Prólogo

Ainda eram rumores quando decidiram fugir. Uma crescente tensão de reivindicações de territórios e poder. O cheiro no ar era de alerta e na pele sentiam a apreensão. Havia um cavalo que cavalgava rumo à uma incerteza, uma última e talvez ingênua esperança a qual ainda se agarravam. O vento estava frio, pois era noite. Mãos geladas seguravam as rédeas do animal com firmeza. Mãos quentes seguravam o máximo que conseguiam a cintura do homem que guiava o trote, mas enfrentavam certa dificuldade. A grande barriga que ostentava a apreensiva mulher ficava entre ela e seu marido. Ali dentro, estava uma criança cujos olhos eles não queriam que vissem a guerra.

O chão estava começando a ser preenchido por verde. As árvores balançavam e suas folhas pareciam falar com eles. Queriam poder decifrá-las para ter certeza do que estavam falando. Era uma saudação ou queriam que fossem embora? Não sabiam e não havia tempo para descobrir. Já tinham conhecimento do mau que os esperava, então, partiram confiantes ao desconhecido.

Mais um pouco e verde era só o que havia. Seguiram para um ponto de onde não se conseguia ver a fronteira e não seria possível que alguém os seguisse. Também não seria possível que eles soubessem o caminho de volta. Estavam completamente perdidos e inseridos na imensidão da floresta. Não havia mais possibilidade de desistir.

Desceram do animal e improvisaram um acampamento. Era terrivelmente desconfortável, mas já haviam feito o possível. Teria de ser suficiente. A essa altura, já tinham certeza de que o farfalhar das folhas significava um sonoro 'Vá embora', mas não tinham para onde ir. Não que aquele lugar se importasse com suas condições.

Ainda não haviam se deitado para dormir quando ouviram alguém se aproximar. Não havia possibilidade de eles terem acessado dentro de si um estado de alerta, já que nunca o haviam deixado desde os primeiros rumores, mas a tensão conseguiu ficar mais viva e deixar seus músculos ainda mais petrificados de medo.

— Olá, o que fazem aqui? — a voz era doce e a mulher carregava um sorriso no rosto, mas naquele breu a única coisa que conseguiam ver eram seus olhos incisivos.

O homem deixou apenas o manto que cobria a protuberância da barriga da mulher e disse, num fio de voz:

— Por favor. — seus olhos suplicavam, e os de sua esposa não estavam diferentes.

A mulher os observou por um instante e soube, pelos espasmos de medo em seus músculos, que eles ouviram as lendas. Sabiam onde estavam se metendo. O que significava que estavam encurralados. Então ela lembrou e teve um sentimento de já ter vivido isto antes. Sua memória trazia inúmeras pessoas que abordou e estavam na mesma situação que eles. Desejou que pudesse dar a estes escolha e explicar as coisas, mas não havia escapatória. Uma vez dito o que estava prestes a dizer, não teria volta.

— Venham comigo. — estendeu a mão. O sorriso não deixava o seu rosto.

— Para onde vai nos levar? — perguntou a que trazia a criança, saindo de trás do marido.

— Para um lugar de descanso e paz. — olhou para ela pela primeira vez. — Não é por isto que procuram?

A mulher se levantou primeiro. Ela sabia que estavam em terreno desconhecido e teriam que pagar para ver, então aceitou o seu destino. As mãos, no entanto, repousavam firmes na frente de seu corpo, numa tentativa ingênua de proteger o seu ventre.

O homem tentava apagar a fogueira quando a mulher da floresta olhou para o fogo. E seus olhos fixos, como que conversando com as chamas, as fizeram se recolher até ela. Parecia que o fogo a pertencia e havia voltado para si, para seu lar, sendo sugado por e para seu olhar.

