11 Naíva
A vontade de Hilda era de voltar para o seu quarto e esperar pelo próximo embate no conforto de sua cama enquanto pensava na vida e evitava olhares indesejados, mas não foi assim que aconteceu. Ela não poderia sair dali, então arrumou um canto para se encostar e poder assistir aos outros até que visse alguém chegando perto do quadro para renovar os nomes das próximas combinações de embates. Já que era impedida de se isolar em seu quarto, então decidiu observar e absorver estratégias de luta dos demais competidores. Era por volta da hora mais quente do dia, seus músculos queimavam só de estarem parados e o vento havia cessado de soprar do Norte.
Ainda havia algumas manchas de sangue de seu adversário em seu machado quando ouviu passos se aproximando.
Boris vinha passando com seu bando atrás. Ele tinha a cabeça e a barba raspada. Seu traje deixava metade de seu peitoral nu e, onde o cobria, tinha uma grande ombreira. Sua roupa era cheia de cintos e caía em uma saia de quatro partes repartidas, as coxas grossas expostas e uma bota que se encontrava com joelheiras de metal. O escudo em suas costas largas e a lança em sua mão somados a sua atitude davam a ele uma aparência altiva e graciosa. Ele parecia acima daqueles que o iriam avaliar.
Ao passar por Hilda, provocou um vento em seu rosto que trouxe com ele o seu cheiro de metal e suor. Ela virou o rosto, enojada por sentir inveja e medo. Ele parou, falou alguma coisa aos seus companheiros que provocou risos e continuou. Ela não sabia se deveria se ofender ou se estaria sendo muito paranoica, afinal, não havia ouvido o que ele tinha dito. Um turbilhão de pensamentos começou a ecoar e gritar em sua cabeça. Respirou fundo. Precisava de água.
Olhou para a direção dele e o viu comentar algo com um dos superiores que saiu e começou uma discreta movimentação em volta do quadro. Quando saíram de perto, estava tudo mudado e atualizado. Era exatamente isto que ela estava esperando, mas seu orgulho a impedia de se sentir agradecida. Boris leu o que estava diante dele e olhou para ela. Quando seus olhos se encontraram, um calafrio subiu pela espinha dela, mas não deixou seu corpo tremer, sustentou o olhar até que ele desviasse e fosse embora. Ao sair, passou por ela novamente, desta vez sério e determinado.
Assim que ele estava de costas para ela, deixou seu corpo relaxar e sentiu uma onda de três calafrios seguidos. Desejou que ninguém estivesse prestando atenção nela naquele momento.
Ao se recompor, se dirigiu ao quadro para ver o que estava escrito.
Álvaro. Era este o nome de seu próximo adversário.
Ela sabia quem era pois havia ficado impressionada com suas habilidades. Respirou fundo ao se dar conta de que era novamente um oponente de muita agilidade. Ele usava arco e flecha, uma arma que poderia ser usada de longa distância. O que seria dela com um pesado machado de lâmina dupla? Poderia tentar aguentar lutar com uma ou duas flechas fincadas no corpo, mas isto se valesse a pena. Se, ainda assim, não tivesse a oportunidade de chegar perto dele, então seria gradativamente humilhada.
Enquanto pensava, avistou Álvaro vindo em sua direção.
— Então, você será minha próxima oponente? — perguntou, parecendo se divertir.
— Aparentemente sim. Apreensivo? — provocou ela.
— Nem um pouco. — disse, estreitando os olhos. — Você?
— Não vejo motivos para isto. — Mentiu.
Ele sorriu. Seus longos cabelos brancos contrastando com sua pele bronzeada fazia seu sorriso irradiar. Quase se podia sentir uma brisa quando ele se mexia.
— Vi o que você fez com o pobre Itzal. — Levantou as sobrancelhas. — Cruel.
— Itzal... — Olhou para o horizonte tentando lembrar do rosto e associá-lo ao nome. — Então era este o nome dele?
