Carta da Dama

Esse meu relato começaria descrevendo uma cena que só depois eu acabaria sabendo, mesmo relutante, eu vou descrever o que entendi do ponto de vista de quem me contou. 

Uma criança diferente de muitos, ou de todos daquela vila, estava sendo pressionada contra a parede por mais algumas outras criaturinhas de mesma idade. Deviam ser quatro jovens. Eles jogavam terra sobre o vestido da garota, realmente não gostavam dela, mesmo a menina não sabendo o motivo que dava desgosto, eu sei. Mas, para não ferir a narrativa desse meu relato, continuo aqui sem revelar. 

Enfim, a garota decidiu fugir para um canto sem essas crianças malvadas. Até que ela desceu o planalto e entrou em um buraco com uma abertura horizontal que só se deitando dava para passar. 

Quando pensava que estava em um lugar seguro, veio uma das crianças, elas não a deixaram fugir, e puxou os cabelos alvos da pequena, deixando-a pendurada entre o estreito teto e uma queda miserável. Então, começou uma disputa de força contra a gravidade. Elas perderam a força e ela caiu. 

Então, ela rolou e rolou, abrindo mais algumas feridas pelo seu corpo, manchando o vestido amarelo. Lá era úmido, frio e solitário, com exceção dos insetos e roedores que residiam lá. Nesse ambiente que começou sua choradeira. Não entendia o motivo daquilo, por que começaram a perseguir logo naquele dia? Ela já estava por lá há tempos. Será que já tinham descoberto sobre o que era ela? 

Mas, por que reagir dessa forma? A diferença dava munição para sua punição. Então, se eles eram diferentes dela, ela também tinha direito de ferir eles.  

Por isso, ela desejava vingança, então seu entregador chega, oferecendo um prato cheio desse veneno que fazia ela babar de vontade. 

• • •

Me desculpem, conselho, mas eu precisava descrever essa cena. Eu tinha que justificar as tomadas de decisões e os seguintes acontecimentos. Sei que deveria ser menos prolixa, mas eu tinha o dever de dar destaque aos sentimentos, o que falta em minha face não poderia faltar tanto em minha escrita. 

Sim, essa foi minha moeda de troca, mas isso não é uma reclamação. Eu nunca reclamaria dessa dádiva que é estar na Ordem. 

E é por ter entrado na ordem que eu fui designada para atender pedidos de intervenção solicitados em alguns lugares. Dessa vez, foi o prefeito da província Custosa.  

Minha viagem foi com nossos cocheiros de sempre, com aqueles cavalos magros, o silêncio ensurdecedor e a carruagem de preto. Digo isso para não deixar lacunas no julgamento desse caso. Demorou um dia para eu chegar à Vila Turquesa, tive que controlar os cavalos no final da viagem, pois o cocheiro não estava se sentindo bem. Suspeitei que ele já estava sendo afetado pelo que eu iria encarar lá na frente. 

Fui deixada na frente da delegacia e já recebi os olhares de sempre. De primeira, aqueles surpresos e depois medo e desprezo. E quando o delegado me recebeu, ele teve o mesmo processo ao olhar minha não-cara, a máscara nossa e o manto branco cobrindo todo meu ser. Só nessas características dá para identificar a gente. 

Na verdade, ele logo ficou irritado, pois: 

“Dama, na carta a gente especificou bem como você devia ter chegado, eles não podem saber que vocês estão envolvidos nisso.” 

“Independentemente da reação do seu povo, eu não pude deixar de notar a falta de informações sobre o lugar de encontro. Então, fui para o único lugar que eu pude identificar.” 

O homem suspirou, impaciente, já estava estressado com alguma coisa antes da minha chegada. 

“O prefeito vai te encontrar na sala de reuniões atrás da prefeitura, não deixa ninguém seguir a senhorita.” 

“Vou tentar.” 

Ele me instruiu como eu deveria chegar na tal sala. Eu imaginei que me mandaria por um caminho somente afastado dos cidadãos, mas parecia que eu estava passando por uma parte inóspita da vila.

A Vila Turquesa é tão pequena que mal foi lembrada nos registros das áreas de atuação da Ordem. Se teve alguma sede ou representante por aqui, nunca tivemos registros, ou simplesmente desapareceu. 

