A CANÇÃO QUE NUNCA SERÁ CANTADA
A fogueira iluminava os dois olhos amarelos que, apesar de pertencerem a um humano, tinham fendas como as de um gato. Talvez humano não seja o termo mais apropriado, devido à todas as "provas" que aquele ser teve que passar quando criança. "Mutante asqueroso" era o apelido mais frequente que ele escutava quando passava por uma vila ou entrava numa taverna.
Propositalmente dilatadas, as fendas felinas observavam atentamente o escuro em volta da fogueira. O vento sibilava forte entre os galhos das árvores e, mesmo os mínimos ruídos, eram escutados pelos ouvidos aguçados do bruxo. Este é o termo que se refere a essas pessoas que foram melhoradas e preparadas para se tornarem caçadores de monstros.
É bem verdade que todo esse nojo que as pessoas sentem por bruxos tem diminuído. Os feitos do bruxo Geralt, de Rívia, se tornaram famosos. O motivo é que ele, diferentemente dos outros bruxos, não se importava apenas com moedas. Apesar de todo o treinamento, ainda restava um coração quase bondoso.
Muitos anos de prática deram ao bruxo de cabelos brancos experiência suficiente pra saber que algo não estava certo naquela floresta. Não demorou muito até escutar o primeiro uivo de uma matilha. Sua audição podia captar desde a ofegante respiração dos bichos até as batidas de seus corações.
Pelo o que pôde perceber, era uma matilha grande. Dez lobos que, provavelmente, sentiram seu cheiro e perceberam o clarão da fogueira. O fato de eles não terem vindo atacar o bruxo era estranho. Mais estranho, ainda, foi o grito horrendo que Geralt ouviu logo após descobrir que havia um coração humano batendo no meio da matilha. Ele se levantou, pegou a espada de prata e saiu em direção à origem do grito.
Enquanto andava, pegou em seu alforje um pequeno frasco que continha um líquido esbranquiçado. Tomou todo o conteúdo em um gole, parou alguns segundos até que fizesse efeito e agora ele via a noite como um dia.
Outro grito ecoou junto ao vento, mais assustador e mais longo. Os cabelos brancos, à altura dos ombros, esvoaçaram quando o bruxo apertou o passo. O som dos lobos estava cada vez mais perto.
Após alguns minutos, Geralt conseguiu enxergar, ainda sob o efeito da poção, vários vultos numa clareira adiante. Uma tocha quase apagada mostrava que alguém estava encolhido aos pés de uma árvore enquanto os lobos pareciam torturar sua presa com medo antes de atacá-la. O bruxo via tudo claramente e avançou sem medo no meio da matilha, desferindo o primeiro golpe de sua espada o qual decepou a cabeça de um lobo fedorento que havia avançado em sua direção.
Um bafo quente chegou bem próximo ao seu rosto, mas foi tempo suficiente para o bruxo desferir o sinal de Aard e jogar seu agressor para trás com o impulso telecinético. Mais três golpes de espada, menos três lobos vivos. A pessoa deitada no chão reagia a cada silvo da espada, como se fosse ser atingida a qualquer momento, escondia o rosto e se encolhia ainda mais. Geralt se movia entre a matilha com a agilidade de um ladrão, se esquivando e manejando a espada de forma tão natural que nem parecia se esforçar.
Apesar de toda a sua destreza na batalha, um dos lobos conseguiu abocanhar sua panturrilha, causando grande dor pelas enormes presas que o animal tinha. Em um acesso de fúria, Geralt matou todos os lobos restantes quase que num golpe só, com exceção do que estava agarrado à sua perna. O animal parecia ser maior do que os outros e havia um estranho brilho em seus olhos. A bocarra expelia saliva misturada com o sangue do bruxo a cada bufada ofegante.
Eles se rodearam durante alguns segundos, até que Geralt percebeu que o efeito da poção de gato, que o fazia enxergar no escuro, estava acabando e isso o deixaria com uma desvantagem enorme. Ele precisava agir rapidamente e acabar com aquilo de uma vez por todas. O lobo pareceu ter entendido que algo estava errado e começou a rosnar com mais força. O animal avançou e bateu com as patas no peitoral do bruxo que caiu de costas pro chão. Instintivamente, Geralt se protegeu com o braço o qual levou uma mordida no lugar do pescoço.
