1. Terezinha de Jesus

Terezinha de Jesus
De uma queda, foi ao chão
Acudiram três cavalheiros
Todos os três, chapéu na mão

Tereza de Jesus tinha cinco anos quando descobriu a história de Joana D'Arc, sentia sabê-la nos genes. Seu pai possuía o DVD de algum dos filmes da biografia de Joana e já o assistira o suficiente para atuar melhor do que a atriz selecionada.

A menina amava as cenas de luta. Simplesmente achava incrível a habilidade de Joana na espada e como ela derrotava os ingleses. Na visão da criança, aqueles golpes eram obras de arte e a atriz soube representar com maestria a grandiosidade da guerreira.

Seu pai sorria diante dessa admiração. Era reconfortante saber que sua Terezinha tinha como referência uma santa, em vez de alguma celebridade infiel. Entretanto, percebeu que ela gostava mais das cenas de ação do que da causa religiosa. Por isso, presenteou a filha com uma espada de madeira. Afinal, era perigoso lutar com guarda-chuvas.

Tereza tinha um irmão dois anos mais velho, o qual era, geralmente, seu adversário enquanto fingiam ser espadachins. Aos poucos, parou de juntar-se a ela nas lutas. Não era a paixão dele, somente dela. E esse amor pelo esporte aumentou com o tempo.

Quando Tereza completou dez anos, seu pai a matriculou em uma academia de esgrima. Não era um esporte popular e só existia entre a elite, então não havia nenhuma nas proximidades. Mesmo assim, não desistiram. Seu pai mudou de cidade só para alegrar para sua linda. A partir dali, Tereza começou a treinar.

O esforço da mudança era pequeno para o pai diante do contentamento que a prática gerava na filha. Ele jurou fazer o impossível para agradar seus filhos adotivos, pois era uma dádiva divina conseguir duas crianças mesmo sendo solteiro.

Era claro o quanto Tereza amava a esgrima. Felizmente, esse amor era correspondido. Talento com o florete, possuía de sobra. Assim como Joana, podia sentir a arma como uma extensão do seu corpo e fazer os passos de forma artística. Podia se dizer que a jovem também recebera uma dádiva divina. Ou assim pensava seu pai, o qual pedia bênçãos da santa nessa jornada. Pois sim, a menina queria casar-se com o esporte tornando-se profissional.

Rapidamente, destacou-se e oportunidades maiores surgiram. O pai estava felicíssimo com a realização do sonho da filha de ser uma esgrimista. Sempre se emocionava ao pensar que sua Terezinha estava se transformando na grande Tereza de Jesus. Seu irmão também estava orgulhoso e comumente dava um jeito de mencionar seu parentesco com a potencial campeã. Só tinham a agradecer pelo chamado da Santa Joana D'Arc enviado à jovem.

Obviamente, a glória não era a única composição da vida de um atleta. Os relacionamentos com esportes tinham altos e baixos, como os interpessoais. Conforme a jovem era considerada apta para participar de grandes campeonatos, vieram as cobranças. O caminho escolhido não permitia que fosse um amor gratuito. Isso porque o Brasil nunca teve tradição na esgrima, esporte pouco divulgado. Nesse contexto, ela era vista como uma esperança para atrair atração.

A mídia esportiva brasileira não cobria suas lutas incríveis, mas aqueles que conseguiam acompanhar eram sempre elogiosos. Diziam que Tereza tinha uma missão enviada pelos Céus envolvendo a esgrima e isso a contentava muito. Ela nunca recebeu uma visita do Arcanjo Miguel, nem da Santa Catarina de Alexandria e muito menos da Santa Margarida de Antióquia. Mesmo assim, sentia-se especial com todas essas falas. Esses comentários eram como o esporte lhe fazia carícias.

Os problemas começaram quando chegou aos campeonatos internacionais. Tereza de Jesus era destaque em relação às brasileiras, porém, contra as adversárias estrangeiras, lutava de igual para igual. Os jornalistas europeus, nativos de onde o esporte era mais apreciado, contavam sua glória e alertavam as atletas do trabalho que teriam com ela. Tamanha expectativa tornava-se um peso quando ela não saía vitoriosa.

Suas lutas nem sequer eram transmitidas! E ela tinha conquistado medalha de bronze no último mundial... O que mais precisava fazer? Desejava abrir caminho para os holofotes se acenderem para esgrima brasileira. Mesmo elitizado, era um esporte com potencial popular. Poderia ganhar as ruas se todos soubessem o quanto podia ser tão lindo.

