35. O campeão da Névoa

— Quero que traga até mim o responsável por isso. — A voz grave e alterada chegou até mim, na escuridão de meu sono quieto. — Quero que arrastem quem foi o responsável pela informação de que a rainha estaria lá, por todo o caminho até aqui, e se ele ainda estiver o azar de estar vivo quando chegar aqui, vou arrancar cada tripa que esse infeliz tem no corpo.

— Sim, vossa majestade. — Alguém respondeu.— Vamos procurá-lo imediatamente. 

— Eles agora sabem da nossa intenção, declararam guerra. E por qual motivo? — O rei tornou a falar. — Por nada, apenas perdemos com aquele ataque.

Eu estava novamente no porão escuro do que acreditava ser o castelo do rei de ouro. Observei cada passo do rei vestido em trajes brilhantes e dourados, com um soldado com armadura bonita ao seu lado.

— Conseguimos o anevoado. — O soldado falou. — Vão conseguir acordá-lo a qualquer momento.

Imediatamente o humor do jovem rei mudou, e ele deu um sorriso satisfeito.

— O campeão da névoa retornará. — Citou. — Esses livros antigos nunca estiveram tão corretos.

Pulei da cama estreita assim que me dei conta de que estava dormindo. O campeão da névoa retornará. Me lembrei das palavras, que já tinha ouvido em algum lugar.

No dia anterior eu tinha entrado oficialmente na academia como mulher. Apenas algumas pessoas tinham me visto, e Kareno imediatamente foi capaz de pensar em uma desculpa para que eu não fosse acusada de fraude. Agora eu deveria ser chamada como Lorilae, o velho tinha anunciado.

Meu cabelo solto e bagunçado, estava alguns dedos maior do que costumava usar, pelos meses que tinha passado sem cortá-lo. Penteei os fios com a mão e me enfiei na armadura que tinha comprado na vila branca, sem deixar de prender firmemente Estupidez em minha cintura.

Quando finalmente sai do quarto, o sol ainda nem ao menos tinha saído.

Enquanto dava passos largos para biblioteca da academia, vasculhava minha memória em busca das palavras que tinha ouvido saírem da boca do rei do ouro. Como um estalo os versos da canção antiga que os mercenários cantavam quando meu pai estava bêbado demais para reparar, ressoou em minha memória. Cantarolei a música baixinho, para ajudar minha memória um pouco nebulosa.

A passagem de pedra leva a ancestralidade,

A antiga cidade traz a lembrança,

Cidade destruída duas vezes,

Cidade arrasada, três vezes,

Sangue e morte, Chamas e caos,

Cidade destruída duas vezes,

Cidade arrasada, três vezes,

Sua glória há de retornar,

Mas tenha cuidado, estanho e azuli,

A morte chegará novamente,

Cidade arrasada três vezes,

O campeão da névoa retornará.

Quando meus pés chegaram a soleira da porta de madeira da biblioteca, busquei Modesh com minha mente apenas para me dar conta que ele já estava lá. Observando. Eu não precisei dizer uma palavra.

Procure por Escritos do general Samo.

General Samo?

Vai entender quando ler.

Suspirei, era verdade que minha leitura tinha melhorado bastante nos últimos meses, mas não tinha certeza de que conseguiria entender o significado por trás de palavras muito complicadas.

Entrei na biblioteca vazia, um homem magro, vestido em vestes mais largas do que necessário estava em um canto, com o rosto apoiado em um enorme livro acinzentado. Me aproximei, e reconheci o homem como o mestre Polan, responsável pela biblioteca, ele dormia ruidosamente sobre o livro aberto. Esbarrei de forma proposital em uma mesa próxima, deixando alguns livros empilhados caírem no chão. Eu não tinha ideia de como achar o livro em meio a tantos outros, mas se tinha alguém aqui que saberia, esse era Polan.

O mestre pulou em sua cadeira, e esfregou os olhos. Me abaixei e comecei a recolher os livros caídos, colocando-os cuidadosamente sobre a mesa.