Suas retinas pareciam queimar quando ela afirmou com firme decisão:

— Podem deixar tudo para trás. — uma pausa, então continuou: — Não vão mais voltar.

~~~

Já estavam há muito tempo trilhando o caminho. O homem com seu cavalo e a esposa segurando a cintura da mulher em outro. Estaria ela ajudando, ao carregar com muito mais habilidade e leveza a gestante, ou seria ela refém? Um suor gelado escorria por suas peles em razão da tensão e das longas horas em absoluto silêncio.

À medida que entravam mais no verde, percebiam que a floresta os recebia de um jeito diferente. As folhas de trás cochichavam sobre eles para as folhas da frente. Já não eram mais estranhos. E estavam acompanhados. Já não eram mais intrusos.

A luz já entrava por entre os vãos das árvores e eles sabiam que estavam chegando. Só não esperavam o que estavam prestes a ver.

Havia casas. Sim, casas! Estavam numa vila, como as de fora, mas diferentes em sua própria maneira. Havia pessoas, muitas pessoas! Não selvagens, elas interagiam entre si e pareciam se despedir umas das outras para deitar em suas camas no conforto de seus lares quando o casal chegou. Toda a atenção voltou-se para eles que, por sua vez, admiravam a mulher que os havia abordado. Agora, com o auxílio da luz, conseguiam ver como era.

O seu cabelo crescia para cima e era adornado de várias finíssimas tiaras de ouro. Nelas estavam incrustadas pequenas pedrinhas que faziam o metal, já reluzente, brilhar ainda mais. Sua pele era tão escura quanto suas íris e sua boca protuberante sorria para todos que acenavam para ela quando passava. Ela era forte, alta, imponente. Suas roupas combinavam muitas cores com dourado e sua barriga exposta exibia músculos bem definidos. Não havia um pelo que se arrepiasse quando o vento batia. As pessoas a chamavam princesa.

O casal não conseguia acreditar que haviam sido abordados por alguém da realeza. Uma futura monarca os levava. Ela era radiante e exalava poder. Mas, pensaram por um segundo, se apenas a princesa havia consumido o fogo com tanta facilidade, então deveriam temer e tremer pelo soberano do lugar.

O reino escondido da Floresta de Tikarbarol se erguia imponente na frente dos dois novos chegados. Era um lugar imenso, diverso e com suas peculiaridades. As casas eram baixas e não tinham segundo andar. As árvores se misturavam às residências, às vezes crescendo no meio delas, e pareciam fazer parte de uma construção meticulosamente planejada. No chão não havia estrada. Era tudo verde e tinham algumas flores e plantas diversas que cresciam um pouco mais que o normal aqui e ali. Os animais selvagens andavam livremente pelo lugar se misturando aos domésticos. As pessoas usavam poucas roupas, mas estas eram muito peludas, e muitos acessórios, assim como a princesa. Eram mais altos que estavam acostumados a ver. Seus corpos eram lisos e suas peles brilhavam. De muito longe, era possível ver o topo de um castelo. O casal respirou fundo o ar realmente puro pela primeira vez. Se sentiam revigorados.

Então entenderam. Ninguém poderia saber. A existência deles dependia disso. Nunca mais sairiam dali.

— Estão com fome? — perguntou a princesa.

~~~

As pessoas esperavam ansiosas do lado de fora da casa na qual uma mulher gritava. Lá dentro, o suor escorria de seu rosto de tal maneira que deixava os seus cabelos molhados. O marido segurava sua mão e suava mais que ela. Suas roupas estavam coladas em seu corpo e toda a sua pele pegajosa. Ele não podia fazer nada, mas confiava nas parteiras que a auxiliavam. Tinham muita experiência.

Sentiram como se o mundo tivesse parado por um segundo e fecharam os olhos com força. Então uma das mulheres ergueu uma criança nas mãos e a levantou bem alto. Todas em volta gritavam com alegria. Os que estavam do lado de fora ouviram e entenderam o sinal. Então começaram também a comemorar.

