A DAMA DE VERMELHO
Original de Marcos Tand
Raul e Lídia eram um casal comum. Após cinco anos de namoro e dois de noivado, resolveram que casar seria uma ótima ideia. Por conta de uma proposta de trabalho tentadora, Raul mudou-se de Imperatriz do Maranhão para a capital paulista. Ele era arquiteto e não podia perder essa chance de ascensão profissional. Logo que estabeleceu-se na cidade, Lídia o acompanhou com uma ótima notícia. Ela estava grávida. Librianos, optaram por não saber o sexo do bebê, assim teriam a liberdade de escolher o nome com calma. A desculpa perfeita para não ter que decidir sob pressão.
Logo eles precisaram de um "novo palácio", mais espaçoso e confortável para o futuro príncipe ou princesa que viria. O edifício Heverlom, era tudo que eles almejavam. Apartamentos sofisticados a preço de banana, vizinhança calma e discreta. Lídia queria provar que podia cuidar de si mesma e do bebê de forma independente. Raul concordou e, próximo ao dia do parto, ele tiraria um mês inteiro de folga para exercitar sua paternidade. Ambos não queriam contato direto com suas respectivas famílias, uma vez que elas não simpatizavam entre si. O apartamento de número 26 no décimo sexto andar era o último sobrando. Contrato assinado.
O bebê nasceu de sete meses e teve que ficar na incubadora apenas por precaução, pois surpreendentemente não era tão frágil quanto outros nascidos na mesma circunstância. Foram três meses de internação até o médico dar alta. O quartinho todo decorado de verde claro combinava os olhos que ele herdara do pai. A licença-paternidade de Raul foi o período mais satisfatório de sua vida. O bebê foi como um presente da esposa por ele ter segurado a barra quando ela teve depressão severa. Cuidar do bebê foi terapêutico.
Durante esse tempo, ficaram amigos da vizinha simpática do outro apartamento número 25. "Salete M", como era conhecida, uma atriz no ostracismo que agora vivia da aposentadoria do marido militar morto. Foi dela a ideia de batizar a criança de Guilherme, em homenagem a "Del Toro", cineasta que Lídia gostava.
O tempo passou rápido. O desenvolvimento de Guilherme era notavelmente mais rápido se comparado ao de outras crianças da mesma idade. Aos sete meses, ele começara a engatinhar decorando o apartamento com seu sorriso sapeca. Mas suas peripécias já não eram o suficiente para alegrar os dias nublados de Lídia. Com o marido novamente no trabalho, ela abdicou de seu cargo na empresa de marketing para viver integralmente como mãe e dona de casa, só não imaginava que seria tão difícil largar seus hábitos workaholic. Quando precisava de um tempo para respirar longe da inquietude do bebê, o entregava aos cuidados de Salete M por algumas horinhas. Era um trato entre elas. Raul obviamente não sabia. Salete M adorava, pois sempre quis ser mãe e nunca conseguiu por conta de uma endometriose não tratada corretamente a tempo.
O apartamento parecia sufocante, apesar de seus muitos metros quadrados. Lídia sabia que sua depressão tinha voltado. Pensou que Guilherme era sua tábua de salvação e deixou de lado os remédios. Salete M sempre trazia alguma receita milagrosa que nunca ajudava de fato. Lídia se sentia pior. Em uma manhã, a vizinha lhe contou sobre a lenda da mulher de vermelho que aparecia cantando nas sacadas.
— Talvez fosse bom ela aparecer. Não sei quando foi o último show que assisti! — Lídia sorriu ironicamente.
— Não brinca com essas coisas! Credo! Vamos à missa juntas. Acho que com a cabeça ruim, é melhor se agarrar na fé.
— Vou me agarrar é no psiquiatra! A senhora pode mesmo ficar com o Guilherme hoje?
— É claro que posso, ele é um amor. Não me dá trabalho.
— Raul não pode sonhar com isso! Coruja do jeito que é, capaz de levar o filho para o trabalho!
— Você contou para ele sobre esse seu problema?
— Dessa vez não. Meu marido é um santo e já tem causas urgentes demais para resolver. Se não fosse ele, eu nem estaria aqui. Tô indo lá no doutor. Cuida do meu filho e diz pra cantora de vermelho dar uma canja na minha varanda. Eu vou adorar!