Provavelmente, devia ter algo abaixo desse deserto de pedras que cercavam a vila, um semicírculo dominava o lugar, e logo depois vinham as ondas do mar batendo nas pedras. 

Enfim, descrevi uma volta na vila e adentrei um corredor estreito entre casas e fiquei a 70 metros de distância para a prefeitura. Naquele momento, não entendi o porquê de eu ter feito aquele caminho secreto, de qualquer maneira eu iria ser vista entrando na prefeitura. Tinha pessoas passando por ali. Naquele momento, suspirei decepcionada, mas na verdade eu queria proferir maldições para aquele maldito delegado. 

Fui caminhando reto até lá, sem desviar o olhar. O que eu conseguia ver eram pessoas montando casas para mais gente, não acho que ia caber mais gente ali, mas isso não era meu problema. E vi ali várias famílias passeando. 

Sei a opinião do conselho sobre nós, Damas, termos conexões sanguíneas, e fiz o que fiz por causa disso, esse é um dos requisitos para o ingresso. Mas, senti que gostaria de compartilhar essa vida mascarada com alguém, intimamente. 

Adentrei pela porta da frente mesmo, e a atendente não demorou para saber o que eu era e me levou até uma grande sala no segundo andar. Era uma moça bonita, olhos verdes, nariz pequeno e olhos grandes, com um vestido mais bem tratado do que o dos outros que vi na porta da prefeitura. 

“O Prefeito chegará em poucos minutos, a Senhorita Dama vai ter que esperar um pouco. Deseja alguma comida, alguma bebida?” Eu pedi uma água. 

Ela me deixou sozinha na sala por um tempo, mas depois voltou com um copo de vidro cilindrar cheio de água, quase transbordando. Notei uma respiração mais ofegante vindo dela, talvez o filtro de água fosse mais longe do que eu pensava. 

A menina estava ao meu lado despretensiosamente, de primeira achei que queria ver como bebo com uma máscara. Depois descobri que era isso mesmo. Só de ver o olhar curioso, ela exteriorizava essa vontade.  

Claramente, pedi para ela sair da sala e ela aceitou com um ar de decepção. Essas nossas máscaras os deixam assim mesmo?  

Enfim. Antes de beber, tirei a máscara de metal e cheirei para identificar outra substância, só se destacou a sujeira característica da água que todos bebem. Mas podia ainda ser um veneno sem odor, então coloquei uma gota na ponta da língua e levei para o céu da boca, deixando as glândulas modificadas detectarem alguma substância anormal. Porém, nada. 

Assim, dei um gole, depois mais outro e mais outro. E coloquei o Rosto de volta. E esperei pelo prefeito. 

Os sons lá fora e a janela eram as poucas coisas que me mantinha entretida. A janela pegava o fundo da prefeitura, que dava para uma ladeira, e depois uma queda que eu não sabia a altura até o momento. Mas o barulho na frente da prefeitura chegava a mim, tinha gente vendendo, reclamando que o filho estava se sujando de terra e até tinha alguém cantando. 

Porém, sua cantoria foi logo cortada pelos outros habitantes que não estavam gostando tanto da sua música. Era bem ruim mesmo, estava mais agradável ouvir as crianças rindo da humilhação pública que o suposto cantor estava sofrendo. 

Demorou quase vinte minutos para que eu ouvisse uma movimentação lá na frente, e depois vários passos que iam se diluindo até a porta da sala em que eu estava, então entraram o Delegado e o tal Prefeito. 

O prefeito era feio, velho, branco e de roupas mais brancas ainda. Ele tentava passar um ar de cordialidade até mesmo na forma como me recebeu. 

“Desculpa a demora, Dama”, eu via na face dele que ele nem queria que eu estivesse ali. 

A gente se cumprimentou e o Delegado sentou em uma das cadeiras que estava disposta na mesa. Já o Delegado nem era tão novo, nem tão velho, mas tinha as mesmas características que o Prefeito. Suspeitei que eram familiares, mas não consegui chegar a nenhuma conclusão no final. 

Depois fomos sentar cada um em uma cadeira, com o prefeito no meio, eu e o Delegado de frente para o outro. 

