O despertar
Ao longo dos anos, Harry ainda se encontrava preso à lembrança daquele armário sufocante debaixo da escada. Um espaço tão apertado que, por uma época, servira de quarto e—dolorosamente—de lar. Era um ambiente claramente não-salutar para uma criança crescer: o estalido abafado dos passos dos Dursleys nas escadas acima, liberando uma fina camada de poeira que se acomodava em seus cabelos e cobertores, provocando espirros involuntários. Tornara-se familiar com o mofo e a umidade, o calor sufocante do verão sem qualquer ventilação e o inverno gelado, isolado do aquecimento central da casa.
Havia um temor subjacente, não de ser trancado ali—já se acostumara a isso—mas de ser esquecido, tornar-se mais um objeto obsoleto na casa ostentosamente decorada dos Dursleys. Harry aprendera a burlar a fechadura do armário e, à noite, arriscava-se na cozinha para furtar comida. Nunca fora pego, graças à indiferença dos Dursleys, que associavam o sumiço da comida ao apetite voraz de Dudley (seu primo beta). Se fosse descoberto, sabia que as consequências seriam cadeados mais pesados e câmeras de vigilância.
Essa invisibilidade involuntária, ele percebeu, devia-se aos estereótipos acerca dos ômegas. Mitos do sistema ABO que, em seu caso, ofereceram uma espécie de armadura invisível, um escudo que o ajudou a sobreviver naquela casa. Afinal, se acreditava que ômegas deveriam ser burros e dóceis, logo, não lutariam contra as condições e tão pouco usariam de subterfúgios para sobreviver.
Essas memórias eram como espectros, constantemente o puxando de volta, especialmente para o dia em que os Dursleys abriram aquele armário com sorrisos condescendentes, proclamando que tinham encontrado "um lar" para Harry. A simples lembrança fazia seu corpo vibrar de apreensão.
Foi em meio a esse redemoinho de memórias que Harry despertou abruptamente, corpo tenso e punho levantado. Seus olhos, carregados de resiliência e desconfiança, encontraram os de um atônito Amos Diggory.
"Shh, você está seguro agora," disse Amos Diggory, tentando acalmar o ofegante e visivelmente confuso Harry.
Tateando a escrivaninha ao lado da cama, Harry encontrou seus óculos. Ao colocá-los, sua visão tornou-se mais nítida, permitindo-lhe avaliar melhor o ambiente ao seu redor. Ele se encontrava em um quarto aconchegante e acolhedor, reclinado em uma cama adornada com cobertas de um azul suave. Uma janela parcialmente aberta convidava uma brisa fresca a entrar. Pela mesma janela, ele pôde observar o sol cujos raios penetravam as nuvens cinzentas do céu londrino. Além disso, sua visão alcançava uma paisagem repleta de árvores e grandes casas de estilo vitoriano modernizado, sugerindo que se encontrava em um bairro afluentes da cidade. Sentado em uma poltrona no lado oposto da cama, Amos Diggory o observava com um olhar apreensivo. Vestindo roupas leves e casuais, o homem emanava uma sensação de cuidado e preocupação.
Sentindo seu coração ainda acelerado, Harry baixou lentamente o punho. Não estava com os Dursleys. Estava seguro. Mas onde exatamente?
"Depois que você desmaiou, achei melhor trazê-lo para minha casa, que fica bastante próxima do clube," explicou Amos, antecipando-se à pergunta que se formava na mente de Harry.
Antes que Harry pudesse falar algo, a porta se abriu e uma mulher de meia-idade entrou no quarto. Seus cabelos castanhos eram salpicados por fios prateados, e seus olhos amendoados brilhavam de contentamento. Ela portava uma bandeja repleta de alimentos que instantaneamente aguçaram o apetite de Harry. O aroma do pão tostado misturava-se com o de tomates grelhados, ovos fritos e feijão branco banhado em molho adocicado.
"Amos, você nem avisou que ele tinha acordado!" ela exclamou, lançando um olhar reprovador ao marido. "Eu poderia ter trazido o café da manhã mais cedo. Coitado, deve estar faminto! Quando você chegou ontem à noite, notei o quanto estava magro e pensei comigo mesma, 'não, isso não pode continuar'. Então preparei um verdadeiro banquete! Talvez tenha me empolgado um pouquinho, já faz um tempo desde que cozinhei para outro ômega... Desde... Cedric... Ah, me perdoe, eu tendo a tagarelar quando estou nervosa!"
Com um movimento gracioso, Alice Diggory levou a bandeja repleta de comida até uma mesinha no canto do quarto, um gesto que Harry observou com genuíno interesse.
"Sou Alice Diggory, um prazer conhecê-lo", disse ela, oferecendo um sorriso tão afetuoso que fez Harry sentir-se um tanto constrangido. "Está se sentindo melhor? Eu insisti com Amos que deveríamos chamar um médico, mas ele e seus amigos foram categóricos em dizer que não era necessário."
"Estou bem, muito obrigado, senhora Diggory", Harry respondeu, retribuindo com um sorriso tímido. Ele tinha consciência do porquê seus amigos, especialmente os gêmeos Weasley, desaconselharam procurar ajuda médica; como explicar que o mal-estar de Harry foi causado por uma fórmula ilegal para mascarar sua classe ABO? Melhor manter o sigilo, algo que Amos parecia compreender muito bem.