Ah! Se não é o garoto, que na verdade era garota. Polan levantou de sua cadeira, e caminhou em minha direção com um sorriso. 

Ele ajeitou as vestes amarrotadas e olhou para o enorme relógio de água feito com magia do equilíbrio no centro da biblioteca.

O que a traz aqui tão cedo? Perguntou, tentando conter um bocejo.

Estou procurando um livro. — Falei, tentando dizer exatamente o que ele queria ouvir. As palavras educadas eram difíceis de formular, e pareciam artificiais em uma boca. Mas eu tinha que conseguir a ajuda dele. — Estava lendo registros das guerras, e me deparei com um impasse, e então não podia esperar nem mais um minuto para vir. Desculpe se te atrapalhei, mestre. Espero que não seja um problema.

Polan coçou a cabeça, mas assentiu.

A biblioteca só abre em algumas horas, mas eu já estive inúmeras em seu lugar, jovem, sei como a busca pelo conhecimento pode ser... inquietante. E como é amiga do príncipe Kiram... Sobre o que procura?

Engoli seco.

Sobre o campeão da névoa.

O mestre Polan levantou uma das sobrancelhas.

Interessante. Falou.Principalmente em tempos como esse, quando cada vez mais anevoados estão sendo criados. Acho que a pergunta correta que deveria lhe fazer é por que esta interessada na história dos mil dias de terror. Mas não irei me dar ao trabalho. Jovens devem ter suas fixações estranhas. Eu, particularmente, tinha algumas delas.

Temos alguns livros nesse sentido. Ele contou, fazendo um sinal para que eu o acompanhasse pelas  estantes enormes. Todos eles milenares, contos e relatos de quanto essa terra era ainda dominada por dragões, e generais humanos lutavam para manter suas cidades longe de seu fogo destruidor. Uma época que os últimos dragões de diamante cruzavam os ares com a maldição da infertilidade. Quando os cinco reinos ainda não existiam. Foi no meio da guerra constante, e fronteiras incertas que ele foi marcado. E os mil dias começaram. Temos Salinir, Samo...

Samo. Respondi prontamente.

Polan assentiu, e levou a mão até a estante, puxando um pequeno livro vermelho.

Faz sentido. Ele foi o primeiro a dizer as palavras que todos os outros repetiram.

Quais palavras?

Polan deu uma risadinha e balançou a cabeça.

O campeão da névoa retornará. Ele falou. Um aviso que deixaram para as próximas gerações. Mil anos e ainda não aconteceu, e não acho que acontecerá tão cedo.

Franzi o cenho, me lembrando do sonho que tinha tido. Polan já tinha virado as costas para me deixar com meus estudos quando o chamei novamente.

Por quê? Perguntei. Por que acha que não acontecerá tão cedo.

 Mestre Polan me olhou como se não tivesse entendido minha pergunta, e depois respondeu divertido.

Ora, jovem, não existe, em todos os cinco reinos, magia capaz de reviver os mortos.

As próximas horas eu passei tentando decifrar as palavras antigas de um general heroico. Um dos cinco responsáveis por ganhar a guerra contra o campeão. Um dos cinco que fundaram os reinos. Samo, o primeiro cavaleiro de dragão.

Li suas palavras desesperadas sobre quando os ataques da névoa começaram a se tornar mais frequentes, exatamente como agora. Acompanhei o terror de saber que um pessoa conseguia organizar os anevoados, fazer com que eles o obedecessem, com que eles marchassem. Li sua história de quando presenciou seu pai ser assassinado pelo campeão quando o antigo general tinha tentado a via da diplomacia.

Não busco ouro. Foram as palavras dele. Busco sangue. Destruição. Vingança.

Ele tinha uma marca marrom. Samo viu antes de fugir. Como a letra "i" escrita em letra cursiva, e deitada em uma das temporas. Vi a marca desenhada em seus escritos.

