Carta I - 2ª Parte
Dessa vez não consegui voltar a dormir. Fiquei esperando por muito tempo, na esperança de que ela reaparecesse, mas isso não aconteceu. Quando o relógio marcou quatro da manhã, decidi sair do quarto e fui procura-la.
Sim, Will. Talvez eu esteja realmente louco. Talvez eu tenha começado a ficar naquele momento... Afinal, minutos antes eu estava fugindo do espírito. Agora eu o estava procurando.
Fui à biblioteca, mas não o encontrei. Andei silenciosamente pelos corredores escuros e fantasmagóricos da mansão, o coração acelerado, não sei se de medo ou de expectativa. Fui ao salão de festas, à sala de estar, às cozinhas, à despensa, aos quartos de utensílios e ferramentas. Mas não havia sinal da jovem fantasma em canto algum. Depois de meia hora perambulando pelos corredores e salas do hotel, decidi voltar ao meu quarto, ligeiramente decepcionado.
Quando abri a porta, lá estava o espectro, sentado em minha cama. Mesmo depois de ter revirado a casa a procurá-lo, não pude evitar o susto que senti ao vê-lo ali.
- O que está acontecendo comigo, Edmund? – lamuriou a jovem.
- Também queria saber, espírito. Você não se lembra de nada? Não se lembra de ter... morrido?
Falei essas últimas palavras com precaução, temeroso de magoá-la ou ofendê-la. Mas ela apenas transpirou desânimo no olhar.
- Não me lembro de nada concreto. Sei que esta é minha casa. Lembro-me de minha família, dos empregados, do meu nome... Mas o resto é apenas um borrão. É assim que é a morte?
Reunindo toda minha coragem, apressei-me à ela e me sentei ao seu lado. Calafrios sobrenaturais percorreram meu corpo.
- Não sei. Você não me disse seu nome, espírito. Você era... Você é uma Lancaster?
Ela sorriu melancolicamente.
- Sou a segunda mais nova de meu nome. Lara Lancaster, assim sou chamada.
- Um lindo nome, senhorita – elogiei, sem muito tato. – Lembra-se de quando você é?
- Nasci em 1815...
Contemplei-a em silêncio. Sua proximidade me causava arrepios, mas já estava começando a me habituar a eles.
- Queria poder te ajudar, Srta. Lancaster.
- Por que estou aqui? - perguntou ela, baixinho. A pergunta era mais a si mesma que a mim. - Por que não estou... do outro lado?
Era o que estive me perguntando desde que a vi, Will.
- Não entendo - continuou. - Estou perambulando pela casa há alguns dias, sem ver ninguém. Sempre me pareceu estar completamente deserta. Não consigo sair daqui, algo me prende aqui dentro. Sinto-me completamente perdida; não sei como vim parar aqui, como vim a... a morrer.
Interrompi-a.
- Mas, Lara, isso aqui é um hotel. Há uma dúzia de pessoas hospedadas aqui atualmente, sem contar a criadagem e os visitantes. Como você não viu ninguém?
- Já lhe disse que não sei! Mas hoje, fui à biblioteca e acometeu-me um forte desejo de tocar o velho piano. Há essa música que não sai da minha cabeça. Pus-me a executa-la. Faz-me lembrar de meus irmãos, meus pais, dos bailes e festas que fazíamos aqui...
Enquanto Lara falava, um raio de luar entrou pela fresta semiaberta da janela e atingiu o seu rosto. Vi seus olhos brilhando de lágrimas; fantasmas podiam chorar?
- Foi enquanto tocava que senti, pela primeira vez, a presença de alguém – continuou ela. - Você.
Fiquei extremamente surpreso.
- Sou a primeira pessoa que você vê desde a sua... morte? Está me dizendo que sou a única pessoa neste hotel que você consegue ver?
- Sim - ela suspirou.
Que estranho, meu caro Will. Isto ainda me rói os pensamentos.
Por algum motivo, eu sentia um desejo de consolá-la, de ajuda-la. Conversamos durante muito tempo. Acredite-me, amigo, passou a ser encantador ouvi-la falar de suas lembranças. Contou-me tudo que se lembrava dos pais, irmãos e amigos... Dos bailes, das caçadas e dos campos... Mas eram em sua maioria memórias de infância. Não conseguia lembrar-se nitidamente das coisas que aconteceram pouco antes de sua morte. Nem da morte em si.
A cada instante que se passava, entretanto, eu ia esquecendo que estava falando com um espírito; pelo contrário, as formas dela pareciam ficar a cada segundo mais nítidas e suas cores, mais vivas.
