Carta II - 1ª Parte


31 de Dezembro de 2015

Caro Will,

Fico feliz de ter recebido sua última carta, e fiquei muito divertido com a sua reação. As tuas ameaças em me enviar um psiquiatra provocaram-me lágrimas de riso. Mas agradeço tua preocupação para comigo; vejo-te como muito mais que um amigo, vejo-te como um irmão.

Por isso dói-me profundamente estar te escrevendo esta carta; pois aqui deixarei o meu adeus. Sim, meu amigo. Infelizmente, acredito que nunca mais nos veremos. Mas, se você seguir as instruções que deixo ao final desta, ficará feliz em saber estou perfeitamente bem.

Contei-te em minha última carta sobre Lara Lancaster, uma jovem que supostamente vivera e morrera nesta casa séculos antes do meu nascimento. Como te disse, com a proximidade do Natal, estive completamente obcecado em voltar a ver o espírito da jovem. Comecei a revirar a biblioteca em busca de informações sobre os Lancaster, sobre uma forma de saber o que aconteceu com Lara séculos atrás.

Você não vai acreditar, meu caro Will. Realmente não vai. A única forma de você acreditar em mim será vindo aqui, neste hotel, e seguir as instruções que te deixo ao final. Mas deixe-me te contar.

No dia último dia 24, véspera de Natal, estive novamente revirando a biblioteca; a noite caiu, e o hotel estava mais cheio e barulhento do que nunca. Enquanto festavam e bebiam lá nos salões, eu retirava livro após livro das estantes, desesperado, à procura de uma luz.

Então encontrei, meu amigo. O relógio se aproximava da meia noite, quando minhas mãos pousaram sobre um pequeno e velho livro, escondido entre dois imensos dicionários. Acredito que foi o destino que me fez encontra-lo; estava tão espremido que levaria séculos para alguém descobri-lo. Mas o encontrei, Will. E assim que li sua capa, meu coração deu um salto tão grande que quase desmaiei. O livro se chamava A  Canção do Tempo. Mas o que me assustou, Will, foi o nome do autor. Da autora. Lara Lancaster.

Abri desesperado o pequeno livro. Era um livro de poesias. Devorei atentamente cada palavra; eram versos tristes, mas lindos, e enquanto os lia era como se escutasse a voz de Lara os narrando em minha mente. Quando cheguei à metade do livro, encontrei uma folha de papel solta entre as páginas. Era uma partitura para piano.

Entenda, Will. Sempre fui um péssimo pianista. Nunca dei realmente certo na escola de música e, por mais que eu seja apaixonado por música clássica, conformei-me em ser apenas um mero ouvinte desta nobre arte. Entretanto, eu ainda me lembrava de alguma coisa ou outra sobre partituras.

Era uma peça um pouco complexa; sabia que iria levar várias tentativas para conseguir executá-la. Mas eu tinha que tocá-la. Só havia um motivo para aquela partitura estar ali, em um livro escrito por Lara Lancaster, tão escondido como estava. Era para ser executada.

Apanhei o papel e abandonei o livro em cima do sofá. Corri para o piano, posicionei a partitura e fiquei reparando nela por alguns instantes. Estava bem desgastada, mas as notas eram visíveis. Tinha um pequeno corte no lado direito, como se alguém a tivesse pego desajeitadamente e a rasgado, mas isso não prejudicava a integridade do papel. No topo, estava o nome da música e as iniciais do compositor: A Canção do Tempo, de L. L.

Na minha primeira tentativa, levei o maior susto ao ouvir o que eu estava tocando. Era a mesma música que Lara tocara na primeira vez em que nos vimos! Aquela tão tristezinha que me deixara paralisado, apreciando as notas... Senti então, Will, que não seria difícil reproduzir aquela música, pois ela já estava dentro de mim.

Meu engano. Tentei várias vezes, mas nunca conseguia chegar ao final da peça com perfeição. Sempre errava uma ou outra nota. Não sei quanto tempo fiquei tentando e falhando, mas a cada nova tentativa eu ficava mais excitado. Eu sabia que alguma coisa iria acontecer. Talvez Lara aparecesse ao término da música...

Acredito que já se aproximava das duas da manhã; ainda se ouvia os barulhos de alguns hóspedes festejando, e um estranho frio congelava meus ossos. Eu estava em minha milionésima tentativa. Quando comecei a tocar, porém, senti que dessa vez ia dar certo. Uma brisa vinda do nada percorreu o ambiente, enquanto a melódica música soava pelos meus ouvidos; cada nova nota parecia sair de minha própria alma. E, com um grito mudo de satisfação, cheguei até o último acorde com perfeição.