Lídia se despediu do filho com um beijinho na testa e saiu pela porta. Entrando no elevador, ouviu aquela música ambiente e foi tomada por uma leve claustrofobia. Tentou ignorar contemplando os botões dos andares por onde o elevador descia. Chegando no sétimo andar, a geringonça de metal travou, as luzes piscaram e os esforços de Lídia para lembrar de alguma reza que aprendera na infância foram em vão. Ela apertou o botão do interfone e não obteve resposta. Foi então que a porta do elevador se abriu revelando um cenário absurdo. O sétimo andar estava tomado de hera venenosa e raízes grotescas nas paredes. Em meio a uma atmosfera cinza e cheia de neblina, crianças gritavam correndo, fugindo de alguma coisa. De repente, o frio invadiu a espinha de Lídia e o medo de estar enlouquecendo a fez estapear o próprio rosto. Do nada, a porta do elevador fechou e do sétimo andar, ele despencou para o térreo violentamente. Ela segurou-se nas barras de ferro laterais com toda força que podia e deixou escapar um grito de socorro. Ao aterrisar, o elevador abriu normalmente e a música ambiente ainda tocava. Um vizinho simpático entrou e a cumprimentou:
— Bom dia, vizinha. Desce?
— Sim — respondeu Lídia secamente aproveitando para sair dali, decidida a ir à garagem pela escada. Entrou no carro e teve frustradas as suas esperanças de que dirigir fosse lhe ajudar a espairecer. Lídia foi à clínica e seu psiquiatra lhe receitou além do habitual, um antipsicótico. "Devo ter alucinado, já aconteceu outras vezes", ela dizia a si mesma para reconfortar-se. Saber que os medicamentos estavam na bolsa, já deixavam seu coração quentinho.
No meio da manhã, Lídia voltava para casa e à medida que se aproximava do prédio, suas angústias voltavam ao rememorar a alucinação do sétimo andar. Adentrou o imponente Heverlom e estacionou o carro na vaga. Decidiu que passaria algum tempo evitando os elevadores, caso estivesse sozinha. Então, subiu as escadas rumo ao décimo sexto andar. Próximo ao sétimo andar, apressou o passo e pegou firme na bolsa grande, como uma beata que segura um crucifixo em busca de salvação. Chegou em casa ofegante atestando seu completo sedentarismo. Na mesinha da antessala, havia um bilhetinho de Salete M: "Fomos para a minha casa".
Lídia então deixou sua bolsa na mesinha e se dirigiu ao apartamento da única vizinha do andar. Aproximando-se, ouviu uma música. Bateu na porta e girou a maçaneta. A senhora se divertia rodopiando com Guilherme sorridente em seus braços. Era o modão "A Dama de Vermelho".
— É festa mesmo? Por isso que esse menino gosta tanto da senhora! — Lídia disse rindo.
— Oh, meu bem, desculpa. Mas eu fiquei lembrando de você lidando tão ceticamente com a lenda da mulher de vermelho. Aí resolvi descontrair também com essa música — justificou a senhora abaixando o volume do som.
— Tá certo, Salete. Se a gente for ligar para tudo que essa gente inventa, nem dorme. A vida é muito curta para tanta preocupação à toa. Vem cá, mas e esse frio? Toda vez que eu venho aqui é essa geleira!
— Querida, não sei quantas vezes o pessoal da manutenção veio averiguar. Eles dizem que é algo na estrutura do prédio mesmo e da posição do apartamento. O sol não bate aqui. Já até me acostumei.
— Que bom então, porque eu já teria uns dez aquecedores pela casa toda! Vamos, meu amor.
Lídia pegou Guilherme no colo e agradeceu Salete mais uma vez pela ajuda. Voltou para seu apartamento número 26 e levou o bebê para a cozinha em sua cadeirinha. Guilherme gostava de observar a mãe preparar o almoço; ela tinha deixado tudo pré-cozido e a tarefa ficava ainda mais fácil com a ajuda de uma playlist francesa inspiradora. A voz de Carla Bruni em "Quelqu'un M'a Dit" evocava memórias de quando Raul a cortejava às escondidas.
A gerente de marketing digital adorava cozinhar, mas não fazia isso com prazer há algum tempo. As obrigações de dona de casa e mãe lhe fizeram entrar no piloto automático. Mas agora, apesar das recentes disfunções da depressão que voltara sem se anunciar, ela estava munida de remédios e alguma coragem; coisa que não tinha na ocasião passada. De repente, a voz doce e os acordes delicados, cederam lugar abruptamente ao timbre pesado de Maysa interpretando a "Ne me quitte pas".