A atleta sabia sobre sua missão de popularizar a esgrima por meio de suas vitórias e o quanto contavam com seu sucesso. Contudo, infelizmente, pareciam não cogitar que era humana e às vezes errava. Segundo o olhar deles, ela era somente uma máquina de lutar com um florete nas mãos. Seus colegas de treinamento nunca disseram explicitamente, contudo era óbvio. A jovem já era incapaz de reconhecer-se como pessoa, mas apenas como uma lutadora. Sem sua arma, não era nada.

Ela tinha dezoito anos quando conseguiu classificar-se para as Olimpíadas na modalidade de florete individual. Sua fama como bronze no mundial e rendeu uma capa de revista com entrevista exclusiva. Tereza ficou surpresa com o quanto seu florete era fotogênico ao seu lado.

Disse à revista que dedicaria uma eventual vitória para sua família, que se inspirava na Joana D'Arc e que tentaria levar a medalha olímpica inédita para casa. Ao pronunciar essa última sentença, um arrepio corria seu corpo involuntariamente. O que aconteceria caso perdesse? Enquanto seu pai e seu irmão não conseguiam ficar perto dela sem se emocionar com o quão longe Tereza tinha ido, a esgrimista estava muito estressada.

Participar de um campeonato desse porte era um sonho para qualquer atleta. Possuir a chance de conseguir uma medalha, então, era o paraíso na Terra. A jovem sentiu-se em transe quando encontrou o resto da comitiva brasileira, ao partir para a cidade-sede. Estava vivendo um momento tão mágico, e outrora inalcançável, a ponto de pensar que não era real.

Terezinha ganhou a primeira luta com dificuldade. Ela mesma não sabia como conseguira, visto que seu corpo estava tremendo de nervosismo com a ameaça da derrota. A atleta tentava pensar em como Joana enfrentou todo o peso em suas costas e conseguiu virar o jogo na Guerra dos Cem Anos para que pudesse copiar, mas a inspiração não vinha.

A comemoração da vitória no primeiro duelo foi gigantesca, tanto por parte de seu pai e irmão, quanto por atletas brasileiros de outras modalidades. A noite foi cheia de graças dedicadas à Santa Joana D'Arc por tê-la guiado naquela luta. Tereza já sonhava com tudo de bom que a medalha olímpica inédita traria para o futuro da esgrima no Brasil, além do patrocínio enorme que certamente receberia.

Já no segundo duelo, não conseguiu ficar tranquila o suficiente para encarar friamente a adversária. Queria silenciar sua mente e focar em realizar os movimentos corretos, porém sua cabeça parecia um mar revolto de expectativas difíceis de cumprir. Não era tão fácil assim conquistar uma medalha olímpica e Tereza não sabia se conseguiria.

Desgraçadamente para ela, as distrações causadas pelas preocupações não foram perdoadas pela adversária. A derrota foi inevitável e devastadora. A vergonha que invadiu seu corpo foi tamanha a ponto de fazê-la temer encontrar qualquer pessoa ao sair dali.

Após o fim da luta, as duas combatentes cumprimentaram-se respeitosamente e cada uma foi para seu canto. A questão era: qual o canto reservado à Tereza de Jesus?

O primeiro foi seu pai
O segundo, seu irmão
O terceiro foi aquele
Que a Tereza deu a mão

Assim que se afastou do local onde o duelo ocorreu, os jornalistas aproximaram-se para cobrir sua derrota em rede nacional, quiçá internacional. Ela simplesmente não sabia o que dizer. Havia decepcionado todo mundo. Já não mais se sentia uma esgrimista, naquele momento era apenas uma fracassada... O Brasil desejava aquela medalha inédita, tanto que a modalidade nunca fora tão explorada pelas reportagens.

– É uma pena que não tenha conseguido avançar na competição, mas eu dei tudo de mim e... – A atleta tentou falar do orgulho que sentia de sua performance, mas não conseguiu. Havia traído o amor recebido da esgrima. – Resta apenas continuar treinando para a próxima Olimpíada e mudar esse cenário ao trazer a medalha tão sonhada.

Tereza de Jesus não ficou para assistir o resto das modalidades, nem mesmo a continuação do campeonato. A culpa sentida ao encarar qualquer parte da Vila Olímpica era insuportável. Tudo o que a esgrimista precisava era ficar em casa com seu pai e seu irmão, em paz. O problema era como enfrentar as críticas que certamente viriam.

Para sua sorte, não havia nenhum repórter aguardando a chegada de seu voo. Apesar de que isso era meio óbvio, qual jornalista se interessaria por uma perdedora que decepcionou toda uma nação?

Tão logo viu seu pai, já correu para abraçá-lo. Afinal, tudo o que ela precisava era de um porto seguro.