“Dama, nós solicitamos a sua ordem e você sabe que não é um problema simples quando chamamos vocês, não é?” Falou o prefeito. 

Assenti. 

“Ou seja, é um problema de bruxaria.” disse o Delegado amargurado. 

“Tenho certeza de que o senhor sabe que não é o termo correto.” respondi. 

“Não sabia. Mil perdões.” Sonso.  

“Quando chegou aqui, Dama, conseguiu detectar algo?”  

“Acho que só olhando para a vila já dá para perceber um ar sujo” 

“Está dizendo que não cuidamos do nosso lar?” Perguntou novamente o delegado irritante. 

“Chega, delegado!” Exclamou o outro. “Maldição! Não consegue solucionar o crime, e quando tem a chance começa a dar esses chiliques.” 

“Eu só não resolvi porque o senhor aderiu a esses regulamentos ridículos de certas pessoas.” Ele falou olhando para o Rosto. 

O prefeito desiste e se volta a mim. 

“Senhorita Dama, a situação é que ocorreram duas coisas estranhas ultimamente. Um dos nossos fazendeiros reportou que suas vacas de um dia para o outro estavam com um rombo, algo abocanhou, nós achamos. E a segunda coisa foi um assassinato, aqui em Turquesa os índices de assassinatos são, sem esbanjar minha ótima administração, nulos.” 

Ele me olhava, parecendo que eu já teria uma resposta na ponta da língua. Mas ele se desmanchou logo quando eu falei que o Modus Operandi estava sem distinção.  

A construção no imaginário que eles têm sobre nós é muito destoante do que a gente realmente faz e como faz. Isso, na verdade, é nossa maior arma, não é? 

O prefeito fala que era para me levarem até a casa do açougueiro, mas pedi para me levarem até as vacas, pois senti que, por ser um caso mais anormal, poderia tirar de questão minha participação dessa situação o mais rápido possível. Então, supreendentemente, o Delegado se prontificou a me guiar e não me deixei levar pelo que sentia pela sua pessoa desagradável. 

Pegamos um cavalo cada e fomos para fora do que era a vila em si, mas ainda estávamos dentro dos limites geográficos. O sol escaldante, junto com as minhas roupas, estava prejudicando a viagem. Por sorte chegamos antes que eu perdesse meu sentido de direção. 

Fomos avistados por uma mulher forte e um homem magrelo. A primeira parecia uma fazendeira típica, tinha músculos definidos, roupas sujas e um cabelo de fogo. Já o outro tinha um cabelo preto curto, bigode e cavanhaque definidos, diferente do corpo magro escondido debaixo de roupas muito bem cuidadas. 

Saudaram o Delegado, mas quando me perceberam, eles se ajoelharam e pediram benção para afastar as maldições que assombravam a fazenda deles. A família Carmalho chegou recentemente, menos de vinte anos, mas nunca tinha sofrido algo como aquilo. A forma de subsistência deles acabou, e eles estavam desesperados. 

“Deixe-me ver”, falei depois da explicação dada por eles. 

Enquanto isso, o Delegado contorcia seu rosto de tanta raiva e desprezo que sentia enquanto via tanta bajulação. 

Eles foram detalhando a história de como encontraram os pobres animais naquela situação. Mas toda aquela falação não deixou nada claro, e logo pedi para irmos até uma das vacas. 

Eles me levaram até o celeiro, que fedia de longe. Um fedor pior que carniça. E quando o delegado deu de cara com o amontoado de corpos dos bovinos, ele não suportou e vomitou. Por causa do meu preparo físico, aquele cheiro não me afetou em nada. Assim, fui para mais perto das vacas enquanto os outros três se afastavam. 

Os olhos mortos de uma das vacas me fitavam e refletiam meu manto branco enquanto analisava o rasgo que ia do seu latíssimo dorsal até o glúteo médio. A ferida tinha muito comprimento e largura, mas sem tanta profundidade. Meti meus dedos para ver até onde ia, e vi minha mão desaparecendo por completa no fosso de carne. 

Tirei minha mão toda ensanguentada, mas com uma cor não só rubra, mas com uma tonalidade preta estranha que parecia outra coisa, não orgânica. 

