33. A queda do Assassino de Racon

Esse capítulo pode conter cenas de violência explícita.

Da bonança, nascem os ambiciosos. Da ignorância, nascem os estudiosos.

 Do desespero, nascem heróis. Da paz, nasce a guerra. - Estudos sobre o equilíbrio - Corvena de Nova Luskar.

Eu nunca tinha sentido nada como aquilo. Minha mente parecia cada vez mais pesada e sonolenta, sendo guiada pela magia a um imenso poço escuro e desconhecido. Uma imagem bruxuleou a minha frente.

Eu estava no meio do nada. Pisquei algumas vezes quando os sons atingiram meus sentidos antes mesmo de qualquer imagem. Homens berravam um último grito de guerra. Escutei um barulho ensurdecedor de inúmeros passos pesados em uma corrida mortal, em minha direção. O som de metal batendo a medida que os passos avançavam deixando tudo ainda mais assustador. Quando minha visão desembaçou já era tarde demais para que eu fizesse qualquer coisa. Dois exércitos enormes se chocaram a minha volta. Em uma confusão de tripas, metal e sangue.

A guerra não era organizada, como contavam as histórias.

O céu vermelho anunciava o nascer do sol. A fumaça cinzenta contava a história da cidade inteira que ainda queimava no horizonte, com as bolas de fogo que eram arremessadas pelas catapultas para dentro da muralha já destruída. Eu reconheci aquele evento, aquele lugar. O cerco de Ístar. A última cidade ainda no domínio do rei de estanho no fim da guerra. No acampamento alguns diziam que apenas aquele cerco durou mais da metade do período da guerra, tamanha era a auto suficiência e riqueza da cidade. Uma lenda, eu julgava.

Apesar da dormência que tinha sentido minutos atrás, ali eu estava completamente desperta, e apesar de ciente de que era uma visão, não podia deixar de tentar desviar dos soldados que lutavam até a morte bem ali, ao meu redor. O cheiro de sangue era insuportável.

Gritos e urros ecoavam na planície, sendo ultrapassados apenas pelo barulho das espadas, e das catapultas ao acertarem a cidade, eu não ousava sair do lugar. E mesmo eu, assassina de Racon, fiquei nauseada ao ver crianças que não podiam ter mais que dez anos, portando espadas e armaduras grandes e pesadas demais, apenas para serem estripadas pelas laminas do que eu julgava ser o experiente exército da Aliança entre os demais reinos.

Crianças quando já não existiam homens suficientes para lutar. Mortes, sangue, o custo da ganancia de um rei e uma corte de tolos.

Eu já não aguentava mais presenciar aquele horror, e vez ou outra tentava evitar alguma morte, apenas para me lembrar que aquilo não passava de uma lembrança do que já tinha sido feito, do sangue e das lágrimas que já tinham sido derramados.

Um grito angustiado de recuar, seguido pelo som fúnebre de uma corneta, fez meus pelos se arrepiarem, quando o exército da Aliança não poupou nem aqueles vencidos que imploravam por piedade.

Um brilho suave levou minha atenção para a grama praticamente destruída pela batalha. Uma moeda pequena e diferente jazia ali, no meio da confusão da guerra. O brasão da união dos cinco reinos estampada na face virada para cima assim como o tolis estampava atualmente. Aquele era o tolis de estanho, percebi, a moeda oficial dos cinco reinos, fabricada no reino de estanho, uma das razões para a guerra.

O símbolo de união, que representava o massacre de um reino, por conta de um rei que buscava governar sobre todos.

Engoli em seco e suspirei de alivio quando a cena finalmente mudou.

Dessa vez eu estava no meio de Ístar, exatamente na frente da mansão destruída que era agora a sede dos contrabandistas de Aldor que eu tinha tido o prazer de conhecer, e matar.

Uma mulher alta, com cabelos longos e trançados, vestida com roupas luxuosas e bufantes, saiu correndo da casa quase em ruínas, e parcialmente consumida pelo fogo. Ela estava com um semblante desesperado, apertando junto ao peito, um pequeno embrulho vermelho. Assim que estava perto o suficiente para ver, pude perceber que o embrulho guardava uma criança, um bebe tão pequeno que podia muito bem acabado de ter nascido.

Um jovem em seus dezesseis anos saiu logo depois da mulher, ajudando uma criada com um baú pequeno até a carroça que os esperava na frente da casa.

— Eu devia estar lá! — O jovem gritou para a mulher assim que se aproximaram. — Eu devia estar lutando com meu pai, com meus irmãos e com todo meu povo!

Ele chorava. Ela chorava.

A mulher agarrou o braço do jovem com toda força que lhe restava, quando este fez menção em correr em direção ao que restava do longe portão dianteiro da cidade.

