1. O aço azul
Era um péssimo dia para alguém como eu.
O calor sufocante apodrecia rapidamente os restos de carne jogados no chão do abatedouro. O suor, que brotava sob a minha armadura de couro, se misturava com o sangue que escorria de meus ferimentos, deixando cada movimento que fazia ainda mais pegajoso e desconfortável. O lugar fedia e o meu corpo latejava ao ser golpeado de novo e de novo, mas nada daquilo era uma novidade para mim.
— Acabe com isso logo, Jarau. — Ouvi a voz já cansada de meu primo Urei dizer ao jovem mercenário que tinha escolhido como subordinado.
Minha cabeça voou para o lado com o impacto de um soco. Grunhi e devolvi o golpe, acertando com os joelhos a virilha desprotegida de um dos jovens. Um chute na barriga me fez perder o ar.
— Como sempre, um covarde. — Falei entre fôlegos. — Não consegue dar conta de mim sozinho, Urei. Tem que chamar reforços.
Urei riu. Ele, assim como eu, sabia que os mercenários das terras sem lei não davam a mínima para honra, lutando sujo ou não, o importante era terminar um contrato com vida e ouro na bolsa.
Preparei-me para um novo golpe e quando os dois recuperaram o fôlego, partiram para cima de mim novamente. Caí no chão, sentindo meus dentes baterem uns contra os outros pelo impacto. A raiva se espalhava pelo meu sangue como óleo quente, inflamando o resto de sanidade em mim. Tomei soco após soco, sem desviar, a fúria era minha fonte de força. Minha cabeça estava entorpecida e minha pele formigou e então me cansei. Aquela luta estava entediante, enfim.
Empurrei meus quadris para frente ganhando um pouco de espaço entre mim e Urei, que tinha conseguido me pressionar contra o chão com seu próprio peso. Com um movimento rápido de pernas fiz meu primo cair para o lado. Levantei-me do chão apenas o suficiente para dar uma rápida rasteira em Jarau, e depois me estiquei um pouco mais para usar a força do meio giro a fim de acertar um soco cruzado no queixo do outro, que imediatamente caiu no chão, inconsciente.
Quando fiquei ereta, a força pulsava em meus músculos e eu não sentia nenhuma dor.
Estalei os dedos ao andar em direção à Jarau, que tinha se virado para mim, com os olhos arregalados. O corpo do jovem tremia, e suor pingava de seu rosto machucado.
— Como quer que isso aconteça? — Perguntei, virando levemente a cabeça ao encará-lo.
— Eu... Sou novo aqui. — O jovem respondeu com uma voz baixa. — Não tinha ideia... Não vou perturbá-lo mais.
Todos no acampamento sabiam da minha fama. Uma que conquistei a base de muito sangue, desespero e ossos quebrados. Para eles, eu era o cruel e implacável, Eilin, filho de Racon, o impiedoso chefe do maior grupo de mercenários das terras sem lei. Mal eles sabiam que eu era, na verdade, o que eles mais desprezavam: Uma garota, uma garota sem nome.
Minha fama e minha habilidade em matar eram as únicas coisas que os mantinha longe de mim, eram minha proteção e meu meio de sobreviver.
Dei um passo em direção de Jarau, lágrimas escorriam pelo seu rosto e seu olhar implorava silenciosamente. Mas eu continuei avançando. Jarau tentou se levantar, mas as consequências do pisão que tinha dado em seu tornozelo durante a rasteira, o fizeram cambalear e cair novamente.
— Por favor... — Ele falou baixinho, quando percebeu que eu estava perto demais. — Por favor...
Abaixei-me ao lado do jovem que se retraiu ao perceber minha proximidade, e antes que ele pudesse pensar em como se defender, torci seu pescoço, escutando o familiar estalo, que vinha sempre antes de uma morte daquela forma.
Seu corpo inerte caiu no chão, e respirei longamente, escutando o som ecoar em meus ossos. Para Eilin, matar era como respirar, para a garota sem nome, bem... Ela sabia o que era necessário. Encarei seu rosto sem vida uma última vez, guardando o pavor que vi em seus olhos ainda abertos em um lugar escondido e inacessível em minha mente.
Quando tudo terminou, era eu quem tremia.
Encarei por um momento Urei ainda inconsciente no chão de terra batida, não podia matá-lo, o protegido de meu pai era intocável e todos ali sabiam disso. Matá-lo significaria minha morte.
Andei alguns metros para recuperar a adaga que levava comigo, a coisa antiga tinha sua utilidade, mas não era suficiente para mim. Racon tinha uma espada, assim como os membros mais velhos do grupo. Armas como aquelas eram tão caras e difíceis de conseguir, que só aqueles que tinham trabalhado uma vida em contratos, tinham tolis o suficiente para adquiri-las, e, às vezes nem assim tinham sorte o bastante.
Espadas eram um símbolo, o emblema daqueles que tinha ouvido falar nas várias histórias contadas pelos membros mais velhos: Cavaleiros de dragões, a elite militar dos reinos ricos, homens que voam em bestas terríveis e que poderiam acabar com vilas inteiras com um simples sopro.
Meus olhos percorreram cuidadosamente o galpão fedido, em busca de qualquer outra ameaça, mas não puderam encontrar nada além da carne de javali que havia destrinchado e salgado pela manhã. Terminei de limpar as ferramentas que tinha usado, e dei um passo em direção a porta, ansiando pelo ar fresco que invadiu meus pulmões.