Joguei no chão a sujeira da minha mão direita e vi que a composição era mais gelatinosa do que aquosa. Então, peguei dessas vacas e dos outros bovinos aquela coisa desconhecida e deixei em um monte. Esperei uma reação, mas nada.  

A visão é uma das poucas coisas em meu corpo que não consegui aprimorar, na verdade, duvido que alguém tenha aprimorado mais que eu. Então, decidi colocar na boca aquilo, com as glândulas modificadas eu saberia do que aquilo era feito. Eu precisaria só de um punhado. Mas quando eu percebi, já tinha colocado aquele monte todo em minha boca. E engoli. 

A textura era realmente gelatinosa, mas quando digeri senti que estava se solidificando ainda na minha garganta. E isso me fez querer tirar aquilo da minha traqueia. Tanto porque eu engoli sem intenção e por causa dessa mudança de textura. Mas, antes que eu vomitasse, a coisa saiu por conta própria. 

As patas dela saíram, oito patas de graveto saiam da minha boca e agarraram os meus lábios, tentando abrir mais a mandíbula. E, só assim, eu gritei. 

Nosso treinamento não envolve somente o físico, mas a mente. Afinal, são duas dimensões que dependem uma da outra.  Mas não consegui suportar mesmo com tantos anos, acho que ninguém no nível do conselho suportaria. A máscara estava tapando somente metade da minha cara, com minha visão tapada e não vendo nada na minha frente, só as pontas das patas pretas. 

Logo ouvi a porta se arrastando e passos, era o delegado. Não sei se foi algum instinto de homem da lei, mas ele veio me ajudar. Tentou entender o que acontecia enquanto não gorfava junto comigo. Ele via não só as patas, mas agora via a bocarra da aranha preta. Ela salta de mim e vai até o homem, que é pego. Isso eu só ouvi. 

Quando arrastei para baixo o Rosto, a aranha tinha 15 centímetros de altura e um palmo de largura. Eu vou adiantar o que só percebi depois da situação: ela aumentava mais e mais, ela sugava o material que estava acumulado no monte de vacas. Só que ela estava em um tamanho anormal para a aranha que tentava mimetizar. 

O delegado tira a aranha de cima, ela logo se recupera e até tenta se esconder. Mas fui rápida e chutei-a contra a parede. Vi que não surtiu muito efeito, então sabia que seria mais trabalhoso para uma Dama como eu. Por não ser focada no arcano, eu me sinto limitada em situações em que preciso dele. 

Já o Delegado, não sabendo o que estava na sua frente, não pensou duas vezes em tirar do coldre embaixo de seu ombro um revólver e atirar contra a aranha. Obviamente, aquilo me deu tempo para preparar a Expurgação. 

Tirei de dentro do manto o penduricalho de nós, das Damas, a cruz santificada com os dois triângulos equiláteros com suas pontas centrais se encontrando na cruz e três esferas orbitando acima. E supliquei para a expurgação de tudo de ruim naquele celeiro. A aranha, mesmo sendo baleada, já estava com o dobro do tamanho original, mas não valeu de nada ao se encontrar com Nossa Luz.  

Quando vi ela se derreter, borbulhando na parede, senti o rebote bater. Meu contrato arcano, para contexto de algumas pessoas do Conselho, é parte de minha carne, do meu íntimo ser levada. Obviamente, usei durante o treinamento já para adiantar um dos processos que eu teria que encarar. Mas não posso esconder minha dor. 

E não escondi quando senti minha barriga e virilha queimarem, logo fui ao chão ainda com o penduricalho na mão direita. O chão ficou mais próximo da minha face enquanto sentia a dor lasciva.  

E, provavelmente por causa do instinto de agente da lei agindo novamente, ele se aproximou e perguntou: 

“Dama? A senhorita foi atingida por aquela aranha?" 

Tentei responder com o esforço que me restava, mas acho que ele não me entendeu além de uns grunhidos. Porém, logo voltaram o casal e os três me levaram para a casa, a mulher me levava pelos braços musculosos e com mãos grossas.  

“Meu marido é médico, ele vai te ajudar, Dama!” Ela me falava.  

