2. Um contrato




Assim que entrei na maior tenda do acampamento, meu rosto já não demonstrava nenhuma emoção.

Eu não era a única naquele lugar, Urei estava deitado em um punhado de peles, beijando ferozmente uma das prostitutas do acampamento. O porco estava afogando as mágoas da derrota bem ali na morada de meu pai. Racon sempre deixou claro que preferia o sobrinho à sua única filha de sangue, mas por algum motivo, ainda me mantinha viva.

Era óbvio que eu era muito lucrativa para ele, a minha habilidade de completar os contratos mais difíceis e com as maiores recompensas, somadas ao terror que o som que meu nome provocava, eram algo que talvez, Racon não desejaria perder. Mesmo assim, ter uma primogênita era uma vergonha para um chefe, uma que ele fez questão de esconder.

A tenda enorme estava lotada de comida, e os companheiros mais próximos de meu pai, desfrutavam o banquete e mulheres pagas, enchendo o lugar de cheiros e sons, que aprendi a ignorar.

— Eilin! — Ouvi o homem enorme no centro da tenda dizer, tirando sua atenção dos seios de uma mulher. Racon. — Tenho um contrato para você.

Ouvi uma risada baixa vinda de Urei que agora desprezava as mulheres para se aproximar de onde eu estava parada. Pelo olhar arrogante em seu rosto, estava claro que ele não tinha contado sobre sua derrota.

— Antes de ir, por que não se junta ao banquete? — Urei falou, sua voz soando como o sibilo de uma serpente. — Estamos comemorando o javali que cacei, me rendeu belos troféus.

Ele apontou para o ferimento feio em seu rosto. O ferimento que eu causei.

— Urei. — Racon chamou preguiçosamente, sem tirar os olhos dos meus. — O contrato deve ter início imediato.

O jovem se calou imediatamente e eu sorri.

— Apenas me diga quem é que deve morrer. — Falei, arrancando uma risada de meu pai.

Os mercenários de Racon eram conhecidos por pegar todo tipo de trabalho, desde cuidar de pequenos furtos e feras que incomodavam viajantes, até matar por tolis. Mas os contratos que meu pai separava para mim eram sempre os mais cruéis, os mais difíceis, e que as chances de que eu voltasse morta eram maiores do que realmente valiam sua recompensa.

Para Racon, me deixar sem tolis era quase tão bom quanto a minha morte.

— Seu contrato é de morte. — Racon falou, sem me surpreender. — E o alvo é Aldor.

Eu prendi a respiração, e controlei o xingamento que quase saiu de minha boca. Por mais impossível que fosse aquele contrato eu não poderia demonstrar fraqueza, principalmente não quando todos no lugar tinham parado seus afazeres apenas para observar a conversa. Racon estava com um sorriso sarcástico no rosto, e as mulheres ao seu lado estavam tão bêbadas e chapadas em azuli das montanhas que pareciam alheias a tudo.

— Aldor de Ístar? — Perguntei controlando o nervosismo de minha voz.

Meu pai assentiu, estudando meu rosto cuidadosamente. Aldor era o contrabandista mais famoso das terras sem lei, era ele que fornecia escravos para o único reino em que ainda eram permitidos, o reino do ouro, e era ele que controlava uma das mais importantes minas de azuli das montanhas, bem próxima de sua cidade natal, Ístar.

Diziam que ele era enormemente rico, e tinha dinheiro o suficiente para armar e treinar sua própria guarda particular. Meu pai tinha muitas vezes feito trabalhos para o contrabandista, principalmente transportando "mercadorias", mas Aldor, apesar de o mais importante, não era o único no meio, e tinha mais inimigos que podia contar. E era conhecido que os mercenários de Racon não escolhiam lados, apenas cumpriam os contratos pagos, sejam eles quais forem.

— Quantos tolis ofereceram? — Perguntei, sem dúvida Racon teria cobrado caro por um trabalho como aquele.