Li, por fim, sobre uma general incrível, que depois se tornou a primeira rainha de Rubi. Alintanie, a general que matou o campeão e pôs fim ao sofrimento. Havia pouco sobre a luta dos dois, o que Samo contou foi o que ele ouviu falar, já que lutava em outra parte do campo de batalha. Alintanie tinha um dragão dourado. O campeão da névoa, tinha domado o último de diamante. Uma batalha épica que tinha sido observada por poucos. E então li as palavras que tinha ouvido tantas vezes. O campeão da névoa retornará.

Essa esse homem que o rei do ouro queria reviver. Um homem que tinha o único objetivo de causar terror. O escolhido pela névoa, a força maligna. Eu precisava falar com alguém sobre isso.

— Lorilae. — Ouvi a voz de Kiram me chamar. — Você não apareceu nas lições...

Me levantei abruptamente da cadeira, e encarei Kiram, que foi esperto o suficiente para saber que algo tinha acontecido.

— Vamos. — Chamei. — Temos que ver Kareno.

Kiram e Kareno me encaravam os com olhos arregalados quando contei tudo que tinha visto em meus sonhos, eles já tinham lido os livros varias e varias vezes. Todos ali sabiam do General Samo. O primeiro rei da Madeira.

Os cinco generais que triunfaram durante os dias de terror separaram as terras em cinco reinos, onde cada um governaria, ajudando dragões e homens a se recuperarem de dias sombrios.

Sempre soube que aquele jovem estava planejando uma guerra. Mas não pensei que fosse tão longe. Kareno disse, balançando a cabeça. A ressurreição do campeão marcaria o inicio do fim de tudo que conhecemos. Traria uma época de terror. Medo. Ele será o primeiro a morrer se algo assim acontecer.

Mas algo assim não é possível. A antiga rainha de rubi matou o campeão. As lendas contam que a névoa não tem forças para marcar um outro. Kiram argumentou. E não existe magia para reviver mortos.

É verdade que a névoa não poderia marcar outro campeão. Kareno falou. Não é assim que sua magia é forte. Mas ela é forte.  Não existe de fato magia em nenhum dos cinco aspectos do equilíbrio capaz de reviver mortos. Mas alguns escritos proibidos, de antigos magos que louvavam a névoa antes dos dias de terror, contam que magia do equilíbrio não é a única que humanos podem usar. Existe uma pessoa que é responsável pelos estudos da magia da névoa, buscando meios de reverter um anevoado. E essa pessoa está do lado do rei de ouro nesse momento. O homem que viu, e ouviu falar em seus sonhos, é um grande mago do clã.

Eu posso sentir, Lorilae. A magia estranha se levantar.

Vou para o reino de ouro. Kareno falou decidido. Vou acabar com isso antes que comece.

Vou com você. Ouvi uma voz fraca dizer, um homem magro saiu detrás das estantes largas do escritório do reitor.

Lino. Reconheci. Kareno bufou e revirou os olhos.

Você de novo! Ele disse. Já deixei claro que não estou tomando aprendizes. Não me importa por quanto tempo me procurou, ou o que passou nas terras sem lei...

Vi o mago franzino engolir seco antes de falar.

Meu pai é um nobre na capital de ouro. Eu cresci e vivi lá durante grande parte da minha vida. Sei como entrar sem chamar atenção.

Kareno estudou Lino por alguns minutos antes de decidir.

— Não faça nada errado. 

O velho então se virou para mim. Seu olhar duro se amoleceu quando percebeu minha confusão.

— Isso é um problema meu para resolver. A você resta uma escolha. Pode ficar aqui, ou pode ir embora, ter a vida que sempre me disse que queria ter. Viajando e conhecendo os cinco reinos. Se tudo der certo você vai ser livre para viver como quiser. Mas se algo der errado, Lorilae, a guerra chegará a todos os cantos dessas terras. Não poderá mais fugir de responsabilidades.

Me deixe ir com você. Decidi. Ele teria mais chances ao meu lado, e de Modesh.

Esse é meu caminho para trilhar. E tenha certeza de que não sou indefeso.

Assenti relutante.

Vamos partir imediatamente.

Oláaaaaa, muitas revelações bombásticas aquiiiii! Gostaram?

Como andam as teorias?

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