Prólogo

A vida nunca vai ser justa para todas as pessoas. Alguns nascem com um grandioso dom, que Maya costumava chamar de "filhos da puta privilegiados". E ela nem ao menos estava se referindo aos ricos mimados, ou às patricinhas, não, ela estava se referindo ao grupo de pessoas que nasceram com uma única função. - Infernizar a vida dos outros.

Elas os odiava, porque infelizmente era a minoria que fazia parte do grupo que sofria na mão desses "opressores". Por mais que tenha passado sua vida inteira tentando passar despercebida, ainda era bem difícil, ainda mais quando você não fez nada para merecer a perseguição que decaiu sobre si, exceto nascer com uma peculiaridade genética.

Era isso que ela pensava enquanto terminava de tingir a raiz de seu cabelo com tinta preta, depois de ver que alguns fios já estavam na cor natural e ela precisava urgentemente esconder.

Sua pia estava suja com aquela gosma preta que se parecia mais com piche, o cheiro forte da tinta estava irritando seu nariz, deixando a ponta dele vermelho, enquanto ela fungava. Odiava pintar o cabelo e odiava ainda mais o fato de que quanto mais ela pintava, mais rápido ele parecia crescer, como se estivesse se rebelando contra ela e não gostasse do fato da mesma tentar escondê-lo.

Quem em sã consciência esconderia mechas brancas tão lindas?

Maya esconderia, porque apesar de achar seu cabelo lindo da cor natural e que combinava tão bem com suas íris azuis, ela sofria demais por conta daquele erro genético que a fizera nascer albina. Desde a pré escola às crianças pequenas já implicavam com ela e sua aparência peculiar, agora na universidade, não estava sendo diferente. Achou que lidar com jovens adultos seria mais fácil, mas descobriu que eles poderiam ser mais cruéis que adolescentes. E quando um grupo de garotas decidiu arrastá-la para um beco nas proximidades da escola e cortar seu cabelo porque achavam que ela estava chamando atenção demais, foi que Maya decidiu que estava na hora de escondê-los.

Ela sofreu tanto no dia em que teve seu cabelo inteiro picotado. Mas qual a surpresa dela ao acordar na manhã seguinte e ver que ele estava intacto? Com as longas mechas brilhantes, mais brancas do que nunca, como se nada tivesse acontecido.

Sua mãe gritou quando viu aquilo, a chamando de aberração. Ela também quis gritar quando viu que seu cabelo estava intacto novamente, mas não era como se pudesse fazer alguma coisa. Aquilo realmente era algo inexplicável. E quando ela chegou na faculdade, as meninas a agarraram novamente e puxaram seu cabelo alegando que era aplique, justificando que ela havia passado uma cola muito forte para não conseguirem tirar novamente.

Qual era o problema daquele pessoal com pessoas de cabelo branco? Certo que ela era a única no grupo social em que vivia. Mas era só uma cor diferente, não tinha porque ocorrer tanto alvoroço assim.

Soltou um longo suspiro enquanto abria a torneira e deixava a água escorrer, levando a maior parte da tinta, que mesmo assim deixou o mármore da sua pia manchado.

Ela estava atrasada para a aula, poderia terminar de limpar aquilo quando voltasse.

Jogou o pote e pincel dentro do armário, lavou suas mãos e foi se arrumar enquanto esperava os trinta minutos para a tinta se fixar e ela poder lavar os cabelos na pia mesmo, já que estava atrasada o bastante para não ter tempo de tomar outro banho.

Vestiu sua calça jeans surrada, que ela tinha desde a época do ensino médio e era a sua favorita, junto de uma regata roxa e um moletom preto por cima, o inverno estava se aproximando e as temperaturas já começavam a cair em Kyoto.

Saiu do quarto depois de calçar suas botas de cano curto e salto baixo que ela tanto amava e desceu para o andar debaixo, onde já podia ouvir a voz de sua mãe e o choro do bebê. Com certeza ele deveria estar dando trabalho para tomar o café da manhã como sempre.