— Trezentos. — Ele respondeu, dessa vez ouvi exclamações de surpresa por aqueles que estavam lá, e assim como eu provavelmente nunca tinha visto nem ao menos um décimo daquela quantia, mesmo se contassem os tolis que tinham ganhado por toda a vida.

Não pude deixar de arquear levemente as sobrancelhas. Era uma missão suicida sem dúvidas, mas mesmo tendo que dar dois terços para Racon, eram tolis suficientes para sair dali, pagar minha entrada nos reinos ricos e viajar a fim de conhecer tudo aquilo que só tinha ouvido falar em histórias.

— Deve partir imediatamente. — Racon sentenciou.

Bufei com desdenho, sabendo que isso irritaria meu pai.

— Partirei em dois dias. — Respondi.

— Não me teste garoto, ou irei...

— Presumo que já aceitou o trabalho, pai. — Comecei me aproximando dele lentamente, como um gato selvagem antes do bote. — Nunca deixaria de colocar esse seu olho gordo e ambicioso tem tanto tolis, não é? E aposto que ninguém mais além de mim seria capaz, ou seria corajoso o suficiente para ir fazer o trabalho... Alguém aqui está disposto a tentar?

Esperei alguns segundos, saboreando cada ruga furiosa no rosto de Racon quando ninguém respondeu.

— Foi o que pensei. — Falei sorrindo. — Partirei em dois dias.

Quando me virei para deixar a tenda de meu pai, esperei que alguém tentasse me parar a fim de me punir pela forma a qual tinha falado, mas ninguém ousou me seguir.

Assim que saí da tenda, pude respirar direito, e caminhei lentamente pela noite até a minha própria. Com o acampamento silencioso eu podia ouvir o som da floresta próxima, relaxando um pouco meus músculos tensos. Com exceção da tenda de meu pai, ninguém mais festejava, e pelas raras servas que iam e viam com bandejas e baldes, não se via ninguém.

Aproximei-me de minha tenda pequena, que pelo menos não tinha que dividir com ninguém, meu pai não permitiria que ninguém soubesse que seu único filho era na verdade uma garota. Racon tinha tentado inúmeras vezes ter mais filhos, com mulheres diferentes, mesmo quando minha mãe ainda era viva, mas nunca tinha conseguido, alguns diziam que se tratava de uma maldição, por todas as almas que ele mandou para outra vida.

O cheiro de carne assada, cerveja e azuli, se tornou mais fraco a medida que me afastava do centro do acampamento.

Assim que passei pela entrada da tenda soube que algo estava fora do lugar, e levei minhas mãos para a adaga que levava presa na cintura. A escuridão do lado de dentro me impedia de ver, mas depois de muito treino cego, e várias contusões, não me impedia de agir caso necessário. Um mercenário precisava saber se virar no escuro.

— Eilin. — Escutei uma voz fraca e melodiosa me chamar.

Suspirei, tirando a mão de minha adaga, de repente entediada.

— Suza, saia. — Falei, com aparente mau-humor.

Suza era uma jovem bonita, era a filha de um dos braços direitos de meu pai, Allison, mas isso não impedia de ter vários homens no acampamento a cercando como abutres.

— Todos estavam falando de como bateu em Urei. Não acreditamos na estúpida história do javali. — Ela falou novamente, antes de acender uma vela que repousava na mesa ao lado de minha cama feita de madeira e palha.

Assim que a fraca luz a iluminou, meus olhos se arregalaram. Suza estava em seu vestido de dormir, com seus longos cabelos escuros e cacheados soltos caindo na altura de sua cintura.

— Vim dar-lhe seu presente de vitória. — Ela anunciou, levando a mão até o laço do vestido.

Nem ao menos pisquei quando falei com uma voz fria:

— Saia.

Ela deu um pulinho para trás, exasperada pelo tom de minha voz. A garota não seria tola de ignorar um aviso vindo de mim. Ninguém ali seria.