Quando entraram comigo, eu percebi outra presença ali, uma loira com um corpo muito chamativo. A roupa dela era sim mais do que chamativa, ainda mais abaixo do seu pescoço e deixando a pele dos seus... Desculpe Conselho, sei a repudia sobre mulheres desse tipo. E odeiam mais ainda se uma de nós percebe ativamente essas promiscuidades. 

Quando ela me viu naquela situação, ajudou a livrar o espaço na frente da fazendeira. E seguiu. 

Enfim, fui colocada na cama do segundo andar e fui logo perguntada pelo tal doutor sobre a minha dor e onde doía. Sim, não falei onde doía para ele, mas minha dor espetava de dentro para fora e coloquei as mãos lá para tentar estancar algo não estancável. O Doutor Carlos logo entendeu, por ser devoto e conhecedor de nós, e olhou para sua mulher. 

“Amor, você vai ter que ajudar ela, certo?” A mulher sabia o que era, mas teve sua cara avermelhada de vergonha mesmo assim. 

“Eu ajudo também”, a outra falou. 

Quando a mulher falou, o médico respondeu com uma cara feia, não gostou da ideia, na verdade parecia não gostar da presença da loira naquela casa.  

Mas, de alguma forma, ela conseguiu se manter firme e ficou dentro do quarto. 

A loira e a fazendeira levantaram o manto branco, revelando minhas partes inferiores que tinham outro tecido branco envolvendo minha pele. Elas pegaram uma tesoura e cortaram do joelho até a virilha, pois o tecido branco pingava o meu sangue. A fazendeira se preocupava em fazer uma mistura em uma tigela de madeira média, enquanto a outra mulher tentava limpar com água e um outro pano limpo.  

Conseguia ver, mesmo com a máscara torta, a pomada esverdeada sendo envolvida na colher de madeira. A fazendeira pede para relaxar porque deveria colocar a pomada mais dentro. Então, prefiro dizer que senti uma queimadura maior ainda, mas depois senti a frieza.  

Aquela pomada era do doutor que usava no consultório antes de mudar para a fazenda. Mas ele tinha a receita gravada na sua mente. 

Me cobriram de volta com o manto arrancado enquanto eu estava deitada. 

“A Dama vai precisar de alguma coisa?” Perguntou a loira, que logo foi interrompida pela fazendeira ruiva.

“Ela é uma alma santificada, você não pode tocar nela com suas mãos pecadoras, sabe-se lá onde enfiou isso.” 

A loira soltou um palavrão.

“Se eu sou pecadora, você e seu marido são mais do que eu!” Foi o que ela falou enquanto a xingava e ia se afastando. 

Esperei a porta bater e uns minutos se passarem para eu perguntar, afinal me colocaram indiretamente na discussão. 

“Qual o problema com a mulher?” 

“Desculpe, Dama. Ela é...” tentou buscar uma palavra mais formal, “Uma dama... da noite. Ela era minha amiga, deixo-a passar umas noites aqui para ela não ficar à mercê de qualquer pessoa. Mas...” 

“Se arrepende de fazer essa ação?” 

“Me sinto suja por ajudar o tipinho dela. Sendo sincera com a Dama.” 

“Entendo.” 

Não demoraria para os homens voltarem para o quarto para verificar como eu estava. Antes, minhas pernas estavam tendo espasmos, parecia impossível para mim andar naquele momento, mas depois da pomada consegui recuperar as forças em pouco tempo. Pensei em perguntar para o doutor a receita. Mas ele chamou sua esposa para fora do quarto para iniciar um bate-boca sobre a inquilina deles. 

Só ficaram eu e o delegado no quarto, ele ficou bem distante fisicamente.  

“A Dama ainda consegue peregrinar junto comigo?” Sarcástico. 

Somente acenei afirmativamente com a cabeça.  

“Meus tecidos se recuperam levemente mais rápido do que o normal, só meia hora e estaremos a caminho do outro ponto da vila. 

“Aquilo era realmente uma maldição?” 

“Ah não. As aranhas saem da boca dos outros normalmente, bem normal.” Devolvi o sarcasmo. Teve efeito pois ele remungava que nem um bicho para o canto da sala. 

Vale destacar algumas hipóteses que ocupavam minha mente enquanto sentia minhas células se juntarem novamente: a maldição foi uma praga jogada por algum fazendeiro das vizinhanças por causa de uma rivalidade de produção, pois realmente havia produtores isolados nos pontos civilizatórios próximos à vila; ou foi uma maldição rogada pelos cidadãos daqui.  

