan.
— Não seja ridículo garoto– O rei se aproximou do filho e pegou seu queixo com a ponta dos dedos. – Você não tem escolha, se não fizer isso eu mesmo lhe banirei para aquelas ilhas malditas. Sem contar no que eu posso fazer a sua amiguinha. Cípria.
– Pai me escute por favor, eu lhe imploro... – começou o príncipe, mas foi interrompeu.
– Pare de choramingar Kohan, você nem parece uma fada invernal – ele abriu a porta, mas antes voltou a falar para o filho – amanhã, quando você sair por aquele portão lembre-se do que você está colocando em jogo.
A porta fechou-se atrás do rei, deixando um Kohan amedrontado e sem certeza do que iria fazer em seguida. Obedecer às ordens do pai e tornar-se um possível traidor ou seguir seu coração e deixar a mulher que ele possivelmente amava morrer?
Kohan ainda tinha uma terceira opção e era essa que ele decidiu que seguiria até o fim.
*****
Os corredores do castelo estavam vazios e congelantes, como o príncipe sempre se lembrava. Desde pequeno, ele sentia um certo medo devido ao tamanho e largura dos corredores. Quando tentava caminhar mais rápido para sair de um corredor, frequentemente se via entrando em outro com quadros imensos de seus antecessores. As paredes de pedra, cobertas por tapeçarias desgastadas e empoeiradas que retratavam a Primeira Guerra, absorviam qualquer vestígio de calor, tornando o ambiente ainda mais gelado e inóspito.
E assim segue sendo desde então.
Mesmo no auge da suas vinte e uma comemorações do seu nome ele ainda tremia a cada passo que dava dentro do castelo.
Saindo dos corredores, ele percebeu que a sensação de estar sendo observado, que o acompanhava dentro do castelo, finalmente desaparecia. Caminhou diretamente pelo salão real, sem se dar ao trabalho de observar os poucos criados que, preparavam o ambiente para a comemoração de sua partida. Entre as cortinas de veludo e os lustres cintilantes, eles trabalhavam com agilidade, ajustando a disposição das mesas e colocando toalhas finas. Cada criado estava imerso em sua tarefa, o ruído suave dos passos e o tilintar dos utensílios criando uma sinfonia sutil que pouco notaram o Príncipe que passava o mais discreto possível.
Kohan sempre sentia um alívio ao estar do lado de fora, longe das paredes sufocantes do castelo. Ele adorava o som das espadas chocando-se, ecoando pelo campo enquanto espadachins e soldados treinavam. Havia algo vibrante e vivo no mundo exterior, um contraste marcante com o ambiente opressor do castelo. As pessoas lá fora costumavam sorrir e se tratar com gentileza. A neve cobria o solo, as árvores estavam adornadas com cristais de gelo e o ar frio era refrescante. As risadas ecoavam pelo campo, um som que contrastava com o silêncio do inverno. Kohan caminhava em sentido ao seu destino quando uma voz familiar cortou o silêncio.
— Você não devia estar se preparando para uma missão ou coisa assim, favorito da Deusa?
Antes que pudesse virar-se para ver quem era, uma bola de neve acertou sua nuca. A raiva que estava começando a se formar em seu rosto desapareceu instantaneamente quando ele viu quem era o responsável pela brincadeira. Era Kirk, seu amigo de infância e também seu futuro Elo de Espada, com um sorriso travesso no rosto e outra bola de neve na mão. Pronta pra ser arremessada.
— Kirk! — Kohan exclamou, rindo e começando a juntar as mãos para se defender.
A segunda bola de neve voou pelos poucos metros que os separavam, mas desta vez Kohan estava preparado. Antes que pudesse acertar seu rosto, uma luz azulada emanou de suas mão juntos com o movimento e uma parede translúcida feita de gelo materializou-se na sua frente - Kohan sorriu- fazendo a bola espatifar-se em milhões de pedaços. Os fragmentos brilhavam ao cair ao chão, refletindo a luz suave do sol de inverno.
Kirk olhou para Kohan com um misto de frustração e curiosidade. A bola de neve derretendo rapidamente em suas mãos parecia refletir a tensão no ar.