— Eu te desagrado? — Ela soltou, antes de sair.

Desagradava? De fato, Suza era bonita, atraente e gentil a maior parte do tempo, mas eu sabia que se cedesse a ela, alguém saberia de meu segredo. Mesmo alguém fiel, cederia sob tortura.

Quando não respondi, ela se foi e eu estava sozinha novamente. Olhei para a cama, com cobertas convidativas de peles, e comecei a sentir todos os efeitos da luta e do dia todo na forja, minhas pálpebras imploraram para se fechar, mesmo antes de me deitar, mas resisti.

Armei cuidadosamente cada uma das três armadilhas que tinha feito para me proteger durante o sono, uma próxima a porta, para me avisar caso alguém entrasse, uma próxima a minha cama e outra em lugar aleatório no pequeno espaço. Depois que terminei me livrei da maior parte do peso da armadura de couro e me deitei, sentindo a maciez das peles me embalar. Segurei a adaga firmemente antes de fechar os olhos, e cair em um sono agitado e leve.

Eu nunca realmente descansei.

***

A manhã seguinte chegou sem maiores problemas, Urei não arriscaria ir contra mim tão cedo, pelo menos não enquanto ainda tivesse machucado. Quando finalmente saí da tenda sabia exatamente para onde iria. Estava a ponto de terminar minha espada, e não sairia para uma missão onde minha morte era praticamente certa sem terminá-la.

O sol estava começando a iluminar o céu, e os poucos mercenários que estavam acordados, estavam de guarda, ou indo até o salão para comer a primeira refeição do dia. Pelo cheiro que se espalhava, deveria ser cordeiro ensopado. Meu estômago roncou, mas preferi seguir caminho antes que minha partida fosse observada por mais pessoas.

— Eilin. — Uma voz rouca me chamou, era Taru, um mercenário veterano. — Amanhã pela manhã, treino coletivo ao nascer do sol.

Eu não reagi.

— Já tenho planos. — Respondi secamente.

— Não é uma escolha, é ordem de seu pai. — Ele disse se afastando de mim.

Bufei, tomando meu caminho. Eu sabia que uma ordem de Racon não poderia ser levada levianamente, existiam momentos certos para desafiá-lo, e com certeza aquele não era um deles, não quando queria sair para o trabalho com todos os ossos de minha mão intactos.

Olhei para todos os lados quando entrei na floresta, e cada passo que dava depois disso era calculado e atento, para ter a certeza de que não era observada ou seguida. Embrenhei-me no mato fora da trilha e depois de algum tempo, estava na cabana que conhecia bem. Kareno não estava do lado de fora, e eu apenas me dirigi em silêncio até a forja.

Quando peguei a lâmina semipronta eu sorri, poderia gastar o quanto tempo precisasse com ela naquele dia. A forja já estava aquecida, como sempre. E não precisei de muitas preparações antes de analisar o metal e enfiá-lo na forja para aquecer.

Enquanto esperava, juntei algumas das coisas que precisava, enchi o tanque de têmpera, caso eu conseguisse chegar até aquela etapa, e voltei até a lâmina agora incandescente, apoiando-a na bigorna antes de começar a martelar.

Não estrague tudo.

Comecei a martelar, e assim fiquei por muito tempo, aquecendo o metal, tirando da forja e martelando, com o maior cuidado que poderia ter.

— Se continuar forjando essa lâmina vai acabar estragando-a. — Ouvi a voz de Kareno atrás de mim, quando percebi que o sol já tinha passado do meio do céu.

Dei uma última martelada antes de me virar para ele. Kareno estava certo aquela parte já estava finalizada. Pior do que alguém que não por onde começar, é alguém que não sabe quando terminar.