Uma linda menininha foi para os braços de sua mãe. O pai chegou mais perto para olhar nos olhos de sua filha. Então, os dois encostaram a cabeça na recém-nascida, com um largo sorriso nos lábios e quentes lágrimas se misturando ao suor. Foi num dia quente e de muito sol que Maria nasceu.

~~~

Ela tinha nove anos quando os rumores se tornaram reais. As conversas em casa já estavam calorosas, pois, depois de estourada a guerra, o mínimo que o reino de Tikarbarol podia fazer pelos estrangeiros em seu território, era que dessem a permissão para que fossem defender o seu país, a sua terra natal. Haviam deixado para trás parentes e amigos, toda uma vida. Viveram nove anos ali, mas não fora suficiente para que deixassem de se importar. Viviam com os tikars, mas não tinham a indiferença deles. Seus pais achavam que conseguiam esconder, mas a criança sabia e sentia. A criança sempre sente.

O reino, ciente de sua missão, os abençoou quando foram embora. Mesmo isolados, eles sabiam o que estava acontecendo e o quão perdida era aquela luta. Ainda assim, a família de Maria decidiu deixar o conforto e lutar pelos seus. Eles achavam que não, mas ela entendia. Entendia e os admirava imensamente, o que não quer dizer que a dor fosse menor que o esperado quando ela soube que não iriam mais voltar. A família que cuidou dela desde que seus pais partiram deu a notícia da forma mais delicada possível. Ela sabia que eles a amavam. Hugo, o filho deles que tinha sua idade, era uma ótima companhia. Mas se sentia deslocada, esquisita. Não achava que estes sentimentos eram justos, já que eram tão amáveis com ela que ela se sentia culpada por desejar outra coisa. Então, quando ficou sabendo que seus pais haviam perecido em batalha, foi para a floresta.

A mata que rodeava o reino e formava as fronteiras de Tikarbarol era silenciosa, escura, confusa. Ela havia se tornado seu refúgio porque era justamente desta forma que ela se sentia. Tentava olhar para um futuro, mas seus caminhos estavam escuros e confusos. Tentava achar dentro de si uma voz que a guiasse, mas só encontrou silêncio. E, sobretudo, se sentia sozinha. Então estar sozinha condizia com sua situação. Ela não tinha ninguém e não queria fingir que havia apenas trocado de família. Não era justo com seus pais. Eles estavam solitários debaixo da terra, então ela se fazia igualmente solitária nos fundos da floresta.

Uma pedra ricocheteou nas folhas e ela olhou para baixo.

— Ei!

— O que foi desta vez? — perguntou, dirigindo seus grandes olhos para ele.

Hugo sempre ia atrás dela e sempre a conseguia encontrar. Era como uma caçada. Ela o sentia chegando e fugia, então ele ia atrás. Algumas vezes ela apenas se cansava, então o tratava com absoluto silêncio. Não desta vez. Já estava irritada e um tanto paranoica pela escassez de comida, o sono desregulado e o excesso de isolamento auto infligido.

O garoto, com um enigmático olhar, mostrou duas pedras em suas mãos que reluziam e balançavam, pendendo de duas cordas.

— O que você está fazendo com isto?

— Eu fiz uma coisa para você. — disse, estendendo a mão.

— O que é? — as sobrancelhas franziram.

— Você precisa ver. — respondeu, com um sorriso.

— Me deixe em paz, por favor. — respondeu, e logo após se perdeu novamente entre as folhas densas que pendiam dos galhos da árvore na qual estava escondida.

Ele respirou fundo e saiu andando devagar. Maria sabia o que aquilo significava, então desceu em absoluto silêncio e seguiu ele. Não fosse aquelas pedras que estavam na mão dele, ela teria o deixado ir embora, mas precisava ver do que aquilo se tratava. Era sobre ela, era sobre seus pais.

Os passos dele foram interrompidos. Ela avançou, já não fazia mais sentido se esconder. Então viu.

— O que significa isto? — perguntou, olhando para a sua frente.

— São túmulos. Eu mesmo fiz. — disse, então estendeu a mão para que ela avançasse.

Havia muitas pedras que reluziam e muitas flores que as cercavam. Era lindo. As plantas que ali cresciam não davam a eles um aspecto de morte, sim de vida. Ela abaixou e tocou os túmulos.

— Eles estão aqui? — as lágrimas já escorriam de seus olhos.

— Não, Maria. Mesmo que eles estivessem. Eles já se foram. Eu li que túmulos servem para lembrança. Para você seguir em frente sem se esquecer dos que se foram. — ele abaixou ao lado dela. — Lembrei de você. Então agora você pode voltar para casa e voltar a brincar comigo.

Ela ainda olhava e alisava as flores e as pedras.

— Por que você fez isso? — sua voz trêmula.

— Quando eu sinto saudade de você, eu venho te visitar. Então quando você sentir saudade deles, você pode vir visitar também. Não precisa mais ficar aqui o tempo todo.

Ela, repentinamente, abraçou ele e o derrubou com sua intensidade.

— Vamos voltar para casa. — disse Hugo.

— Vamos voltar para casa. — repetiu Maria.

Ela tinha apenas nove anos quando tudo aconteceu. Nunca iria imaginar que doze anos depois a tensão iria retornar por conta da mesma pessoa, mas por novos motivos.

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