- Obrigado – disse ela repentinamente, os olhos marejados. – Por me escutar. Sabe, não entendo. Estou tenho a leve impressão de já ter te conhecido, há muito tempo...
- Talvez porque eu seja o único que você consegue ver – brinquei.
Ela sorriu e ficou alguns instantes em silêncio, olhando pensativamente para a vidraça. A brisa entrava pela frestinha e jogava seus cabelos negros para trás. Estranho... Lara parecia tão viva! Era como se eu pudesse até sentir os batimentos do coração dela, o sangue circulando por suas veias.
- Esquisito - sussurrou ela, vagamente. - Muito esquisito.
- O quê?
- Estou começando a me lembrar de uma coisa. De uma pessoa.
- Sério? - perguntei. - Quem?
- Você.
Não entendi o que ela quis dizer com aquilo.
- De mim? Como assim?
Lara ficou silenciosa por alguns instantes, refletindo.
- Não tenho certeza, Edmund. Não, na verdade, posso ter me enganado. Vem na minha mente a imagem de um rapaz parecido contigo... Muito parecido... Um rosto em um desenho.... Mas não era você. Talvez fosse seu tatatatataravô...
Ao que ela riu; também sorri, embora aquilo tivesse me deixado muito curioso.
- Seria possível que você conheceu algum antepassado meu?
- Edgar! - exclamou ela, em tal volume que saltei-me da cama, tomado de susto. Havia triunfo triunfo em seu rosto.
Mas ao ver o susto que eu levara, Lara pôs-se a rir descontroladamente. Ligeiramente embaraçado, ri-me junto com ela.
Fantasmas riem, caro Will?
Por um instante, esqueci-me de tudo. Voltei a me sentar na cama, ainda tendo acessos de riso.
Finalmente, consegui me controlar e me lembrei do que ela acabara de dizer. A curiosidade novamente tomou conta de mim. Ainda com um sorriso na boca, encarei-a.
Mas, quando estava prestes a lhe perguntar sobre esse tal de Edgar, algo aconteceu. Um raio de sol entrou pelas frestas da janela e atingiu o rosto de Lara; e, no mesmo instante, a jovem... desapareceu.
-
Acontece que desde então, meu caro Will, não voltei a vê-la.
Naquele dia, não deixei o hotel um segundo sequer; perambulei por toda a mansão, procurando principalmente os locais mais escuros, na esperança de encontra-la. Mas foi inútil. Enfim concluí que talvez ela só aparecesse à noite, e eu teria que esperar.
Mas Lara não reapareceu nem naquela noite, nem na seguinte. Comecei a dormir mal nos dias que se seguiram. Ficava na biblioteca, onde a encontrei pela primeira vez, até a madrugada; depois voltava a vasculhar a casa e, apenas quando o dia estava amanhecendo, ia me deitar. Tudo sem sucesso, pois até o presente dia em que te escrevo, meu amigo, ainda não a reencontrei.
Creio que estou ficando louco; Lara Lancaster não sai de minha mente e nem dos meus sonhos. Estou começando a ficar desesperado; por que sinto essa necessidade insana de vê-la novamente? Um fantasma!
Anteontem, decidi começar a fazer diferente. Iria tentar revirar o passado. Falei com a Sra. Mason e perguntei-lhe o que sabia sobre a antiga família Lancaster. A velha senhora, entretanto, sabia apenas o que já me falara: que foram os primeiros e mais longos moradores daquela mansão. Mas acabou aconselhando-me o óbvio: que eu procurasse informações na biblioteca. Ali havia livros tão antigos quanto a casa, e muitos deles pertenceram aos próprios Lancaster.
É isso que tenho feito, caro amigo. Tenho passado horas intermináveis na biblioteca, procurando diários, anotações, genealogias ou qualquer coisa que contenha o nome Lancaster. Ainda não obtive muito sucesso. Mas não vou desistir, Will. Você sabe que eu não desisto facilmente de nada.
Espero escrever-te novamente em breve. Caso tenha interpretado essas palavras como o devaneio de um louco, veja essa carta como um pequeno divertimento para sua mente neste Natal.
De qualquer forma, aguardo notícias sobre todos. Rosamunde já se casou?
Com amor,
Edmund.
Olá, leitores!
A música da mídia o 2º movimento da popular Eine Kleine Natchmusik, de Mozart :)
Um grande abraço, e até o próximo capítulo!
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