Deixei o martelo na bigorna e esquentei novamente a lâmina, então marquei sua espiga, o pedaço que logo seria escondido penha empunhadura, com um padrão que tinha inventado dias atrás, minha marca de ferreira, um círculo cortado duas vezes. Estudei o resultado e assenti. Tinha ficado exatamente como pensei.

Quando a lâmina se esquentou novamente, eu senti o nervosismo ameaçar tirar minha concentração. Aquela era a parte mais importante de todo o processo. Se errasse a espada podia entortar no resfriamento, ou até mesmo não endurecer o suficiente para ser usada sem quebrar em muitos pedaços.

Kareno me observava, ele sabia tanto quanto eu, que aquele metal, especialmente, precisava chegar em uma temperatura exata para que sua têmpera fosse perfeita.

Quando finalmente julguei que estava aquecido o suficiente, mergulhei a lâmina no tanque. O barulho borbulhante foi seguido de fumaça, e um fogo alto que subiu pela lâmina até minha mão protegida pela luva grossa. Tirei a espada do tanque, para meu alívio, ela estava reta. Kareno foi até mim tirou a lâmina de minha mão e com uma lima testou a dureza do fio.

— Está dura. — Ele falou.

Agora tudo que precisava era retirar todo o excesso de material, revelando o lindo padrão que demorei bastante dobrando o metal em cima dele mesmo para criar, colocar um cabo, e amolar. Quando fiz menção de ir até o rebolo, uma máquina para lixar, de pedal, o som de Kareno limpando a garganta me fez parar.

Ele não falou nada, apenas meneou a cabeça para o prato de carne e pão que tinha acabado de colocar na mesa. Suspirei, sabia que aquilo não era discutível. Kareno sempre me deixava ficar aqui, usar sua forja e me ensinava uma coisa ou outra a contragosto, mas em contrapartida eu tinha que obedecer a cada ordem velada que me dava, mesmo que fosse algo tão simples como comer.

— Acha que vai aparecer o padrão na espada? Acha que devo usar alguma solução? — Comecei. — Não percebi nenhuma rachadura, será que pode aparecer alguma enquanto limpo?

— Se você não fez nada de errado, não tem que se preocupar com nada disso. O padrão vai aparecer, não precisa usar nenhuma dessas coisas com esse metal. — O velho respondeu contrariado.

Assenti.

— Vou sair em um trabalho depois de amanhã. — Contei, começando a comer a comida do prato. — Pode ser que eu não volte, é do tipo mais perigoso que pode imaginar.

— Não sabe o que considero perigoso, garota. Se fizer tudo direito, não tem com o que se preocupar.

As coisas sempre eram daquela forma para Kareno, não importava o quão difícil era a situação, para ele tudo se resolveria se eu fizesse tudo direito, se eu não estragasse nada. Tinha sido assim para tudo que eu decidia fazer naquela forja, e com todo movimento de luta que ele me ensinava, não importava o quão ousado fosse.

— Estou quase juntando o tolis que precisamos para passar a fronteira para os reinos ricos. Esse contrato vai ser tudo que preciso para conseguir. Se eu não voltar... — Comecei ignorando o velho.

— Nem começou o trabalho e já está cometendo erros. — Ele ralhou. — Já lhe falei pelo menos uma dúzia de vezes que não preciso de seu tolis, não estou aqui por falta de opção.

— Se eu não voltar. — Repeti. — Quero que tenha cuidado redobrado, as coisas vão ficar tensas entre os contrabandistas e meu pai, e você e sua cabana estão exatamente no meio do caminho.

— Posso cuidar de mim mesmo.

Eu não discuti, mas por mais brilhante que ele tenha sido em sua juventude, Kareno agora mal enxergava um metro a sua frente, dificilmente ele daria conta de Racon, ou de seus homens.

Quando finalmente terminei de comer, voltei ao trabalho, sorrindo quando vi as primeiras marcas do padrão ondulado aparecerem na lâmina azul, eu não tinha estragado tudo afinal.

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