Maldições tanto podem ser feitas quanto atraídas, querendo ou não, e isso depende ainda mais da fragilidade em que o plano terreno está. O que faz décadas que está assim e piora cada dia mais. Explico, pois alguns do conselho não são tão conectados ao arcano. 

Passou o tempo necessário para que eu me recuperasse parcialmente, ainda sentia fraqueza leve, e eu me levantei sozinha. O delegado parecia estar entretido na briga de três pessoas na sala. Ouvia de lá todos os palavrões possíveis, principalmente aqueles usados para as mulheres, tipo a loira.
Eu e o delegado saímos, deixando a discussão esquentar mais ainda. Ele me levou até o próximo lugar, mas nada adiantava a gente querer ir por caminhos mais escondidos da vila, pois tínhamos que chegar no estabelecimento no meio de tudo.

O açougue seguia os materiais comuns da vila, concreto e telhas laranjas. Mas, por consumir carnes, tinha uma estrutura maior que as outras moradias, além de ter uma casa no andar de cima.

Vi que já tinha uma mulher nos esperando, uma morena magra, mas com mãos finas, provavelmente não era dona do açougue. Quando perguntei ao Delegado se ela era uma trabalhadora, ele me explicou que era a mulher do açougueiro, o que morreu, o mesmo que iriamos investigar. 

A mulher logo se apresentou e me reverenciou, porém não tinha tanta a visão que os fazendeiros tinham de mim, era mais por protocolo do que respeito à sacralidade. Ela nos levou para dentro da casa no seu segundo andar e sentamos em uma mesa retangular. 

Desde que eu pisei na casa, parecia que o ar ficou mais pesado. Para alguns, isso seria um sinal de maldição, mas era só o assunto que viemos falar, pressionando todos, principalmente a mulher. Ela não estava somente de luto e acanhada, ela também estava com raiva de ter que reviver um passado horrível não tão distante.

“Como a senhora está?” Perguntou o Delegado.

“A cada dia pior”

“E sua filha?” Perguntou o delegado novamente.

“Na cama, como sempre. Ela podia estar pior depois que o pai morreu.” 

O delegado assentiu para dizer que compreendia. Ele pareceu me olhar para que eu continuasse a conversa.

“Qual foi sua última interação com seu marido?” Perguntei depois de suspirar forte.

“Estávamos discutindo sobre a situação da nossa filha, que sempre sofreu de tosses violentas, mas ultimamente estão mais fortes.”

“Depois disso, ele morreu?”

“Sim. Ele foi assassinado.”

O delegado se fez de surpreso, imaginei que ele estava tentando zombar minha percepção, mas logo descobri que ele estava sendo genuíno em suas reações.

“Por quem?” Perguntei calmamente.

“Por uma... coisa”, ela não conseguia falar direito, estava sob pressão.

Olhei ao redor e vi como aquela sala estava suja e mal cuidada, a sujeira estava ali há mais tempo que a morte que caiu sob essa família. E vi um vulto na porta, que logo se escondeu. Levantei-me rapidamente, atraindo os olhares para mim enquanto me colocava num corredor que desembocava em um quarto que destoava daquela casa, era uma porta entreaberta muito limpa.

Senti uma friagem me agarrando por trás, logo depois uma mão agarrou meu antebraço. Pensei que, se fosse o delegado, eu me sentiria mais segura, por ser um homem da lei armado. Porém, era só a mulher.

“Onde você vai?” Me perguntou, preocupada.

“Me solte, senhorita.” Ela recuou junto com sua mão.

“Você não pode ir para lá, a saúde da minha filha está muito frágil e pode piorar mais se entrar em contato com outras pessoas dessa forma.”

Senti um vento passando por mim, um vento que me guiava para o ponto mais claro daquela situação.

“Minhas mãos foram higienizadas, senhorita. Vou precisar ver sua filha, me espere por aqui."

“NÃO!” Me segurou mais forte.

