3. Quatro Pernas e Nenhuma Cabeça


Ele assustou quando a mulher de verde tomou sua frente, novamente murmurando uma canção, agora com energia, fazendo com que do nada se iniciasse uma poderosa ventania que varria a estrada de terra no caminho de onde Fernando viera, levantando pó, galhos, pedras e o que mais havia, arremessando aquela mistura em alguma coisa que vinha ao longe.

— Sa-são muitos. – disse a mulher, engolindo em seco e olhando ao longe. E, empurrando Fernando na direção contrária de onde olhava, gritou - Fuja!

No mesmo momento a ofegante mulher e o assustado rapaz corriam o máximo que seus corpos lhe permitiam, fugindo de algo tão terrível que apavorou a estranha e poderosa mulher.

Confiando no julgamento da feiticeira, Fernando corria desesperado.

— O que está vindo? O que você atacou? – quase chorou ele, correndo nas mais largas passadas que podia dar, espalhando lama onde passava.

— É meu trabalho afastar as criaturas. – gritou ela, para se fazer ouvir em meio a um estranho barulho que vinha de todos os lados. – Sem o Muiraquitã eu não tenho a menor chance! Tenho que salvar você! Corra!

E, parando por um momento enquanto Fernando corria, a feiticeira voltou-se para o lado da estrada de onde fugiam e onde vira algo que a assustara e murmurou mais uma canção breve, deslocando poderosos troncos de árvore dez metros ao longe, que caiam sobre a estrada, bloqueando-a e chocando-se contra alguma coisa que Fernando não se voltou para ver.

Feito isso, ela voltou a correr na mesma direção em que Fernando seguia, sua roupas já imundas da lama da estrada. O rapaz se voltou para olhá-la e pela primeira vez não viu aquela serenidade, mas cansaço e desespero.

— Corra! – gritou a feiticeira quando ele se voltou. – Fuja, senão vamos morrer!

O grito desesperado da mulher foi terrível para Fernando, mas havia outras coisas ainda mais terríveis.

Os sons que Fernando antes não conseguiu discernir agora estavam muito claros.

Eram galopes.


E os galopes eram tantos e eram tão amedrontadores.

Os vultos, que surgiam das margens da estrada de terra como se fossem convergir para barrar seu caminho, também eram amedrontadores.

O incêndio, que se iniciava mesmo na mata molhada, de todos os lados, também era amedrontador.

E incutia ainda mais medo a fornalha infernal que nascia do pescoço de cada uma daquelas bestas de quatro patas, sem cabeça e com línguas de fogo no rabo, na crina e no lugar da cabeça.

Cinquenta? Cem? Trezentas?

Como saber?

Era uma gigantesca manada de Mulas-sem-Cabeça.

Fernando sentia muito calor enquanto a bruxa corria e, em seus incessantes e desesperados esforços, cantava, cantava e cantava. A cada momento a melodia provocava um efeito novo na natureza: uma chuva que nascia e morria, raízes que botavam do solo e tentavam inutilmente deter as bestas, fortes ventos que atrapalhavam tanto o avanço das bestas quanto insetos.

Fernando sentiu medo e corria de olhos cerrados em seu desespero.

Abriu os olhos quando a mulher gritou para avisar de uma pedra na estrada, e desviou da mesma durante a corrida.

— Eu tenho que lhe tirar daqui! – Gritava a mulher, ofegante e com lagrimas de pura ira que banhavam seu rosto diante da impotência. Estava resignada com seu destino, mas não podia deixar que o rapaz caísse – Eu preciso do Muiraquitã vivo! Ò Muiraquitã, onde estiver, ouça o meu clamor! Una-se novamente à minh'alma e permita que eu salve esse pobre inocente!

Ela fez o pedido, mas nada aconteceu. Correndo e esgotando-se fisicamente, olha nos olhos desesperados de Fernando. Com o fim tão iminente, sente que o rapaz merece a verdade.

— Sem o Muiraquitã nós vamos morrer, esmagados como insetos.

Insetos.

Fernando então se recorda.