— Se morrer está tudo acabado. — Ela falou, entre os soluços. — Se você morrer, tudo isso perde o sentido. Eles estão lá, para que possa fugir, e é isso que faremos. Ouviu?

O garoto balançou a cabeça, e desviou o olhar para o pequeno embrulho nas mãos da mulher que aparentava ser sua mãe.

— Ouviu, Karan? — Ela tornou a perguntar, dessa vez mais firmemente. — Não estou ordenando isso apenas como sua mãe, mas como sua rainha. Nós vamos sair daqui, e está proibido, mesmo a qualquer circunstância a lutar nessa guerra. Você deve viver.

O jovem Karan encarou por um momento os olhos de sua mãe e rainha antes de concordar.

— Como quiser, majestade.

— Aqui. — Ela falou. — Leve sua irmã para dentro da carroça.

Ela ordenou, e ele fez.

— Sem tolis não conseguiremos passar pelas fronteiras. — Ela falou para a criada que ainda aguardava por instruções. — Entre com eles na carroça, e conte até sessenta, se eu não voltar, tire-os daqui, nem que precise usar magia em Karan. Tudo bem?

A criada arregalou os olhos.

— Só eu sei a localização do cofre, não temos tempo, será mais rápido assim.

A mulher franzina assentiu, e entrou na carroça sentando-se bem ao lado de Karan que levava sua irmã desajeitadamente.

A rainha entrou na casa novamente, usando, com esforço aparente, magia para desviar de destroços, e evitar a parte que as chamas tinham tomado.

— Mãe! — O jovem príncipe gritou do lado de dentro da carroça. — Forçando uma barreira invisível, para sair da carroça. Ela já usou muita magia, com a explosão, Lara, ela não vai aguentar.

Um som alto anunciou a chegada do terror. E a carroça disparou para a passagem traseira da muralha, deixando para trás sua rainha. Olhei para o céu esperando a visão daquilo que o som tinha já antecipado. Mas nada poderia me preparar para o que vi. Centenas de dragões voavam sobre Ístar, e mesmo não estando ali de verdade eu senti o calor escaldante quanto todos eles cobriram a cidade de fogo, exterminando todos que ainda não tinham a sorte de fugir. E pondo um fim ao pouco exercito que ainda restava. Olhei em direção a carroça que agora sumia de vista, uma barreira fina de magia, a protegia do fogo que descia dos céus. Até que as sombras da floresta forneceram toda a cobertura que precisavam.

Alguns dragões caíram do céu, mesmo sem ninguém atacá-los. Aqueles que restavam voaram para as montanhas.Gritos assustadores ecoavam na cidade a medida que os seus habitantes queimavam.

O silêncio que se seguiu foi ainda mais amedrontador. O exército não comemorou a vitória. Tudo o que não era pedra em Ístar queimou.

Trazer de volta o passado? As palavras que tinha dito horas antes ressoaram em minha mente. Lembranças que o vento ainda não esquece. A voz da mulher que antes nos tinha oferecido comida respondeu mais uma vez.

Os tambores recomeçaram a tocar. Ou talvez nem ao menos tinham parado. E outra lembrança veio em minha mente. Eu reconheci o lugar, porque era exatamente a mesma planície das lembranças que tinha visitado. Mas dessa vez não vi caos de espadas e mortes. Vi a mim mesma, com cabelos tão curtos que podia-se ver o formato de minha cabeça. Eu tinha quinze anos de idade, e caminhava pela planície da morte, meus sapatos furados eram a única coisa que impedia meus pés da lama criada pelo dia chuvoso.

Quem me visse daquela forma veria um menino, de olhar apático e vestido tão mal quanto um mendigo. Carregando sua fama como se não pesasse e importasse mais do que uma pena de galinha, ninguém imaginaria que aquele era o grande e terrível assassino de Racon.

Uma pequena cabana improvisada se juntava a tantas outras que se amontoavam do lado de fora do que tinha sido uma grande cidade. Eu já sabia o que fazer quando andei cautelosamente até a cabana. Tinha que observar, até o anoitecer, e então fazer o serviço.

Minha lembrança daquele dia era nebulosa, mas eu me lembrava qual era meu contrato. Matar um dissidente dos contrabandistas. Um homem que tinha escapado de Aldor, e fugido com uma quantidade significativa de tolis.

Vi minha versão mais jovem dar um passo em direção ao pequeno mercado que se estendia na parte de trás da cabana que era seu alvo, e então parar, e se abaixar para cavar algo da lama que tinha chamado sua atenção. Observei a lama ao mesmo tempo que aquele fragmento de memória retornou a minha mente. O tolis de estanho, o mesmo que tinha sido derrubado por algum soldado quase cem anos antes. Vi a mim mesma pegar a moeda e avaliar seu valor, torcer o lábio, e então jogar sobre o ombro o que julguei não ser nada além de lixo.