Maya entrou na cozinha, sua mãe estava lutando para dar a comida de Kenji, que batia suas mãozinhas gordas no apoio da cadeira de refeição e gritava com a mulher, virando a cabeça para os lados, ignorando os aviõezinhos que Kaya insistia em fazer. Enquanto Kevin estava sentado na mesa, com o jornal aberto na frente de seu rosto, parecendo ignorar todo aquele escândalo como sempre.

- Bom dia, mãe, bom dia, Kevin. - Ela se aproximou do pequeno bebê para lhe dar um beijo na cabeça, mas recebeu um tapa e um empurrão da mulher mais velha, antes que a mesma pudesse encostar na criança.

- Você está com cheiro de tinta, não encoste nele, isso pode causar alguma irritação. - A loira brandou, lançando um olhar furioso para a filha.

- Certo, desculpe. - Maya ignorou a grosseria da mulher e caminhou até a mesa, onde pegou um pedaço de bolo, não estava sentindo muita fome, porque o cheiro forte da tinta a tinha deixado enjoada. Até que sua mãe tinha razão, aquilo poderia fazer mal ao bebê.

Kevin abaixou o jornal e a encarou com um olhar ao qual Maya não soube decifrar o que significava, geralmente o homem costumava encará-lá com nojo, como se ela fosse uma aberração, assim como sua mãe costumava gritar aos quatro ventos pra todos ouvirem, mas naquele momento, ele parecia analisar alguma coisa na feição dela, que a fez engolir o bolo em seco, quase sentindo ele ficar preso em sua garganta.

- Você fica muito mais esquisita com esse cabelo preto, do que com aquela cor branca ridícula.

Maya respirou bem fundo e forçou um sorriso de lado. Ela não estava nem um pouco afim de discutir aquela manhã, primeiro que estava atrasada pra faculdade, segundo que estava enjoada e terceiro, não valia a pena perder tempo com nenhum daqueles dois.

Ela desviou os olhos do homem de mechas escuras e encarou a pilha de caixas que estavam próximas a porta de acesso aos fundos da casa.

- O que são essas caixas?

Ela notou que Kenji finalmente havia parado de gritar, depois que sua mãe lhe deu um pedaço de maçã para que ele ficasse tentando morder, mesmo que não tivesse dentes ainda.

- Ah, são algumas porcarias que o ordinário do seu pai deixou para trás. Estavam no sótão, vou ver se tem algo que dê para vender aí. O resto vai tudo pro lixo.

- Posso dar uma olhada? - Ela pediu esperançosa, era a primeira vez que via algo referente ao seu pai, além das fotos que tinha guardado consigo e algumas fitas de vídeos de seus aniversários.

Sua mãe apenas balançou a mão com certo desinteresse, o que fez Maya saltar em direção às caixas, ela se ajoelhou e abriu a primeira. Haviam algumas bússolas velhas ali, uma ampulheta cheia de areia que estava vazando por uma rachadura e vários cadernos velhos e todo amassados.

Pegou um deles e abriu, notando no topo das páginas as datas e anos em que foram escritos.

Aquilo eram diários.

Eram diários do seu pai.

- Então, tem algo aí que dê para vender? - Kevin foi quem a questionou quando viu a garota empilhar os diários em seu colo.

- Relógios, bússolas e uma ampulheta velha nessa caixa. - Ela comentou com certo desinteresse no homem, seus olhos estavam brilhando com aqueles cadernos que continham informações pessoais sobre seu pai. - Mãe, posso ficar com os diários dele?

- Faça o que quiser com essas porcarias, certeza que aí deve mostrar que ele era tão estranho quanto você. - A mulher resmungou com uma pitada de raiva em sua voz.

Maya não se lembrava muito de seu pai, as poucas lembranças que tinha, eram de algumas fotos velhas que ela havia encontrado, de quando era bebê até os seus três anos de idade, onde a maioria delas, estava nos braços de um homem que tinha cabelos brancos, no mesmo tom dos dela. Ele sempre estava sorrindo nesses registros e parecia muito feliz, fora que também parecia ser um pai e marido muito amoroso.

Mas por algum motivo, ele desapareceu logo após o aniversário de três anos de Maya, sua mãe alegava que ele deveria ter fugido com alguma vagabunda, mas ela não tinha provas quanto a isso. Fora que ele não parecia ter ido embora, já que não levou nenhum pertence, nem mesmo seus documentos e o carro continuava na garagem, como se por algum motivo, ele tivesse desaparecido de dentro daquela casa.