A situação já tinha passado dos limites, Geralt se perguntava se estava ficando velho demais ou se era apenas o cansaço acumulado. Uma matilha de lobos não era nada perto de matar estriges ou quiquimoras, mas o lobo já o tinha mordido duas vezes. Ele não podia negar que aquele animal era um pouco diferente dos outros, com certeza era o líder da matilha, mais forte, mais ágil e mais violento. Aquela luta já tinha se estendido demais, estava na hora de acabar.
O bruxo, ainda defendendo seu rosto e pescoço, puxou uma adaga que estava presa em sua cintura e desferiu um golpe tão certeiro que pareceu milimetricamente calculado para furar a pele peluda do lobo diretamente na artéria de seu pescoço. O sangue jorrou tornando escarlate uma boa parte da grama verde. O lobo guinchou de dor e, cambaleando, sumiu floresta adentro.
A essa altura, a pessoa que estava encolhida percebera que todos os lobos haviam sido liquidados. O rapaz se levantou com uma certa dificuldade, já que seus joelhos ainda não conseguiam se firmar completamente. Ele olhou horrorizado para os corpos dos lobos, alguns decapitados e outros com as tripas caindo do abdômen, mas todos cobertos de sangue. O cheiro no ar parecia quente de tão palpável que era, uma mistura de sangue, pelos molhados e sarna.
O rapaz, ainda pálido, olhando em volta, deu alguns sinais de que ia vomitar, mas conseguiu se conter quando percebeu o corpo de seu salvador no chão. Seu herói. Quantas canções ele escreveria para homenagear aquele homem? Foi se aproximando lentamente, a luz fraca da tocha jogada no chão delineava alguém ofegante, com sangue escorrendo da panturrilha e do braço. Pelos deuses, será que aquilo era mesmo verdade? O rapaz afastou os cabelos loiros da testa suada, como se isso fosse o ajudar e enxergar melhor. Limpou as mãos nas vestes caras, porém, já puídas pelo uso e limpou os olhos com as mãos. Sim, era verdade, era mesmo ele. Repentinamente a coragem voltou aos joelhos do rapaz que caminhou rapidamente em direção ao bruxo ainda deitado no chão.
Geralt percebeu que a pessoa estava vindo em sua direção e começou a levantar-se, sem conseguir se apoiar muito na perna mordida, ele fez a espada de bengala. Dilatou as pupilas de gato para enxergar um pouco melhor na escuridão que era cortada minimamente pela tocha no chão. É óbvio que aquele outro rapaz não oferecia perigo à julgar pelo seu comportamento diante da matilha, mas eram tempos estranhos, podia-se esperar qualquer coisa de qualquer um. O alívio, porém, acalmou os pensamentos do bruxo quando ele percebeu o rosto que se aproximava. E quase não acreditou.
- Geralt! Eu não acredito! Geralt, é você mesmo? - Os dois homens se olharam por um instante, na tentativa de confirmarem quem eram - É claro que é! Meu grande amigo, Geralt, de Rívia! Venha cá, dê-me um abraço, aliás, melhor não, você está coberto de sangue e eu poderia pegar alguma doença, talvez seja melhor se você se lavasse antes, daí e só então eu lhe darei um abraço.
- Bardo! Jaskier! O que diabos você está fazendo no meio de uma floresta a essa hora da noite?
- Bem, é um tanto fácil entender a situação, embora seja um pouco constrangedor.
- Deixe-me adivinhar, escondeu a salsicha no pão errado de novo? Algum comerciante ou verdureiro e agora precisa fugir às pressas por ter sido descoberto.
- Uau! Geralt, sua dedução anda ótima como sempre. Apesar de não ter sido um comerciante, mas o banqueiro não foi menos violento em suas ameaças. - Um sorriso amarelo não disfarçou sua preocupação. - Mas oh, Geralt, meu preciosos amigo, preciso lhe agradecer por ter me salvado mais uma vez, me sinto na obrigação de fazer outra canção sobre você.
- Não, chega de canções sobre mim.
- Você é muito ingrato, Geralt, por acaso não percebeu como o preconceito com os bruxos tem diminuído devido às minhas canções heróicas e fantásticas sobre você? Particularmente, eu acho que você deveria ser um pouco mais grato após tantos anos de amizade.
- É interessante você tocar nesse assunto. Por que você gosta tanto de escrever canções sobre mim?
Jaskier ficou muito vermelho e quase engasgou com a própria respiração.
