Capítulo 1 - parte 1 (em revisão)
"A justiça sem a força é impotente, a força sem justiça é tirana."
Blaise Pascal.
A viatura policial tentava avançar a todo o custo pelo anoitecer do Rio de Janeiro, na Zona Sul da cidade. Apesar do barulho estridente da sirene que era aumentado pela buzina que Arthur tocava de forma bastante insistente, o trânsito da Ataúlfo De Paiva estava de tal forma complicado àquela hora que ele tinha a certeza de que jamais chegaria a tempo ao local do crime.
A principal avenida comercial do Leblon estava de tal forma congestionada, com veículos meio de lado tentando mudar de faixa para tentarem ganhar alguns metros de vantagem que nem as motocicletas conseguiam avançar, quanto mais um carro.
O delegado já perdeu as contas de quantas vezes aquela gangue misteriosa fez a corporação de idiota, em especial a ele, uma vez que, contra todas as estatísticas, os ataques ocorriam perto dele em quase noventa por cento dos casos, como se os criminosos fizessem um desafio pessoal ao pobre policial. Conseguiu avançar mais cinquenta metros naquele engarrafamento caótico e, irritado, deu uma pancada no volante quando viu que estava mais uma vez preso apesar da sirene. Chegou a cogitar ir pela calçada, mas a quantidade de pedestres era tão grande que poderia arriscar a vida de um transeunte, o que só lhe renderia sérias dificuldades.
Arrancou um cigarro do maço, quase amassando os poucos que restavam, e acendeu, displicente. Após soltar uma longa baforada e sentir-se um pouco menos agitado, respirou fundo e pegou o microfone:
– Alô, central, aqui fala viatura seis zero oito – disse, ainda bastante irritado e cuspindo as palavras. – Estou preso no Leblon, vou tentar sair por outra via, mas tá muito complicado. Tem alguma viatura alternativa para atender? Na escuta.
– "Seis zero oito" – disse a voz do outro lado. – "Esqueça que nunca chegará a tempo, Arthur. Um grande acidente fechou todo o trânsito da sua região. A cinco um nove está chegando lá, mas, segundo dizem, a gangue da risada já se mandou. Esses demônios estão sempre um passo à nossa frente. Câmbio."
– Certo, central, seis zero oito retornando à rotina normal. Câmbio final.
– "Copiado, seis zero oito. Câmbio final."
Com uma pancada rápida, desligou a sirene e aguardou mais de meia hora no engarrafamento até chegar a uma esquina por onde entrou, conseguindo fugir do caos.
Aliviado, Arthur voltou a acender um cigarro e foi fazendo a sua ronda sem pressa porque estava quase na hora de encerrar e ir para casa. Para sua infelicidade, não tinha muita vontade de chegar lá, não da forma que as coisas andavam.
A esposa não era a mesma pessoa com quem se casou dez anos antes, aquela que lhe jurou eterno amor, e ele não conseguia entender o motivo.
Quando se casaram, Arthur era um jovem inspetor recém-concursado, cheio de sonhos na cabeça e que se refletiam nos seus olhos. Ela era, e ainda permanecia, uma mulher bela, mas ele, agora delegado, também nada lhe devia em jovialidade e saúde, estando em perfeita forma física que cultivava com todo o esmero. O seu comportamento não mudou em relação à esposa, ela nunca se queixou da profissão de policial e tão-pouco dos horários que nem eram coisa do outro mundo. Ele não vivia na bonança, mas também não passavam privações, até porque a esposa tinha o seu próprio emprego e chegava a ganhar mais do que o marido. Tinham um filho de cinco anos e não havia qualquer motivo para que tivessem uma crise, mas o fato é que tinham e nessa manhã chegou a acontecer uma discussão meio séria.
O relógio deu o alarme de fim de expediente e Arthur pensou em três alternativas antes de ir para casa: passar na academia e treinar um pouco, ir para o estande de tiro praticar ou dar um pulo em algum bar e tomar uma cerveja para espairecer. Qualquer das três opções era-lhe relaxante, mas achou que o momento pedia uma cerveja, até porque o trânsito até à Tijuca era pesado àquela hora.
Estacionou em uma rua paralela para não se preocupar em ficar dando voltas até achar uma vaga mais próxima e foi caminhando para um bar em Copacabana, sentando-se ao ar livre. O garçom, que já o conhecia porque ele e alguns colegas costumavam ir ali, trouxe-lhe a cerveja e o delegado permaneceu quieto, fumando, bebendo e apreciando um pouco de paz. Não demorou muito e uma mão pesada apertou seu ombro, enquanto uma voz grave dizia:
– Do que adianta você ter todo esse físico atlético, lutar feito um tarado e ser um atirador de elite, se vai matar-se com câncer de tanto cigarro que fuma, Arthur?
O delegado ergueu o rosto e sorriu para o amigo e colega de profissão, apontando a cadeira ao lado e fazendo sinal para o garçom trazer mais um copo.
– Tem razão, Miguel – respondeu, dando a última baforada e apagando a guimba no cinzeiro –, tenho que tomar vergonha na cara e parar logo com isso, mas, no momento, estou com outras preocupações bem maiores.
– Ainda com os problemas matrimoniais? – perguntou Miguel, tomando um gole. – Isso é bem complicado, sei de experiência própria. No fundo, só tive paz depois que me separei.
– Não queria que as coisas chegassem a tanto, mas tô achando que vai acabar assim mesmo porque não aguento mais – disse Arthur, triste. – O que mais me preocupa e dói é pensar no Pedrinho. O meu filho não merecia isso.