— Gui! Poxa, filho, não...essa é muito triste, meu amor.
Guilherme havia tocado a tela do celular sem querer e mudado de canção. No mesmo instante, Raul fez-se anunciar a presença batendo palmas.
— Cadê a família maranhense mais bonita de São Paulo?
— Tecnicamente seu filho é paulista, né?
— Mas o sangue é Imperatrizense! — Raul pegou o filho e o ergueu orgulhoso. Guilherme deu uma gargalhada gostosa.
— E a alma é antiga pelo visto. Acredita que eu estava ouvindo minhas músicas francesas e do nada ele mexe no celular e me bota Maysa?
— Então ele tem bom gosto igual a mamãe que me escolheu para casar.
— Convencido. Você está tão alegrinho. Aconteceu alguma coisa?
— Nada. Só vendi um projeto legal hoje, então tirei a tarde de folga para ficar com vocês dois, "mes amours" — ele disse fazendo biquinho.
— Parabéns! Então para comemorar, temos um almoço caprichado com aquele refogado de legumes no molho shoyu!
A família almoçou feliz. Lídia não mencionou sobre a depressão ter voltado, pois não queria preocupar o marido. Inventaria alguma desculpa para quando os medicamentos reduzissem sua libido e ela não pudesse fazer as honras do leito; ou fingiria orgasmos, afinal, qual mulher nunca o fez? O importante era restabelecer seu equilíbrio mental sem que Raul percebesse.
Depois do almoço, Lídia deu de mamar a Guilherme e Raul o embalou para dormir no berço que ficava no quarto do casal. Depois do filho adormecer, ela cedeu aos galanteios de Raul. Então eles se amaram fazendo o mínimo de barulho, para não acordarem sua cria. Fizeram amor intensamente e entre carícias adormeceram.
**********
Lídia não conseguia se mexer. Tentava, mas seu corpo não obedecia, como se estivesse presa em uma armadura de chumbo grosso. A boca selada não era capaz de emitir qualquer som. Os olhos não abriam, mas ela enxergava tudo. Ainda era o quarto de casal que ela dividia com seu marido e o bercinho do filho. Mas agora tudo estava gélido e cinza. Lotado de ervas daninhas, neblina e raízes espessas no assoalho de madeira e nas paredes. Raul dormia como pedra e roncava alto. Repentinamente, um vulto vermelho passou volitando da porta para o lado esquerdo do quarto, enquanto cantarolava "Ne me quitte pas".
Lídia sentiu a angústia tomar conta da sua carne. Viu uma silhueta feminina embalar Guilherme nos braços pálidos. Ela estava ficando louca? Nem mesmo o dedo mindinho movia-se. Estava impotente diante daquela aflição. Com o rosto molhado de lágrimas, Lídia viu a mulher, ainda com o bebê nos braços, abrir a grande janela de vidro do quarto e a brisa entrar no cômodo esvoaçando seu vestido rubro. Ainda murmurando a canção francesa, a mulher abraçou o pequeno Guilherme e se atirou pela janela.
Minutos depois, o momento de tortura foi interrompido pelo som do interfone. E com um berro gutural, Lídia se libertou do apavorante cenário que a paralisava. Ela correu até o berço e constatou que o filho não estava lá. Raul acordou assustado. Ao ver a histeria da esposa, seu primeiro impulso também foi averiguar o berço e notar a ausência do bebê. O interfone tocou novamente e ele correu para atender. Lídia teve medo de encarar a grande janela de vidro que estava aberta e quando ouviu o desespero de Raul, teve a certeza de que nada daquilo foi um pesadelo.
O restante daquele dia e dos subsequentes foram dedicados ao luto em sua acepção mais dolorosa, aos inúmeros depoimentos à polícia, aos sentimentos de revolta, medo e pensamentos inquietantes. Como Guilherme caiu do berço e não chorou? Ou não o ouviram chorar? Como a janela se abriu? Quem era a tal mulher de vermelho que, segundo Lídia, entrou na casa e jogou-se pela janela com o bebê nos braços? Nada fazia sentido e a polícia parecia desinteressar-se pelo caso "sem solução".