- Os outros bardos e poetas se interessam por temas bobos, mas eu me interesso por você... - Geralt e Jaskier se olharam ao mesmo tempo, o bardo ainda estava muito vermelho. - Afinal, você é meu amigo e tem as melhores aventuras. É por isso.
Geralt riu, era um alívio escutar um pouco das bobeiras de Jaskier para aliviar a tensão do momento. É certo que esse alívio se tornaria uma tormenta em alguns minutos, já que o bardo não parou de falar um minuto sequeru durante todo o trajeto de volta a fogueira. O bruxo mancava um pouco devido ao ferimento na perna e, devido a isso, eles demoraram mais do que o necessário para chegar ao destino.
Enquanto o bardo lamentava ter esquecido seu alaúde na casa do banqueiro, Geralt aplicava uma poção que borbulhava ao entrar em contato com os seus ferimentos, contudo, dava um alívio instantâneo para a dor, além de uma sonolência que foi aumentando com o falatório de Jaskier. O menestrel não acreditou quando percebeu que o bruxo caíra no sono, sua conversa era interessante demais para alguém dormir no meio de seu discurso. Apesar de sua indignação, resolveu dormir também.
A lua resolveu sair de trás das nuvens e iluminou a clareira onde eles estavam. Jaskier conseguiu observar melhor o rosto do amigo, seu tão querido amigo, Geralt. Era estranho o pensamento de que o bruxo havia envelhecido, pois eles demoravam muito mais que uma pessoa normal para envelhecer, mas algumas rugas e manchas já eram bem visíveis naquele rosto austero. Jaskier o observou alguns minutos e dormiu pensando em rimas e versos.
No dia seguinte, Jaskier acordou e percebeu que Geralt não estava por perto. Encontrou-o se lavando em um rio que passava perto dali. Ele bem que precisava mesmo, após a batalha na noite anterior. O sangue, não se sabia se era de Geralt ou do lobo, já havia secado nos cabelos brancos do bruxo e estava difícil de sair. Jaskier ria da cena, pois tinha certeza que Geralt já teria cortado aquela mecha se tivesse um tesoura por perto. A paciência do amigo era bem curta.
- Como você teve coragem de me deixar dormindo sozinho, a mercê dos monstros, para vir se lavar tão despreocupadamente? - Da beira do rio, Jaskier gritou para Geralt que apenas deu de ombros. - Você não liga? Sabe que sou inofensivo, não consigo fazer mal a uma mosca!
- Se proteger não é fazer mal, é sobrevivência. - Jaskier não escutou essa resposta devido ao barulho da correnteza.
- Ao menos olhe para mim enquanto falo com você, seu grosseirão de meia tige...
O bardo interrompeu sua ofensa quando o bruxo se virou. Havia, pelo menos, mais uma dúzia de cicatrizes no torso de Geralt desde a última vez que eles se viram. Jaskier pensou em quantas aventuras aquele homem já teria vivido e quantas feridas já teria sofrido. O bardo fixou o olhar no peitoral de Geralt que, meio inibido, tentou puxar algum assunto:
- É, eu ando trabalhando bastante ultimamente. - Isso foi o suficiente para Jaskier desatar a falar novamente.
- E anda muito descuidado também, o Geralt que conheço não deixaria ser mordido por um lobo. Um lobo, Geralt! Onde Já se viu!
- Aqueles lobos dos quais você se encolheu e quase se mijou de medo? - Jaskier fez uma careta.
- Você sabe muito bem que sou uma pessoa das artes, da música, da poesia, não tenho aptidão para manejar uma espada ou lutar com qualquer criatura que seja. Agora, dê-me um alaúde e saberá do que sou capaz! Jaskier, o maior bardo que os reinos do norte já conheceram! - Ele fez uma pose heróica aguardando alguma resposta de Geralt, em vão, já que ele havia se virado de costas para continuar se lavando.
- Sabe, Jaskier, você deveria se lavar também, tenho certeza que as moças daquele vilarejo não vão apreciar muito seu perfume de sarna e saliva de lobo.
E Geralt tinha razão. Jaskier levantou o braço e aspirou próximo a axila, quase caindo para trás com o mau cheiro. Sem graça por despir-se, entrou na água gelada do rio. Apesar do susto momentâneo causado pelo frio, a água pareceu renovar suas energias, ele sentiu que poderia cantar sem parar durante uma noite inteira até amanhecer. Ele e Geralt mantiveram uma certa distância e não se olhavam. Contudo, volta e meia o bardo se pegava olhando de lado para o bruxo. Qual era o encanto que ele tinha? Os cabelos brancos, o rosto grosseiro, as cicatrizes... O bardo não sabia responder, mas sabia que tinha alguma coisa em Geralt que lhe prendia o olhar. Foi quando percebeu que o bruxo o olhava de volta e ambos se viraram constrangidos.