***
Assim que a sombra da floresta me atingiu, percebi onde meus pés me levavam. Não podia me dar ao luxo de visitar aquele lugar frequentemente, se Racon descobrisse a pequena cabana de madeira, iria fazer questão de esmagar seu habitante da pior forma possível apenas para mostrar o que acontecia com aqueles que ousavam chegar perto demais, e não havia ninguém para impedi-lo. Naquele pedaço de terra esquecido, não existiam reis, nem corte, nem leis.
O barulho do riacho foi seguido do som de um machado cortando lenha. O cheiro da água fresca e terra molhada imediatamente acalentaram minha pele quente, pelo curto espaço de tempo em que eu permanecia ali, poderia deixar sair toda a tensão em meus músculos, poderia fechar os olhos sem temer uma punhalada.
Assim que as árvores da floresta me permitiram a visão da clareira, deixei meus lábios se curvarem em um sorriso. O homem de cabelo e barbas brancas e curtas, franziu o cenho na tentativa de clarear a visão turva pela idade e enxergar quem se aproximava.
— Sou eu, Kareno.
Ele arqueou uma das sobrancelhas e assentiu.
— Ah. — Ele falou. — É você de novo.
A armadura de couro, o cabelo curto, e a atitude que desde que nascera tinha sido treinada para ter, nunca tinham enganado Kareno, que desde o dia que tinha me encontrado dez anos atrás vomitando as tripas por ter sido envenenada por meu próprio pai em uma de suas lições. Ele sabia que eu era uma garota quando nem mesmo eu tinha ideia do que aquilo significava.
Sorri para ele novamente, me aproximando. Kareno resmungou algo sem tirar sua atenção da lenha a sua frente, eu passei por ele, em direção a parte de trás da cabana.
— Só não ponha fogo em nada, novamente. — Ele falou, sabendo exatamente para onde eu estava indo.
Assim que dei a volta na cabana a dor em meu rosto e costelas pareceu diminuir. O fogo da forja já estava aceso, e quente, aquele velho sempre sabia quando eu viria, mesmo que às vezes demorasse meses entre uma e outra visita.
Depois de me limpar no balde de água, fui até a longa mesa de madeira e peguei o desgastado martelo que eu mesma tinha forjado anos atrás. E então a visão de algo me fez sorrir, nunca algo tinha me dado tanto orgulho quando aquele pedaço tosco de metal esticado. Depois de anos, forjando todo tipo de coisas, Kareno finalmente tinha me deixado começar a minha própria espada. E para isso, ele tinha me jogado, a contragosto, o melhor metal que ele possuía, o aço azul das montanhas de rubi. Com as palavras que eu me lembrava várias vezes ao manipular o ocre.
Não estrague tudo.
Comecei colocando o metal para esquentar na forja, e esperei algum tempo até poder ver a cor alaranjada uniforme antes de começar a moldá-la com o martelo na bigorna. Minhas costelas latejavam a cada movimento, mas eu não parei. O som das marteladas contra o metal deixava minha mente cada vez mais distante do acampamento de meu pai.
Eu perdi a noção do tempo em que fiquei martelando, e requentando o aço. Parando apenas quando a escuridão da noite que chegava me impedia de ver o que estava fazendo com clareza.
Não estrague tudo, me lembrei quando percebi que estava cada vez mais perto de terminar a espada. Repousei o metal já frio sobre a mesa novamente. Kareno, ainda contando com a pouca luz que restava do dia, chamou minha atenção com um pigarro, e indicou a porta de sua casa com a cabeça.
Tinha sido assim por todos aqueles anos.
Assenti somente e entrei na casa já iluminada pela luz vinda da lareira e de algumas tochas e velas.
A cabana de Kareno era simples com apenas um cômodo, a mobília mais sofisticada não passava de uma cama pequena feita de toras e feno. Sem que ele precisasse falar, dirigi-me até uma estante e vasculhei por entre livros antigos para encontrar uma pequena caixa de madeira antes de me sentar.
O velho tomou a caixa de minha mão e levantou meu queixo para analisar melhor o estrago que tinham feito em meu rosto, e depois pressionou no lado direito de minha armadura, fazendo-me conter uma careta de dor.
Kareno nunca tinha feito perguntas.
Ele desviou o olhar de mim para abrir a caixa, e me entregou um punhado de ervas amassadas em uma bola compacta.
Mastiguei a esfera amarga rapidamente, e engoli, Kareno balançou a cabeça e disse algo que não pude entender, como se não tivesse estado lá, um calor levou embora a dor que sentia em minhas costelas.
Ele era um mago. Um mago com uma das habilidades mais desejadas, a cura.
Dei um meio sorriso agradecida. Eu sabia tanto quanto ele, que curar algo assim tomava muito de sua energia, e se ele tentasse curar também meu rosto, desconfiariam. Além disso, ferimentos de uma luta ganha, eram um troféu naquele lugar.
— Obrigado. — Falei, automaticamente.
Kareno abanou a mão mais uma vez. E percebi que era minha deixa para sair dali. Quando deixei a cabana apenas a lua iluminou meu caminho de volta, mas de alguma forma nenhum animal tentou me atacar. Era como se até a floresta soubesse quem era Eilin, e do que ele era capaz.
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