— Eu não tenho tempo para brincadeiras, Kir, não mais. Preciso de um favor seu que vai contar com sua espada e confiança em mim.
— O que você precisa, Kohan? - perguntou Kirk, endireitando-se e deixando de lado a descontração habitual. - Sabe que pode contar comigo, mas preciso saber do que se trata.
Kohan respirou fundo, sentindo o peso das palavras que estava prestes a dizer:
— Precisamos sair daqui, não é seguro o que eu tenho pra te contar, na verdade pedir.
Os dois puseram-se a caminhar, sem precisar falar destino ou coordenadas. Kirk sabia muito bem aonde Kohan queria se encontrar, no lugar aonde somente ele tinha domínio e controle. Um lugar ao qual ele tomou para si. A Floresta dos Sufocadores.
Enquanto avançavam pela neve espessa, o silêncio entre eles era preenchido apenas pelo som de seus passos esmagando o gelo. Kirk olhava ocasionalmente para Kohan, tentando ler seus pensamentos, mas seu amigo mantinha-se focado no caminho à frente, sua expressão determinada.
A Floresta dos Sufocadores era conhecida por suas árvores altas e densas, cujas copas entrelaçadas bloqueavam a maior parte da luz do sol, criando uma penumbra constante. Todos com sã consciência sabiam que aquela floresta era lar de criaturas que foram criadas pela fada negra, Zontor. Os rumores diziam que aqueles que se aventuravam nela nunca mais saíam e eram sufocados de dentro para fora pelos seres.
Conta-se que as árvores sussurram à noite, transmitindo os lamentos das almas perdidas, e que até mesmo os animais evitam a região. Raros são os aventureiros que ousam se aproximar da borda da floresta, e menos ainda os que se arriscam a entrar. Os poucos que acreditam na possibilidade de explorar a floresta buscam não apenas sobrevivência, mas também respostas e, talvez, uma forma de libertar as almas sufocadas.
Chegaram ao limite da entrada da floresta e Kirk parou. Suas pernas tremiam diante das árvores de troncos grossos e galhos secos e congelados. O medo apertava seu peito, tornando difícil até mesmo respirar.
— Você pode ter o controle sobre essa floresta e sobre o que está aí dentro, mas daqui eu não passo — disse Kirk, sua voz carregada de determinação e medo.
Kohan sempre se divertia com a forma despreocupada e casual do amigo, e sentiria falta dessa leveza quando tivesse que ir para o mundo mortal. Um sorriso melancólico surgiu em seu rosto ao pensar nisso.
— Kirk, o que meu pai contou para todos no reino é uma grande mentira. A rainha não escolheu só a mim para a tal missão. — Ele olhava para o amigo, seus olhos implorando por compreensão e apoio. Mas tudo que ele viu foi um Kirk de cenho franzido, claramente confuso e sem entender nada.
— Como assim, Kohan? E de que porra se trata essa missão? O rei disse não só para MEU pai, mas pro reino todo que a Deusa te escolheu por ser o mais velho dos quatro primogênitos, e agora você me joga essa bomba?
— Kirk começou a caminhar de um lado para o outro, sem tirar a mão do cabo da sua espada, a frustração e a incredulidade evidentes em cada movimento.
— Por isso eu tenho que te pedir esse favor. Meu pai nunca gostou muito de mim, e você sabe disso. — Kohan se aproximou do amigo, ficando frente a frente. Suas respirações se misturavam e condensavam com o ar ao redor, criando uma nuvem de vapor que refletia a tensão crescente entre os dois.
— Qual é seu pedido, meu caro amigo? Estou ao seu lado no que precisar. — Ele olhou para a floresta atrás do príncipe e acrescentou, com um tom preocupado — Menos entrar nessa maldita floresta.
— A missão em que eu preciso ir é no mundo mortal. — A expressão no rosto de Kirk era de choque, espanto e incredulidade. — A espada do meu pai foi roubada há alguns dias. Eu e os outros príncipes e princesas partiremos hoje.