Repentinamente, uma forte turbulência na água fez com que Jaskier escorregasse. Embaixo da água, ele deu um impulso para emergir, contudo, seu pé ficou preso em alguma coisa e ele não conseguia subir à superfície. Já desesperado achando que não iria respirar novamente, ele sentiu as fortes mãos de Geralt o agarrarem pelos ombros e o levantar. Jaskier não pensou muito antes de se pendurar no pescoço do amigo, no ímpeto de se salvar. A situação foi bem embaraçosa já que, agarrado ao pescoço de Geralt esteve próximo dele como nunca esteve. Ao sentir o relevo das cicatrizes do amigo em seu peito, seu corpo respondeu de uma forma que ele não pôde interpretar. A cena durou alguns segundos e logo Jaskier começou a tagarelar novamente.
- Sabe, Geralt, você deveria passar um sabão na boca também, pelo seu hálito você parece ter comido um pedaço de afogador cozido com sangue de carniçal.
- Hmm... - Geralt soltou o bardo e saiu da água.
- Espere, não me deixe aqui, eu vou com você para onde você for.
- É claro, ainda está com medo do banqueiro te achar e te decapitar, a minha companhia será muito útil.
- Oh, Geralt, não seja tolo, eu gosto de você, é um grande amigo! - Com as bochechas coradas, Jaskier olhou para o céu tentando disfarçar qualquer expressão em seu rosto. - Ainda não é nem meio-dia, estou com fome. Vamos, Geralt, vamos até uma vila próxima, podemos encontrar uma taverna que tenha um guisado de pato com batatas.
- Ou posso caçar algum lobo...
- Lobo? Geralt, claramente você não me conhece tão bem. Onde já se viu, o grande bardo Jaskier comer carne de lobo? - Ele estava realmente indignado. - Vamos, ande, até o meio dia chegaremos numa vila aqui perto. Você vai ficar aí parado?
- Shhhh...
- Agora eu preciso ficar em silêncio? Conte-me, bruxo, você ainda não mencionou o que está mesmo fazendo aqui nessa floresta. - Geralt sinalizou para que Jaskier ficasse em silêncio e foi andando em direção a espada.
O bardo se calou e começou a olhar ao redor assustado, ele sabia que os sentidos do bruxo eram aguçados, sabia que algo ou alguém se aproximava. Não demorou até que o pavor tomasse conta de todo o corpo de Jaskier ao ver um enorme vulto fantasmagórico esverdeado surgir em pleno ar. "Corra, Jaskier!" gritou o bruxo, mas o outro pareceu nem ouvir, permaneceu parado e visivelmente em pânico. A visão daquele fantasma era assombrosa: tinha um brilho fraco, longas mãos e olhos esbugalhados, uma grande e inquieta língua saía da boca e os cabelos flutuavam como se estivessem imersos em água.
A aparição soltou um urro que ecoou longe e partiu para cima de Geralt. A espada de prata silvou no ar e Geralt girou graciosamente como um dançarino, se desviou do vulto e caiu com um joelho no chão. Ele sentira a ferida na perna se abrir e, por isso, perdeu um pouco de sua agilidade. "Geralt, cuidado!", brandiu Jaskier quando percebeu mais um rompante da aparição. Apesar de ser intangível à espada, o fantasma conseguia desferir vários golpes no bruxo, inclusive um que o derrubou no chão.
Jaskier, ao ver seu amigo em apuros, criou uma coragem não se sabe de onde, correu até os alforjes de Geralt e começou a procurar não sabia o que. Revirou tudo até que viu, no fundo, um frasco com um pó que parecia prateado, mas também era esverdeado. O fantasma horrendo continuava a atacar Geralt que se defendia com a espada. Cansado de desferir golpes, ele recuou, urrou, olhou diretamente para Geralt, estendeu a mão e uma luz fraca emanou. Geralt, que se levantara, ficou imóvel, catatônico, seu semblante era de dor e sofrimento. "Está dominando a mente dele", pensou Jaskier.