Três meses depois, com a ajuda de Salete M, Raul e Lídia foram se restabelecendo como podiam. Apesar da visita de amigos e familiares, Salete foi quem segurou as pontas.. Ela os tinha como filhos. Há muito tempo não cuidava de alguém, já que vivia sempre sozinha como moradora única do 16º andar. Ela auxiliou no velório, sepultamento e missa de 7º dia. Fazia de tudo por Raul e Lídia. Agora ele também começara a tomar remédios para dormir e ela pôde compartilhar sobre o retorno de sua depressão. A vida jamais seria a mesma. Não se culpavam, não se acusavam; apenas tentavam juntos curar essa ferida que nunca cicatrizaria.
O escritório de Raul segurou seu cargo pelos três meses necessários. Agora que ele voltara a trabalhar, Lídia também precisava de um novo estímulo para viver, então entrou em um novo negócio de marketing digital. Em um dia normal, sozinha em casa, Lídia sentiu-se observada e um frio inexplicável percorreu sua espinha e o ambiente ao redor. Num piscar de olhos, seu apartamento estava novamente imerso naquele cenário grotesco de outrora, mas, apesar da paralisia corporal, ela estava acordada e dessa vez não sentiu medo.
— Quem está aí? — indagou ela encarando aquela visão de outro mundo.
— Eu não vim machucá-la. Vim confortá-la — respondeu uma voz doce e triste.
Um riso infantil se fez ouvir. Era Guilherme nos braços pálidos do mesmo vulto feminino que o levara embora na fatídica tarde de meses atrás. Lídia começou a chorar, pois não conseguia se mover contemplando o filho de relance quando a mulher de vermelho volitava a sua frente.
— Seu filho está comigo. Quer tê-lo de volta?
— SIM! É claro que sim! — respondeu gritando — POR FAVOR! É a única coisa que eu quero! Devolve meu Guilherme!
— Faça como eu disser e você o terá novamente são e salvo.
—Eu faço o que quiser!
Lídia ouviu a proposta daquele ser e, ao sair do transe, decidiu obedecer. Tão logo Raul chegou do trabalho, lá pelas seis da tarde, ela preparou o jantar. Em 6 goles cheios de vontade, ele secou o copo de suco e foi amolecendo, até que adormeceu sob a mesa da cozinha. Foi drogado pela esposa, que encheu o suco de "sossega leão". Lídia pôs um travesseiro confortável na cabeça de Raul e foi para o quarto. Arrumou-se toda de preto, exceto pelo lenço de cetim vermelho no pescoço. Saiu do apartamento cuidadosamente e desceu as escadas rumo à garagem. Entrou no carro, respirou fundo e saiu do edifício Heverlom cantando pneu.
Dirigiu pelas ruas de São Paulo à noite e perto da Praça da Sé, finalmente avistou o que tanto procurava: uma menina bonitinha e maltrapilha, cabelos claros, um tanto magricela. Aparentava ter uns cinco anos e estava sozinha, deitada em papelões, longe de outros moradores de rua.
— Oi, meu amor. O que você faz aí sozinha? Cadê sua mamãe? — ela saindo do carro e indo em direção à garotinha.
— Não sei, tia. Eu me perdi da minha mãe. Ela saiu com um homem mau e me deixou aqui. Disse que voltava logo e até agora nada...
— Ôh, meu amor, é perigoso ficar aí sozinha, sabia? Você está com fome?
— Sim, tia. A senhora tem dinheiro aí pra me dar?
— Eu tenho sim. Olha o meu carro que chique. Está vendo? Eu tenho muito dinheiro, meu bem. Você gostaria de passear comigo? Posso te levar pra comer um super lanche, aí depois trago você de volta para sua mãe. Topa?
— Eu vou adorar, tia. Mas, a senhora me traz de volta mesmo?
— É claro, princesa. A tia promete!
— Nossa tia, a senhora é tão bonita. Parece até aquela dona que eu vi na televisão do bar.
— Obrigada, fofurinha. Você que é uma gracinha, um doce de menina.
Lídia conversou brevemente com a menina e se apresentou como Beatriz. A criança se chamava Letícia. Lídia comprou um lanche bem gostoso e farto para a garota e dirigiu bastante. Dentro do carro, enquanto a garotinha comia, ela só pensava em ter o filho de volta. Chegando a um local totalmente deserto, Lídia tira do pescoço o lenço vermelho de cetim.
— Vai ficar lindo em você. Toma, é presente!
— Nossa, tia, que lindo! É meu mesmo? Obrigada, titia Beatriz, você é linda!
— Deixa a tia colocar em você.