– Você foi incrível, filhinha... – disse o pai, tentando tranquiliza-la. – Tenho certeza de que a Santa Joana D'Arc estaria orgulhosa.

– Não fui não! Eu perdi a chance de colocar o Brasil no mapa da esgrima. Minha vitória incentivaria novos atletas a experimentar esse esporte maravilhoso e tão antigo... – Ela desabou em lágrimas nos ombros do pai.

– É dificílimo ganhar uma medalha nas Olimpíadas. Só o fato de garantir a vaga já é um feito enorme. Você é nova, provavelmente participará das próximas, e então estará mais preparada.

– Você não entende, pai... todos estavam contando comigo. Eu tinha uma missão!

O homem percebeu que colocaram pressão demais em cima de sua filha. Ela não era perfeita e não conseguiria sozinha ser aquela a trazer popularidade ao esporte desconhecido. Talvez sua derrota precoce tenha sido boa, pois escancarou a necessidade de afastá-la desse ambiente tóxico antes que fosse tarde demais. Pediu sabedoria à santa que os guiou até ali, pois não sabia como proceder.

Os dois seguiram o caminho até a residência em silêncio. O irmão de Tereza já estava esperando pela chegada dos dois com uma recepção capaz de abrir um sorriso em qualquer um. Ele esperava que sua irmã estivesse incluída na categoria dos que sorririam, mesmo sabendo o quanto ela era única.

Ele preparou um lanche farto e cheio de delícias. Além disso, colocou uma trilha sonora com a banda favorita da atleta. Sua cartada final era o filme do ídolo dela. Esperava que assistir a tranquilizasse. Naquela época já nem possuíam mais o DVD. Então procurou a versão disponível no serviço de streaming do qual tinham assinatura.

Apesar de todo aquele esforço, o apetite da esgrimista estava menor do que suas chances de ganhar medalha. Ela entrou cabisbaixa e fechou-se no quarto. Gostaria de entrar na internet e ver vídeos bobos para esfriar a cabeça, porém tinha medo dos comentários que poderiam surgir se abrisse suas redes sociais. Temendo para onde o tédio levaria seus pensamentos, resolveu encontrar o irmão novamente.

– Ah, você voltou. Que bom! – A voz dele soava animada, na tentativa de transmitir alegria. Mas não funcionou.

– Eu não podia fazer desfeita com esse lanche que você preparou, não é? – Ela sorriu desanimada enquanto pegava uma fatia de bolo.

– Olha aqui o que eu achei: um novo filme da Joana D'Arc. Você não gostaria de assistir? Quem sabe ajuda a levantar seu astral? – ele sugeriu.

– Como assim?! A história dela não anima nem uma mosca, só vai deprimir-me ainda mais. Ela foi queimada viva, acusada injustamente de heresia! – explicou o porquê de a escolha não ter sentido. – Não duvido que estejam fazendo o mesmo comigo. – Completou temerosa.

– Não, filhinha. Ninguém está xingando não, pode ver suas redes sociais e... – disse o pai enquanto trazia um celular.

– Não. – A jovem estava tonta só de pensar em enfrentar sua torcida. – Eu quero dormir e não acordar. Ah! – exclamou logo antes de sentar-se no sofá e reassistir à biografia que já sabia de cor.

No dia seguinte, Terezinha finalmente decidiu enfrentar o público. Se no caminho de volta ela tinha se escondido dentro do carro de seu pai, dessa vez ela pretendia caminhar pela cidade. Se a reconhecessem, enfrentaria o que quer que tivessem a dizer.

Sabia que não poderia ficar presa em casa pelo resto de sua vida e pensava que sair logo seria menos pior em comparação a adiar o inevitável. Talvez fosse até um passeio relaxante, tendo em vista o quanto sua cidade era arborizada e possuía lindos parques. Além disso, quantos de lá acompanharam as lutas? Provavelmente poucos.

Para seu alívio, não houve um bombardeio de pessoas falando mal dela logo quando saiu. Demorou um pouco para ser identificada, devido a poucas pessoas prestarem atenção nela e não ser tão conhecida assim. Ninguém proferiu comentários de ódio, somente um simples "Que pena!". Mesmo assim, a culpa por decepcionar aquela população ainda pesava em seu coração.

Finalmente, chegou na praça central da cidade. Lá havia um parquinho, em que várias crianças brincavam. Talvez, se ela ganhasse a medalha, visse algumas delas brincando de luta de espadas, sonhando em um dia chegar em seu nível também. Entretanto, perdera e tais crianças teriam a crença de ser esse um sonho impossível.

Preocupada com o rumo de seus pensamentos, Terezinha arrancou um galho de uma árvore e começou a lutar contra um inimigo imaginário. Provavelmente, o rival era sua própria sensação de culpa.