Minha versão mais nova continuou andando, e na varanda daquela cabana ela finalmente viu o que buscava. Seu alvo. Um homem barbudo com roupas surradas estava sentado descascando batatas observando o movimento do mercado a céu aberto.

O assassino de Racon parou encostada a uma estaca que delimitava o começo da pequena vila improvisada, e fingiu estar ocupada limpando a adaga meio enferrujada que levava. O assassino de Racon não viu o que eu vi naquele momento. Uma criança pequena, correndo aos tropeços para os braços de seu pai que descascava batatas. O pai ajeitando a boina verde na cabeça de seu filho quando este quase caiu ao tentar escalar a cadeira. O menino de boina verde. Eu reconheci e meu coração quase parou.

Uma mulher apressada saiu da cabana, sua preocupação se transformando em um sorriso quando viu a cena de seu marido e seu filho. Ela se abaixou repousando um beijo amoroso em cada antes de voltar para dentro novamente.

Eu não tinha reconhecido o homem na foto, com a falta de barba e roupas sujas. Mas eu reconheci o rosto da mulher e a boina verde da criança.

Por isso, tudo pareceu desabar ao meu redor quando me lembrei do que tinha acontecido naquela noite. E vi tudo acontecer novamente.

Vi quando o homem deixou sua mulher e filho dentro da casa para checar se alimento tinha chegado na cidade. Vi quando o assassino de Racon tomou aquilo como a oportunidade perfeita. Vi o desespero no olhar do pai quando o assassino o derrubou longe da vista de qualquer um, e vi seus lábios implorarem. Implorarem por ele e por uma família que o assassino não tinha visto. Por uma família que aquele assassino não entendia.

Vi o assassino cortar o pescoço do homem com uma frieza surpreendente. Eu vi a mim mesma matar aquele pai.

Meu coração se afundou, e minha garganta se apertou. Quando gritei para mim mesma. Gritei para que parasse.

Vão fazer você ver. As palavras que Modesh tinha dito voltaram a minha mente.

E fizeram. Depois daquele homem, vi cada morte, cada suspiro por misericórdia. E cada lágrima derramada. Alguns, escorias que mereciam a morte que lhe causei. Outros, tantos outros, como aquele o pai do menino de boina verde. Me senti banhada em sangue, quando as vozes dos que tinha matado sussurravam em meu ouvido. A imagens se tornaram mais nebulosas, mas o sangue ainda me cobria, me sufocava. As vozes ainda imploravam pela vida.

Quando finalmente a magia me libertou, não pude abrir os olhos, encharcados. Meu rosto molhado. O que achei ser sangue, eram lágrimas grossas e pesadas. Algo me segurava firmemente, impedindo meu corpo de tombar para frente. Controlando os solavancos que meu corpo tremulo dava em minha inconciência.

— Estou com você. — Eu ouvi baixinho, enquanto minha mente ainda pairava nas lembranças das mortes que presenciei, as que causei e a dos soldados do cerco de Ístar.

Os braços que me cercavam se tornaram ainda mais apertados quando chorei ainda mais, segundando um grito que ameaçou sair de minha garganta.

Quando finalmente minha mente saiu das visões, quando as vozes pararam de sussurrar em meu ouvido. Voltei a ver a cabana da vila branca. Kiram me abraçava, percorrendo com sua mão direita minhas costas lentamente, em uma tentativa de me acalmar.

Meu choro cessou quando recobrei totalmente a consciência, e por mais confortável que os braços de Kiram estavam a minha volta, me desvencilhei de seu aperto. Ainda controlando minha respiração.

Fazemos o que precisamos fazer para sobreviver. A voz de Modesh me pegou de surpresa.

Você viu?

Sim. Não consegui me comunicar, mas pude ver tudo. Eu já conhecia o que é.

Ele conhecia, lembrei, pensando o que tínhamos compartilhado quando fomos entrelaçados.

Não devemos pensar sobre o que fomos ou fizemos, ainda mais  quando em nome da sobrevivência. Tenho certeza de que não serão as últimas mortes que vai causar, pelo mesmo motivo. Devemos nos perguntar o que queremos ser e fazer no futuro, Lorilae.

— Estava preocupado, Ailin. — Kiram falou, olhando profundamente em meus olhos.

Demorei algum momento para responder Kiram, que levou sua mão quente para apertar a minha.

— Me chame de Lorilae.

Gentee, tou abaladíssima com esse capítulo, quem ai ta também?

Pelo amor de todos os cinco reinos me digam o que acharam dele, pq vai ser bem importante para mim!

Sei que pode ter uns errinhos pq ficou enorme e não deu tempo de fazer revisão ainda, então me desculpemmm.

Obrigada por lerem!

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