Lídia observou a pele delicada da garotinha e a enfeitou o pescoço com o lenço como se fosse uma das bonecas de sua infância.
— Desculpa, meu amor.
Letícia debateu-se no banco do carro sufocando com o esforço das mão de Lídia, que apertava o lenço contra a sua jugular infantil. Assim, Letícia pareceu simplesmente adormecer para sempre e a contragosto, como uma criança que queria ficar acordada, pois ainda tinha a vida inteira para brincar.
Lídia chorou compulsivamente, mas breve. Saiu do carro, abriu a porta do carona e tendo o corpo da garotinha nos braços, olhou para os lados e atestou o local desértico. Aquele ponto da cidade era claramente uma zona de desova. Então, ela adentrou um pouco o mato à beira da estrada, e deitou o corpo no chão. Correu de volta para o carro, pegou no banco traseiro uma lata de querosene e um litro de álcool. Correu novamente até onde deixou o corpo da menina, despejou os líquidos inflamáveis sobre a vida que ceifara e com uma frieza forçada, acendeu um isqueiro e ateou fogo. Foi uma queima rápida.
Lídia sentiu bastante. Ela entrou no carro e dirigiu feito louca para chegar mais rápido em casa. Subiu as escadas do Edifício Heverlom correndo. Ainda evitava o elevador; não podia correr o risco de perder tempo ficando presa novamente no sétimo andar. Conforme subia os degraus, um frio absurdo crescia ao redor.
Abrindo a porta do 16° andar, assustou-se ao ver tudo gélido e pantanoso, muito mais do que anteriormente. A porta de seu apartamento estava aberta, então ela correu do hall até sua cozinha. Raul permanecia desacordado. Lídia checou seu pulso. Ele respirava. Foi aí que ela ouviu barulho de crianças correndo. O som não vinha de sua casa. Aguçando a audição, ela retornou ao hall dos apartamentos e a porta de número 25 estava entreaberta. Lídia entrou vagarosamente notando que o ambiente também estava "infectado" por aquele cenário aterrorizante. Não era alucinação, ela tinha certeza. Estava suficientemente lúcida.
O apartamento parecia ainda maior do que já era. Crianças passaram correndo da cozinha para o corredor assustando Lídia. Em um insight, ela agarrou no braço de um garotinho aparentando ter uns 10 anos e o indagou:
— Não tenha medo. Só quero saber de uma coisa; que lugar é esse?
—A moça tá perdida?
— Sim.
— Então a senhora tá no lugar certo. Aqui é Setealém.
— O quê? Como assim?
— Aí vem ela, eu preciso ir!
O garotinho desvencilhou-se de Lídia, deixando-a ainda mais confusa. De repente, o rádio tocou o sertanejo "A Dama de Vermelho" e eis que surge o vulto feminino com seu vestido carmim esvoaçante. Agora nitidamente via-se o rosto daquela mulher pálida e de feições familiares, trazendo Guilherme nos braços. Era Salete M aparentando uns trinta anos mais jovem.
— Você? Não pode ser. Mas...como?
— Lídia, fraca e previsível.
— Era você o tempo todo! Velha desgraçada!
— Velha, eu? As aparências enganam, não é mesmo?
— Eu fiz o que você pediu. Agora devolve meu filho!
— Não é assim que funciona. Obrigada pelo sacrifício, eu já recebi — ela disse apontando para Letícia temerosa escondida atrás do sofá — mais uma filha para minha coleção.
— O trato era uma vida pelo Guilherme de volta! Eu quero meu filho agora!
— E você o terá. Mas aqui é Setealém e você agora é uma alma perdida. Tudo que se perde vem para cá. A solução para ficar com seu filho aqui para sempre...você já deve saber qual é.
— Você não quer dizer...
Com ódio, Lídia tentou agredir Salete M, mas foi impedida: "Você não tem poder aqui".
Então, aos prantos, ela retornou ao seu apartamento e se despediu de Raul, ainda dopado, com um beijo de amor e pesar por deixá-lo. Não se sentia digna do marido e nem da vida, mas precisava ter o filho de volta, o troféu que validara sua existência, seu casamento. Foi ao quarto, abriu a janela de vidro e, atirando-se na própria loucura, rendeu-se ao abismo de sua perdição.
Raul foi acordado por policiais e entrou em estado de choque ao saber sobre Lídia. Ele nunca mais foi o mesmo.
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