– Em guarda! – A esgrimista tomou um susto ao ouvir alguém dizendo essas palavras atrás de si.

– Quem é você?

– Engraçado como eu não preciso perguntar o mesmo. – disse um moço desconhecido, parecia ter a idade dela. – Meu nome é Lucas. Só queria dizer que lhe achei incrível nas Olimpíadas, apesar da derrota. Você é uma das primeiras esgrimistas brasileiras com chance real de ser medalhista e, com certeza, já entrou para a história. – Ele estava emocionado por estar ao lado de uma lenda.

– Existem maneiras melhores de entrar na história. – falou pensando em Joana D'Arc.

– E piores também. Eu adoraria entrar para história desse jeito, mas não sirvo para atleta. – Deu de ombros. – Mas fico feliz em poder dizer que tenho talento para arte. – Sorriu satisfeito.

Ao ouvir essas palavras, o alívio invadiu seu corpo. Ela tinha medo de ter decepcionado toda uma população que colocou fé em suas habilidades. Porém, aparentemente, não tinha errado feio o suficiente a ponto de perder totalmente seus fãs. Era como um calmante saber que ao menos uma pessoa ainda admirava o que tinha feito.

– Posso ensinar uma coisinha ou outra se quiser. – disse mais tranquila.

Terezinha ensinou alguns golpes básicos ao rapaz com uma técnica muito interessante envolvendo dança. Era necessário apenas uma espada e possibilitava prática mútua de movimentos da esgrima e da dança. Desse modo, finalmente conseguiu reencontrar o prazer naquilo que fazia. Pela primeira vez em anos, não havia mais cobrança diante de si. Apenas diversão. Lembrou-se das brincadeiras de infância, quando seu irmão ficava surpreso com o quanto de talento ela tinha e pedia umas dicas. Sentia-se tão bem com o irmão como, agora, com Lucas.

– Desiste, eu disse que não servia para isso. – disse Lucas rindo após desequilibrar-se e cair por errar um movimento.

– Ao menos não esperam que sirva. Enquanto estamos rindo aqui, devem estar queimando-me viva como fizeram com Joana D'Arc. – disse ela voltando à triste realidade.

– Todos nós, eu incluso, estamos muito felizes com seu desempenho. Foi o mais longe que um atleta brasileiro já alcançou e, daqui a 4 anos, há mais. – disse empolgado.

– Isso é o que você diz. Nada me garante que seja o senso comum.

– Já olhou suas redes sociais? – disse enquanto entregava-lhe o celular na página de login de alguma rede.

Suando frio, a esgrimista preencheu os dados necessários e entrou. A notificação mais recente era justamente a aparição de um novo seguidor: Lucas. Ela sorriu para ele e recebeu um incentivo para ver as mensagens e menções. Para o alívio de Tereza, realmente a maioria era de apoio.

– Viu? Todos adoram você. Só precisa continuar treinando para fazer melhor depois. Você ainda é bem jovem. E eu, com certeza, vou ser o primeiro a dar os parabéns quando chegar aqui com a medalha. – disse de forma acolhedora.

– Ah, não fala assim que parece se importar de verdade. – Riu tímida.

– E o que preciso fazer para provar consideração genuína? Será que levá-la para lanchar é o bastante?

Ao escutar esse convite, ela ficou surpresa. Apesar de terem experimentado um momento alegre e extremamente relevante para levantar o astral da jovem, não imaginava que tivesse tanto significado para o outro. Contudo, isso deixou-a feliz, pois evidenciou que o sentimento bom da companhia dele foi recíproco. Um sinal da Santa Joana D'Arc, talvez?

Olhando novamente para o jovem à sua frente, só conseguiu pensar no quanto gostou desse sinal. Lucas foi capaz de animá-la como nem sua família foi. Saber que alguém de fora gostava dela era todo o necessário para enfim encontrar a paz.

Entendendo errado e acreditando haver se precipitado, o rapaz completou:

– É o pagamento pelas aulas de esgrima. – Ele justificou sem jeito. – Mas se gostar da minha companhia e quiser repetir só pela experiência depois... – insinuou sem esperança.

– Eu entendi o seu objetivo e acho que está no caminho certo para alcançá-lo.

Sorrindo, deu um beijo em sua bochecha e segurou em sua mão para puxá-lo em direção a uma padaria. Enquanto corria para acompanhar o passo da atleta, Lucas sentia-se nas nuvens. Afinal, não havia apenas conseguido um encontro com a grande esgrimista, mas também com uma pessoa cheia de espírito. 

Total de palavras: 2920

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