O bardo encheu os pulmões de ar numa tentativa de sugar coragem junto, destampou o frasco e saiu em disparada para a batalha. A aparição estava quieta e Jaskier viu uma lágrima escorrer no rosto de Geralt, algo nunca visto antes. O bardo jogou o pó metálico no fantasma fazendo-o se contorcer e a luz que se emanava sumir. Foi como se ele tivesse tomado um choque, caiu no chão e começou a urrar. Geralt, tentando se equilibrar, balançou a cabeça para acordar do controle mental. Andando meio vacilante, o bruxo pegou a espada no chão e cravou no peito etérico da aparição que, devido ao pó de dimeritium, estava quase sólida. O fantasma deu um último grito e se desfez em fumaça.
Geralt, visivelmente exausto, começou a cair, mas foi amparado por Jaskier que quase não aguentou o peso do amigo. Eles foram caminhando lentamente, Geralt delirava e chamava por Yennefer, Jaskier fazia um esforço enorme para que o bruxo pudesse se apoiar nele. Ao chegarem numa grande árvore, o bardo ajudou o bruxo a se sentar sob a sombra.
Enquanto um ficava sentado o outro andava de um lado para outro, como se tivesse muitas coisas em que pensar. Não demorou mais que uma hora para que Geralt estivesse consciente de novo.
- Jaskier atacando uma aparição, quem diria. - Disse Geralt, com um tom meio debochado. - Mas devo admitir, jogar o dimeritium para neutralizar a magia do fantasma foi uma ótima ideia.
- Eu posso ser apenas um bardo, mas já vivi muitas aventuras, sei algumas coisas. Mas Geralt chorando, quem diria. - Retrucou o bardo, sem sarcasmo, mas com muita curiosidade.
O bruxo virou o rosto, visivelmente amargurado com os pensamentos despertados em sua mente sob o controle mental do fantasma. Quis mudar de assunto:
- Um contrato. - Disse, após uma longa pausa. Jaskier o olhou sem entender. - você perguntou o que eu estava fazendo nessa floresta... Estava cumprindo um contrato. Aquela aparição era a esposa amaldiçoada de alguém.
Jaskier, que parecia chateado com alguma coisa, mudou o semblante e começou a tagarelar.
- Oh, imagine só que linda canção vou compor sobre esse episódio, já posso ver os versos e rimas se formando aqui dentro. - Ele apontou a cabeça com um grande sorriso. - "Essa é a canção, da primeira aparição, que fez o bruxo chorar, com peso no coração".
Geralt se levantou, indignado e ressentido, bravo:
- Nunca, Jaskier, nunca você fará tal canção, você nunca deverá mencionar sobre lágrima alguma. Você não sabe o que causou tanta tristeza. Não tem a menor ideia do que é viver com tudo isso aqui dentro. Longe de pessoas que você se importa, matando monstros por uns trocados, sendo cuspido e apedrejado. Você só quer compor suas canções e versos, sem pensar no sofrimento que elas irão reproduzir por todo o mundo.
Geralt bufou após terminar de esbravejar e saiu andando. Jaskier foi atrás, sabia que o amigo não quis ser tão rude, apenas estava passando por um momento difícil. Eles caminharam por mais de duas horas em silêncio até chegarem numa vila. O lugar era movimentado, com crianças correndo e brincando, vendedores gritando, cães latindo. O bruxo se dirigiu a uma certa casa para cobrar a recompensa do contrato. "Olha, um estalagem, talvez possamos descansar um pouco", disse Jaskier e Geralt apenas assentiu com a cabeça.
Já estava escuro do lado de fora da taverna. Os dois amigos alugaram um quarto com duas camas pequenas, por ser mais barato. Geralt, com as mãos atrás da cabeça, respirava fundo tentando dormir, mas sem sucesso. O calor estava infernal. Ele se levantou e tirou a camisa de linho. Jaskier percebia o peito desnudo de Geralt subir e descer com força e sabia que ele ainda estava bravo. Ele também tirou a camiseta e enxugou o suor da testa e do peito.
O bardo sentou-se na cama de palhas e encarou o bruxo. Seus olhos eram tão expressivos que o outro, deitado, quase conseguia entender sem nem precisar de palavras.