Eu vi o delegado distante, parecia que estava resistindo ao instinto de me proteger. Ele estava parado atrás dela, bem distante, recitando algumas palavras para acalmar. Não vou conseguir reproduzir aqui, pois meu foco estava além daquilo, a pureza da porta me chamava. E eu fui. Desvencilhei-me da mulher e corri, sem perceber que minhas pernas estavam rápidas demais. Quando retomei, já estava na porta e a boca abriu.

Fui rápida o bastante para desviar das bocarras que arranham o concreto. Logo vi que a pureza das paredes desaparecera e a sujeira tomou conta de tudo, até mesmo da coisa na minha frente. Esguio ao extremo, chegando a ficar encurvada sobre mim, sua boca estava no peito enquanto sua cabeça estava lisa, assim como sua pele extremamente branca. O fundo da sua grande boca me encara.

A criatura se move lentamente até meu corpo, mas consigo recuar até a porta, onde estava o Delegado e a esposa do açougueiro. Ouvi o bater de dentes da mulher e os passos determinados do homem da lei. Ele estava para sacar sua arma, porém o impedi, segurando o pulso dele.

“Você só vai gastar pólvora se tentar atirar contra ele.”

O homem me fitou e guardou o revólver. Antes dele conseguir dizer algo, a monstruosidade o agarra pelos ombros e tenta o jogar naquele buraco negro que era sua boca. A mulher grita horrorizada e se joga para o meio da cozinha. Juntei as palmas e dei luz ao fogo branco que queimava a ponta de cada dedo e apontei para aquela coisa.

Mas, a coisa larga o delegado, paralisado de medo, e ouço uma voz. Uma criança de cabelos mais brancos que meu manto abraça a perna dianteira da maldição. O monstro a ouvia atentamente. A mulher que tinha caído no meio da cozinha emerge de lá com uma grande faca de cozinhar.

Mas sua atenção não estava tanto no monstro, estava pairando a faca sobre mim e o delegado paralisado no chão. Senti que não era a primeira vez dela manuseando esse tipo de faca, os anos trabalhando com um açougueiro aprimoraram essa habilidade.

“Eu falei para você não ir, Dama. Foi a mesma coisa com o meu marido.” Ela segurava a faca com as duas mãos enquanto me olhava com fúria.

“Seu marido morreu como, senhorita?” perguntei. 

Ela me responde com uma estocada na direção do delegado perplexo, que é perfurado brutalmente. Corri ao encontro dela, mas não consegui chegar a tempo. Desferi um soco na testa dela, o que a fez se chocar contra a parede. Então, um grito feriu meu ouvido e, em seguida, sou lançada para a outra ponta do corredor. Minhas costas doeram.

“MÃE!” Uma menina grita, uma filha preocupada.

Olhei para frente e vi uma garota magra, branca e com cabelos mais brancos que a luz. Suas veias aparecem pecorrendo seu corpo como se fossem cicatrizes. A fisionomia e a maldição no meio do corredor me dão uma ideia.

Vejo a mãe se levantar tonta.

“Essa não é sua filha. Essa menina é uma mutante. Seu marido queria entregá-la a delegacia logo que viu as recompensas sobre entregar os mutantes fugitivos.” Falava enquanto a conclusão estava ainda se formando. E então: “Você o matou.”

A cara de fúria não existia mais. As lágrimas descem enquanto fala.

“Ela é minha filha. E nada disso mudaria. Tiraram minha escolha de ter um descendente. Logo quando tenho ela, vocês tentam tirar de mim.”

Levantei-me ainda com a costa apoiada na parede, sentia a dor por lá, mas a coluna estava intacta. A menina parecia mais assustada cada vez que passava a me olhar e ver os ferimentos no meu corpo abrindo. 

“Não minha filha.” A criatura fala no lugar e vem até mim.

Jogo minha palma esquerda para frente, emitindo a luz que engole tudo e me fez desmaiar.

Passou algumas horas até que alguém me retirou do fogo, não fui pega pelas chamas, mas sentia meu pulmão doendo. Diferente de mim, a menina, a criatura e a mulher não estavam por lá.

Mando esse relato do quarto da fazenda do casal que me acolheu. Saio daqui depois de quatro dias que esse telegrama chegou para o conselho com o charreteiro que me trouxe também. Até a Luz.

ASS.: Dama Elba.

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