– Não acha que é muito pior ele ver o desgaste e as brigas, que vão ficando cada vez piores com o tempo, meu chapa?
– Nunca fazemos isso na frente dele – disse o amigo. – Pelo menos nisso, Cíntia tem consciência.
– Mas ele não é surdo, Arthur – ripostou Miguel, sério. – Eu me lembro direitinho dos meus pais e dos quebra-paus que faziam no quarto, achando que eu não escutava. Eu tinha dez anos e morria de medo, desamparado.
– Sério?
– Supersério.
– Hoje tivemos uma briga mais forte – disse Arthur, baixando a cabeça. – Nem sei dizer o motivo exato, mas foi basicamente porque eu cansei de ser saco de pancada e acabei respondendo bem grosseiro.
Ergueu o rosto e olhou nos olhos do amigo, continuando:
– Eu não sei o que deu nela, mano. É só recriminação, cobrança, desconfia de tudo, tudo o que eu faço está errado. Sabe, não existe mais um sorriso, um carinho, nada. Sexo, então, nem lembro quando foi a última vez.
– Já tentou conversar com ela e saber o porquê disso?
– Já. – Arthur suspirou. – Já, mas ela nada disse. Desconversa direto ou me chama de paranóico.
– Não queria estar na sua pele – comentou Miguel. – Você tem uma amante?
– Pior que eu não engano ela, mas a vontade tá grande porque ninguém é de ferro. – Arthur acendeu outro cigarro e o amigo sacudiu a cabeça, sorrindo. – Cara, há dois anos nós eramos superfelizes, sempre unidos e agora isso... uma merda, tem dias que tenho vontade de atirar nela!
– Ei, espero que seja apenas semântico.
– É claro que é uma forma de falar, imagina se eu ia matar uma pessoa sem motivo.
– Nesse caso nem com motivo, ok? – pediu Miguel. – Eu não gostaria de lhe levar cigarros na prisão, sem falar que você sabe muito bem o que acontece com delegados no xadrez.
– Fica frio. – Arthur suspirou e comentou. – Sabe, eu gosto muito deste horário de verão. A gente termina o expediente e ainda é dia claro e dá pra curtir um pouco.
– Pra você – disse Miguel, rindo. – Hoje eu pego de noite, entro daqui a uma hora.
– Pensei que também estava saindo.
– Hoje não, mas a partir de amanhã eu fico no seu turno. Acho que vamos ser parceiros. – Miguel sorriu. – Bem, eu vou indo para a delegacia.
– Eu também vou... pra casa. – Arthur pediu a conta. – Esta aqui eu pago, amigo. Sabe? Será bom ter um parceiro.
– Ok. A próxima é minha.
Miguel esperou o amigo pagar a conta e ambos foram caminhando pela via.
― ☼ ―
Arthur já estava na Tijuca, andando devagar porque o trânsito ali na Conde de Bonfim também era pesado. Olhou o relógio e concluiu que ainda tinha bastante tempo, então desistiu de ligar avisando que podia atrasar-se.
Quarenta e cinco minutos depois, entrava na garagem para ver o carro da esposa torto e que dificultava a sua passagem. Mais uma vez ele perguntou-se se a mulher não fazia isso de propósito só para o incomodar, já que ela era uma exímia motorista. Suspirou e estacionou o melhor que pôde, decidido a não ter outra discussão. Abriu a porta e o filho, como de usual, aguardava na frente para se atirar ao seu colo, feliz.
Arthur abraçou o pequenino, a melhor coisa que tinha naquela casa. Pendurou a chave no porta-chaves ao lado da porta e beijou a criança.
– Então, Pedrinho, como foi a escolinha hoje?
– Legal, papai – disse ele, saltando para o chão. – Fiz um desenho para você e você tava prendendo um bandido. Você é o melhor polícia do mundo, papai.
– Obrigado pelo elogio, bebê. – Arthur ergueu o olhar e viu a esposa perto. Ela aproximou-se e deu-lhe o tradicional "beijo das aparências". O delegado disse, àspero. – Oi, Cíntia.
– Você andou bebendo, fede a álcool – respondeu ainda mais fria e seca. – É esse exemplo que deseja dar para o seu filho?
– Eu queria muito saber o que foi que lhe fiz para ser tratado desse jeito – disse Arthur, virando as costas e subindo para o quarto.
Irritado, fechou a porta, escondeu a arma para o filho não encontrar, tirou a roupa e foi para o banho. Com o jato forte do chuveiro batendo no corpo, ele foi sentindo a água quente relaxando-o um pouco. Assim que se lavou, trocou para a água fria e deixou-se ficar mais alguns segundos.
Já limpo e seco, desceu retornando para a sala. A mulher estava sentada a ver televisão e não disse nada. Ele sentou-se em uma cadeira, longe da TV, e Pedrinho veio correndo brincar com o pai. Brincaram por alguns minutos quando a voz de Cíntia se fez ouvir.
– A Jurema está doente e não veio trabalhar, então não tem jantar porque eu também não tenho saco de fazer e não sou empregada de ninguém.
Arthur respirou bem fundo por alguns segundos, até que pegou o filho ao colo e disse:
– Há muito tempo que você não faz nada; mas, se eu estivesse de plantão, mataria nosso filho de fome? – olhou para a criança e continuou. – Vamos fazer um jantar gostoso, Pedrinho?
– Vamos, papai – gritou o pequeno. – Eu vou ajudar você, posso?
– Claro que pode, meu amor.
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