- Você foi e está sendo muito injusto, Geralt. - Quebrou o tórrido silêncio do quarto. - Você acha que tudo para mim é uma aventura, uma brincadeira, mas está errado. Isso é só uma máscara. Sabe que meu nome é um apelido, pegado emprestado de uma flor. Por muitos anos eu achei que ser comparado a uma flor era algo especial, afinal, elas são belas, cheirosas, brilham aos olhos. Mas a verdade é que flores são facilmente arrancadas do chão e descartadas após servirem de enfeite. E você... - Geralt fingia não escutar, mas estava atento. - Você acha que é fácil? Se importar tanto com uma pessoa a ponto de escrever canções sobre ela, a ponto de criar uma coragem que nunca teve e, mesmo assim, ser taxado de insensível? Sabe, Geralt, você sente tanta falta das pessoas que estão longe, como se somente elas importassem para você, mas se esquece de quem está bem aqui. Seus olhos de gato podem ver além, no escuro e longe, talvez seja por isso que você não enxerga as coisas acontecendo bem na sua frente.
Dito isso, o bardo se deitou de costas para o amigo, os olhos molhados, a cabeça girando, uma náusea no estômago. Os pensamentos a mil não o deixavam dormir. A lua deixara de iluminar dentro do quarto quando Jaskier sentiu alguém sentar atrás de si. Ele sentiu um arrepio em toda a espinha e, quando pensou em falar alguma coisa, Geralt começou a falar com sua voz grave e rouca, mais rouca que o normal.
- Desculpe-me, Jaskier. Eu não sou cego, sei muito bem o que está acontecendo com vo... nós. - O bardo arregalou os olhos. - Para mim, você sempre será uma flor selvagem que não deve ser arrancada. Eu nunca teria coragem de fazer isso com você. E eu continuo te afastando, para não te machucar. Mas, ao mesmo tempo...
Jaskier não esperou que Geralt terminasse de falar, o puxou para perto si e os dois deitaram frente a frente. O bardo já não se assustava mais com os olhos amarelos que brilhavam no escuro. Ele passou a mão nos cabelos brancos do outro.
- Não vamos nos deixar afetar demais sobre essa metáfora boba sobre flores. Mas se tem uma pessoa que pode me arrancar do chão, é você. Só não me jogue fora como qualquer enfeite.
- Sabe que não posso, não consigo...
- Shhh...
Antes que o momento passasse, Jaskier beijou Geralt. Foi um beijo demorado e desajeitado que se prolongou até ele ficarem sem ar. O bardo passou a mão no peito do bruxo e pôde sentir os pelos entre os dedos, as inúmeras cicatrizes, além da respiração forte, quase medrosa. Geralt abraçou o corpo de Jaskier e o forçou contra o seu e também pôde sentir a respiração ansiosa do bardo, sinalizando que queria mais. E eles tiveram muito mais, puderam sentir o gosto um do outro mais do que imaginavam. E mesmo no calor, eles dormiram abraçados.
Antes do amanhecer, Geralt se levantou em silêncio, vestiu suas roupas e saiu do quarto. Antes, ele olhou Jaskier que dormia sem saber que acordaria sozinho. Contudo, o bruxo não poderia, não conseguia. Seu cavalo estava apeado atrás da taverna, deixara-o lá até concluir o contrato. À galope, o bruxo seguiu seu caminho o mais rápido que pudesse, os cabelos brancos esvoaçando com a brisa fresca do amanhecer.
Ele não deixava de pensar sobre a noite passada, mas não queria deixar sua consciência muito pesada. Ele sabia que o bardo era mais uma de outras dezenas de flores que ele descartou após cheirar. Em certo ponto da viagem, sentiu algo dentro do bolso do gibão de couro. Descobriu um papel dobrado, escrito com uma letra muito bonita.
"Meu caro amigo, Geralt. Sei que você irá embora antes que eu acorde, mas sei que essa é a sua natureza, espero que nos encontremos no futuro. Eu não pude deixar de pensar sobre isso tudo e escrevi essa canção, contra a sua vontade. Espero que goste. De seu grande amigo, o bardo mais famoso dos reinos do norte, Jaskier.
A Canção que Nunca Será Cantada
Esta é a canção
De quando uma aparição
Fez o bruxo chorar
Com pesar no coração
Esta é a canção
De quando uma flor
Fez o bruxo se alegar
Com fogo no coração
E o bruxo soube
Como tratar a flor
Não a arrancou do chão
Para tocar seu coração
Mas o bruxo não podia
Sua espada mais valia
Que um coração perdido
Em uma noite fria
E a flor foi deixada
Um dia ele voltaria
P.S.: Eu sei que a noite não estava fria. Não consegui terminar a letra, nem as rimas da última estrofe, espero que entenda".
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