Quando capotou com a bicicleta quase morreu sufocado ao engolir o inseto. E se não fosse um inseto? E se fosse...

Um terrível urro se ouviu e uma dezena ou mais de bestas corriam na direção deles, vindo da direção para onde fugiam, cada uma delas vencendo a estrada de terra com suas quatro poderosas pernas.

Outro grupo de bestas vinha por trás, encurtando caminho até a retaguarda dos dois fugitivos, enquanto outras corriam nas duas margens da estrada, fechando o cerco e incendiando por onde passavam.

O desespero tomou conta de Fernando, enquanto a mulher corria de cabeça erguida. Lágrimas fugiam dos olhos dela, mas sua expressão era serena novamente. Iniciava uma canção em murmúrios, parecendo resignada.

O rapaz não estava. Queria gritar, chorar, falar.

Queria tudo, menos morrer.

— É culpa minha! – gritou Fernando, em um choro desesperado, sem parar de correr – Foi um acidente, mas eu acho que engoli!

— O que? – Perguntou a mulher, recitando pequenos cantos em tom de murmúrios, dando vida à natureza que atirava pedras, terra e troncos de árvore na direção das bestas, que pareciam não se incomodar com os ataques.

— Está dentro de mim, eu o engoli! – gritou Fernando, parando de correr e agachando-se no chão enquanto se entregava ao desespero e tapava os olhos com as mãos, porque as bestas estavam à metros deles, chegando de todos os lados.

A mulher parou ao seu lado, assimilando a informação por uma fração de segundo. Logo seus olhos se esbugalharam, quando ela entendeu.

— Muiraquitã! – gritou a mulher, cerrando o punho esquerdo como se fosse esmurrar alguém. E começou a cantar uma melodia em sussurros enquanto tocava com sua mão direita nas costas do menino encolhido no chão.

Ao toque da mulher, somado às suas palavras, uma luz verde irradiou do local exato onde o contato físico entre os dois foi estabelecido.



— Você o engoliu. E isso é um problema. – disse a mulher lentamente, mas com firmeza e em tom de censura.

Fernando venceu o medo, abriu os olhos e olhou em volta.

Não havia sinal das criaturas.

— Onde eles... – tentou falar Fernando confuso.

— Voltaram a ser parte da energia do planeta, estão ao nosso redor em sua forma benéfica. Se alimentam de nossos amor, mas como existe tanto ódio no mundo eles se materializam e tentam extravasar esse ódio. – e, dando a mão ao rapaz para se levantar, ela diz – Meu nome é Dorá, eu sou o que você pode chamar de bruxa, mago, feiticeiro ou o que quiser. Minha missão, e as dos que vieram antes de mim, é controlar a energia do planeta e não deixar que ela seja maculada pelas maldades do homem.

Com Fernando de pé, ela murmura um feitiço e as roupas dele ficam limpas. Ela murmura outra canção, e as roupas dela própria ficam limpas.

— Quando eu e meus antecessores temos sorte, eliminamos essas manifestações. Assim, essas criaturas ou entidades sobrevivem apenas no imaginário distante dos homens, como lenda, simples personagens folclóricos. – explica ela – Mas somos apenas seres humanos, é o poder do planeta que canalizamos através do Muiraquitã que multiplica milhares de vezes nosso poder mágico. Sem o Muiraquitã, a loucura que vimos aqui será regra, não exceção.

Ao ouvir isso, Fernando engole em seco.

— Mas eu o engoli. – Disse o atônito rapaz, ainda atordoado no meio daquele turbilhão de informações. - O que acontece agora? Como você vai nos proteger?

— Sem o Muiraquitã eu posso muito pouco, você mesmo viu. Preciso do Muiraquitã do meu lado a todo o momento senão, repito, o que aconteceu hoje vai acontecer todos os dias.

— Quer dizer... – disse Fernando, fitando a bruxa com os olhos marejados - ...que eu não vou poder voltar para casa?

A bruxa fita o rapaz, e seus firmes olhos lhe traem, demonstrando bondade e compaixão.

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