Kaya surtou um ano depois, quando percebeu que ele nunca mais voltaria, colocou fogo em todas as suas roupas, vendeu o carro e alguns outros pertences, ela enfiou em caixas e colocou no sótão, lugar que Maya nunca tivera acesso, porque sempre ficava trancado.

Mas agora, ela sentia como se segurasse ouro em suas mãos.

Sua mãe sempre tentava ofendê-la dizendo o quanto ela se parecia com aquele homem, mas por algum motivo, Maya nunca sentiu nenhum ressentimento, na verdade, ela ficava feliz quando encarava a foto dele e via que ela era a cópia idêntica daquele homem que pareceu amá-la de verdade um dia. Até mesmo sentia falta de um sentimento que nunca havia recebido. E se questionava, o que seu pai havia visto em sua mãe para se casar com ela? Kaya não era nem de longe alguém amorosa.

Na verdade, Maya só a viu demonstrar algum tipo de afeto e sentimento amoroso por Kenji quando ele nasceu. Talvez fosse porque ela realmente tinha se apaixonado por Kevin e ambos partilhavam uma personalidade bem difícil de lidar, o que fazia eles serem o casal perfeito.

Será que seu pai também era assim?

Não, nos vídeos dos seus aniversários ele parecia ser um homem muito alegre, apaixonado pela filha e pela esposa, sempre rindo ou fazendo piadas, enquanto Kaya revirava os olhos com as brincadeiras dele, mas o mesmo a agarrava e lhe beijava na frente de todos, tirando um sorriso minimamente discreto da mulher.

Mas ainda era um sorriso.

Ele era bom, isso era óbvio.

E era o pai que Maya sempre sentiu falta, se contentando em assistir os vídeos em que ele aparecia como uma completa fanática. Foi por isso que sua mãe começou a chamá-la de estranha e aberração quando ela tinha dez anos e não saia da frente do computador assistindo aqueles vídeos, sempre alegando que Maya era idêntica ao pai dela e que tinha vindo a esse mundo só para trazer desgosto. Que seria muito bom se ela também sumisse como seu pai fez.

Apesar das palavras lhe machucarem, ela acreditava que Kaya só estava com o coração partido demais para saber lidar sozinha, por isso que ela nunca tentou ir embora. E quando Kevin apareceu, bom, ela não a ofendia mais com tanta frequência, só era ríspida e com isso Maya poderia lidar.

Até porque, ela tinha planos de ir embora de casa quando terminasse sua faculdade e conseguisse um bom emprego na área de Psicologia.

Irônico ela seguir uma área de doenças mentais, quando ela não conseguia lidar nem com os problemas mentais dela.

Mas aprendeu que os melhores profissionais eram os mais doidos da cabeça.

Se levantou com os diários no colo e correu para o andar de cima, por mais que estivesse ansiosa demais para ler o que estava escrito ali, ela precisava lavar seu cabelo e ir para a aula, considerando que provavelmente já tinha perdido o primeiro período.

Jogou os diários sobre sua cama e correu para o banheiro, abriu a torneira e encarou a pulseira em seu pulso, a única coisa pessoal que ela ainda tinha, algo que seu pai lhe dera quando ela nasceu, sua mãe lhe contou uma única vez quando estava bêbada demais e muito emotiva. Dizendo que assim que ela nasceu, a primeira coisa que o homem fez foi colocar aquela pulseira em seu pulso. Ele era de elástico e se estendia em torno de seu punho conforme ela foi crescendo, haviam duas pérolas brancas nele, que ela poderia jurar que eram de verdade. Nunca tivera coragem de tirá-la, com medo de que pudesse acabar perdendo e aquilo de certa forma passou a fazer parte dela.

Observou o reflexo de seu rosto no espelho, encarando o sorriso automático que ela nem havia reparado ter aberto naquele momento.

Não sabia dizer porque estava tão feliz por encontrar anotações velhas de um pai ausente, mas ela sentia uma sensação muito boa em seu interior.

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