"Oh, por favor, me chame de Alice," ela respondeu, mantendo o sorriso. Mas, ao lançar um olhar para seu marido, sua expressão mudou para uma de leve desaprovação. "Amos, talvez seja melhor deixarmos Harry se recuperar em paz. Ele precisa comer e tomar um banho antes de qualquer tipo de interrogatório."
"Espera... quero dizer, eu agradeço, mas devo estar atrasado para o trabalho," interrompeu Harry, alarmado, avaliando a luz do dia pela janela e estimando mentalmente quantas horas se passaram. Pela primeira vez, chegaria atrasado ao restaurante chinês onde trabalhava.
"Não se preocupe, Harry," disse Amos, com um sorriso leve. "Já falei com Chang; você está de folga hoje. Minha esposa está certa; você precisa comer e descansar. Estarei na sala, quando você estiver pronto para conversar."
"Conversar? Conversar sobre o quê?" Harry inqueriu, ansioso e incerto sobre o tópico.
"Sobre a Corrida," a expressão de Amos endureceu, e o rosto de Alice assumiu uma expressão sombria. Eles se retiraram do quarto, deixando um Harry ainda inquieto, ponderando o quanto essa futura conversa poderia ser benéfica - ou prejudicial - para seus planos de vencer a tal corrida.
~**~
Harry tinha que admitir: o banho quente que acabara de tomar possuía um poder quase mágico de revitalizar sua alma. No apartamento compartilhado com Ron, as adversidades incluíam falhas frequentes no abastecimento de água e, quando ela surgia, era gelada como o inverno. Então, essa experiência na casa dos Diggory parecia um vislumbre do paraíso.
Ao retornar ao quarto, Harry notou que os Diggory haviam deixado uma muda de roupa dobrada com esmero sobre a cama. A roupa, embora muito grande para sua estatura, exalava um ar de familiaridade melancólica; ele não pôde evitar concluir que deveriam ter pertencido a Cedric Diggory.
Com uma sensação de relutância, mas também com a barriga cheia e vestido em roupas incrivelmente confortáveis (apesar do excesso de tecido, que o levou a fazer uma bainha improvisada nas calças de moletom e a dobrar várias vezes as mangas da camisa), Harry se dirigiu à espaçosa sala de estar.
O ambiente era claramente caseiro e convidativo, as paredes decoradas com diversas fotografias que contavam histórias de gerações. O olhar de Harry foi imediatamente capturado pelas imagens de Cedric, cujo semblante forte e sorridente dominava muitas das molduras.
Amos estava sentado em uma poltrona de couro envelhecido, posicionada diante de uma lareira rústica que ardia com chamas aconchegantes. Em suas mãos, folhas de papel estavam espalhadas como um quebra-cabeça inacabado.
Harry se aproximou com passos cautelosos, não desejando perturbar o homem em seus pensamentos. Mas conforme encurtava a distância entre eles, ele percebeu que seu próprio nome estampava alguns dos documentos. Sentindo uma mistura de curiosidade e apreensão, ele acelerou o passo e finalmente perguntou:
"O que são esses papéis?"
"Ah, Harry, vejo que já está pronto para conversar," respondeu Amos, sem se perturbar pelo olhar cauteloso que o ômega lhe lançava. "Sente-se, por favor."
Amos indicou uma poltrona vizinha à sua, ambas posicionadas de frente para a lareira que emanava um calor reconfortante. Com hesitação palpável, Harry se acomodou.
"Onde estão Ron, George e Fred?" indagou Harry, sentindo-se repentinamente isolado naquele ambiente desconhecido e na companhia de alguém em quem ainda não confiava plenamente.
"Ronald teve que ir trabalhar. Os gêmeos estão repousando em outro quarto de hóspedes. Na verdade, eles fizeram questão de ficar ao seu lado enquanto você dormia, parecendo se sentir um tanto culpados pelo ocorrido. Quando você acordou, eles tinham justamente se recolhido para descansar e continuam dormindo até agora," explicou Amos com uma calma metódica.
"E esses papéis?" insistiu Harry, ao ver Amos lhe entregar os documentos que tinha em mãos. Observando-os de perto, notou que se tratavam de sua ficha do Departamento de Proteção a Ômegas Vulneráveis do ministério britânico.
"Como você conseguiu isso?" Harry questionou, folheando os papéis. Nem ele mesmo conhecia todas as informações ali registradas.
"Eu precisava saber mais sobre com quem estou lidando, especialmente se planejo treiná-lo para a corrida," disse Amos, olhando-o diretamente nos olhos.
A declaração fez com que Harry erguesse seu olhar dos papéis confidenciais para encará-lo. "Você vai me treinar?" perguntou, arqueando as sobrancelhas em surpresa.
Amos assentiu levemente e prosseguiu, "Mas antes de começar, eu preciso conhecer você mais a fundo. Como você sabe, o treinamento será um compromisso sério para ambos nos próximos meses. Então, minha pergunta é: quem é você, de fato?"
Uma onda de frio percorreu Harry, neutralizando até o calor da lareira à sua frente. Parecia que, naquele instante, seu passado estava prestes a ser arrancado das sombras.
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