Com a respiração suspensa, olhei para os lados. Mas nada mudara, nada acontecera. Não havia nem sombra de Lara ou de qualquer coisa anormal. Fiquei desapontado. Eu tivera certeza de que algo iria acontecer... aquela brisa me parecera tão sobrenatural...

E pela primeira vez, caro Will, desanimei. Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Nunca veria Lara novamente, ou saberia se ela estava em paz.

Recolhi a partitura e coloquei-a no bolso. Levantei-me cabisbaixo e fui em direção à porta da biblioteca. Eu precisava dormir; já ia fazer quase uma semana que eu não sabia o que era uma boa noite de sono. E isso eu teria hoje, prometi a mim mesmo. Chega dessa loucura.

Quando abri a porta e a atravessei, tive o maior susto de minha vida.

Tudo estava mudado.

Meu caro Will, você não irá acreditar no que vou te dizer agora. Pensarás, enquanto lês, que seu velho amigo Edmund enlouqueceu de vez. Por favor, eu te suplico que leia até o final e depois eu te provo tudo que estou dizendo.

O corredor à minha frente estava completamente mudado. Havia outros tipos de tapetes no chão, quadros que não estiveram ali antes estavam agora pendurados nas paredes, e mesmo estas possuíam cores diferentes. A iluminação do ambiente era mais lúgubre, e próprio ar parecia cheirar diferente.

Havia um barulho distante de pessoas, mas diferente daquele que eu estivera ouvindo ainda há pouco. Este era mais contido e, ao mesmo tempo, mais vivo, pois havia música tocando. Vinha do salão de festas. Caminhei até lá, cauteloso. Não sabia se eu estava sonhando, se aquilo era real ou se tinha enlouquecido de vez.

Quando entrei no salão de festas, levei outro grande susto. Estava cheio de pessoas vestidas de forma completamente diferente do que se usa hoje. Pareciam ter saído de algum retrato de Renoir, ou de algum filme de época; mulheres trajando longos vestidos clássicos, com chapéus graciosos na cabeça. Homens usando trajes a rigor, ostentando magníficas cartolas. Alguns estavam sentados em pequenas mesas, outros conversavam entre si em pé, e uma boa parte dançava ao som da valsa que vinha do piano.

Só havia uma explicação para isso, caro Will. Eu voltara no tempo.

Fiquei parado por longos minutos, paralisado de surpresa. Mas, aos poucos, comecei a reparar nas feições das pessoas ao redor; será que Lady Lara estava por ali? Vi então uma garota de semblante triste, parada a um canto extremo do salão, perto do pianista. Estava bastante cabisbaixa, como se não quisesse estar ali. O que realmente me chamou a atenção foram os traços dela: eram muitos semelhantes aos de Lara. Os cabelos negros e ondulados, os olhos claros... Aquela era certamente uma Lancaster.

Cruzei o salão e me encaminhei em direção à garota e, por onde eu passava, chamava a atenção das pessoas. Era compreensível, visto que eu usava jeans e camiseta, vestimentas completamente diferentes da realidade deles. Quando me aproximei da provável Lancaster, ela me encarou com notada curiosidade. Parei diante dela e fiquei calado e embaraçado, pensando no que falar.

- Boa noite, senhorita – cumprimentei-a finalmente, estendendo as mãos. Ela ficou momentaneamente relutante, mas enfim apertou-as.

- Quem é o senhor? – perguntou. Sua voz, embora mais fina e ríspida, tinha a mesma rouquidão da de Lara. Tive certeza naquele instante que aquela era uma de suas irmãs.

- Meu nome é Edmund. A senhorita é Lancaster, correto?

- Sim – disse ela, surpresa por eu não saber seu nome. – Mary Lancaster. E este é meu irmão. Luke Lancaster.

Ela apontou para o pianista, a apenas um passo de nós. Era um jovem um pouco mais velho que eu, de cabelos morenos e olhos negros como a noite. Embora tocasse uma alegre valsa, percebia-se um pesar em seu olhar. Ergueu os olhos para mim ao ouvir seu nome, e pareceu chocado em ver uma pessoa vestida de modo tão extravagante. Cumprimentei-o com um aceno de cabeça.

- Srta. Mary - voltei-me pausadamente à garota. - A senhorita é irmã de Lady Lara ?

As palavras surtiram efeito imediato. Os olhos de Mary se encheram de lágrimas e, com um acorde horrível, o jovem Luke parou de tocar a valsa. Os olhares de todos no salão se voltaram para nós.


Olá, tudo bem?

A música da mídia é a bela Pastoral de Beethoven... Um clima bem suave e campestre... Encantador! <3

Um grande abraço, e até mais!! :)






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