— Nem ferrando. Isso é contra a lei da própria deusa. — Kirk perdera o controle e agora quase esbravejava, exalando indignação.
— Kirk, me escute. — Kohan pegou nas mãos do amigo, tentando manter seu foco na conversa.— Você precisa cuidar e proteger uma pessoa para mim. O nome dela é Cipria, ela trabalha nas cozinhas do castelo.
— É sério isso? Eu achando que você ia me pedir finalmente pra ser seu Elo de Espadas e você vem me falar de uma qualquer?
Kohan poderia sufocá-lo ali mesmo por ofender a mulher que ele achava amar, mas não o fez. Kirk era seu amigo desde que ele se entendia por gente, e ele não tinha certeza de amar tanto Cipria a ponto de congelar o próprio amigo. Então qual era o sentido de ficar ofendido por Kirk chamá-la de qualquer coisa? Até onde ele sabia, Cipria era só uma plebeia que caiu nos encantos dele, assim como muitas outras.
— Ser meu Elo? — O príncipe se perdeu por um minuto na sua linha de raciocínio. — Achei que não precisaria de pedido, você é a única pessoa nesse mundo todo que eu aceitaria como meu Elo de Espadas.
— Bom, isso foi meio constrangedor... mas — ele sorriu, deixando a vergonha tomar conta de suas bochechas — por que você quer que eu a proteja? Se você não estiver aqui, ela não corre risco.
O deboche era evidente no sorriso de Kirk.
— Meu pai nos pegou na cama hoje de manhã, nem tinha amanhecido ainda. — Ele começou a caminhar feito um cachorrinho perdido. — Ele sabe que ela significa algo para mim, vai tentar usá-la para me atingir.
— Isso complica um pouco as coisas. — Kirk olhou para o príncipe e falou: — Acredito que seu pai não vai perder tempo com uma simples criada.
— Ele não, mas os guardas sob suas ordens sim. Meu pai não se importa com ninguém, somente com ele e seu reino. Ele a mataria só para me ver culpado pelo resto da vida. Por favor, Kir, ajude-a.
— Isso é uma ordem ou um pedido, meu príncipe?
— O tom na voz dele fez Kohan erguer a cabeça e olhar no fundo dos olhos do amigo.
— Um pedido de amigo, um pedido do seu futuro Elo de Espadas!
Kirk olhou por um momento para o rosto do jovem príncipe. Ele via naquele rapaz na casa dos vinte anos o mesmo garotinho com rosto pidão e sofrimento de anos atrás. Kirk se lembrava de um Kohan de antes e depois do que aconteceu a ele nessa mesma floresta. Quando retornou com a cabeça das três criaturas que ali viviam e comandavam, Kohan já não era mais o mesmo. Sua magia estava mais forte e, com ela, a mudança no seu olhar que antes era acolhedor e gentil se tornou sombrio, como se a qualquer momento ele fosse te congelar só por pensar em olhá-lo. Agora ele estava na sua frente, quase implorando por ajuda para uma serva do castelo. Isso mexeu com algo dentro dele, lembrar do príncipe quando ainda eram crianças aqueceu seu coração e deu esperanças de que um dia o príncipe voltasse a sentir algo além de dor e amargura.
— Como posso ajudá-la caso o rei tente algo? Ele é o rei e eu sou um simples guarda, seu guarda real.
— Mantenha-se distante, se sentir que ela corre o mínimo perigo, leve-a daqui, para a vila mais distante do reino. Ordene que troque de nome, não se vire, Kirk.
— Você só pode estar delirando. Esse reino é do seu pai, ele a acharia em um piscar de olhos. — Ele parecia nervoso com o plano. — Seu plano é uma bosta.
O príncipe parou abruptamente de sua caminhada em círculos. O chão já fazia um pequeno buraco aonde ele caminhava. Ele virou para o amigo e sorriu como se tivesse tido a melhor das ideias.
— Já sei o que fazer caso eu não volte vivo desta missão ou no tempo que a Deusa estipulou.
— E qual é a sua brilhante ideia agora, ó Príncipe Kohan O Cruel? — debochou Kirk.
— Você vai se casar com ela!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top