— Não sabia o nome do homem que você nem mesmo hesitou em matar? — Álvaro não parecia mais se divertir com a conversa.
— Não é meu trabalho saber nomes. — Como por um reflexo, escondeu a parte de seu machado que ainda tinha uma mancha de sangue e a limpou discretamente. — As ordens são dadas e eu as executo.
— Como um bom soldado deveria ser. — Seus olhos estavam transtornados, mas seu rosto tinha o semblante de quem jogava conversa fora. Sabia ser discreto.
— Exato, e você deveria pensar da mesma forma. — Ela franziu o cenho e guardou o machado nas costas.
— Deveria? — Seu olhar ficou perdido e distante. — Não sei, Hilda. Não gosto muito de como as coisas funcionam por aqui.
— Então por que ainda não foi embora? — Cuspiu as palavras e encostou na parede atrás dela.
— Porque eles mataram minha família. — Respondeu, desta vez num tom de voz mais baixo.
— Isto não deveria mantê-lo longe?
— Pelo contrário. — Ele continuava sussurrando. — Quero respostas e vingança.
— Como pretende se vingar? — Ela cruzou os braços e o olhou com altivez. — Ganhando de mim num embate?
— Sei de onde você é, Hilda. — Pela primeira vez, ele a olhou nos olhos e o que ela viu em seu semblante foi tristeza e súplica, apesar de seu tom provocativo. — Não acha que, para alguém de Gardeno, você está muito leal ao Sul?
— O que um homem de Marbordo sabe sobre Gardeno? — Indagou ela, devolvendo a provocação, mas, no fundo, já estava intrigada.
— Sei que sua região é uma das mais visadas pelos Sicários do Sul. — sussurrou ele.
— O que você quer? Tentar me convencer de que estou errada? Quer que eu desista e você ganhe?
— Só quero que você pense. — disse, voltando para a sua expressão que não dizia absolutamente nada.
— Pensar no que? — Ela descruzou os braços. — Só quero que este tormento chamado elik acabe! Você não sabe o que isto faz com as pessoas.
— Sei bem, senti os efeitos na pele. — Ele mal tinha terminado de falar, e lá estava novamente, seu semblante vulnerável e as visíveis sequelas de momentos de muito sofrimento.
— Entendi. — Hilda riu. — Você pretende se infiltrar para contrabandear mais deste veneno!
— Perder a minha família acabou comigo, mas depois de um tempo me trouxe um propósito. — Respondeu, visivelmente ofendido. — Você me soa muito mimada para entender.
— Não sou mimada. Perdi meu pai na guerra e minha mãe para este entorpecente. — Ela começou a alterar o tom de voz, o que o fez olhar para os lados para varrer o lugar atrás de pessoas que poderiam estar prestando atenção naquela conversa. — Pelo contrário, além de ser sozinha tenho um fardo para carregar. Nunca sucumbi a nenhuma alternativa fácil, diferente de você.
— Realmente, lutar ao lado do inimigo que levou o seu pai me parece ser muito difícil. — Ele parecia incrédulo. — Acho que você está mais fora de alcance do que imaginei. — Terminou, e se virou para ir embora.
Antes que ele estivesse longe demais, Hilda o puxou pelo braço.
— Seu cabelo te denuncia, mas e quanto a mim? Como soube que eu era de Gardeno?
Álvaro puxou sua túnica e revelou chaves pintadas em branco por toda a sua clavícula até quase o seu pescoço.
— Eu estava lá, Hilda. Estive com sua mãe depois que você saiu. Não acha que está sendo dura demais ao querer causar sofrimento porque você sofreu? — Havia um tom de conselho com ternura em sua voz, mas ela se sentiu ofendida pois parecia que ele era superior a ela em sabedoria.
— Do que você está falando? — Ela afrouxou o apertão no braço dele, então o pegou novamente com mais força que antes. — O que você sabe da minha vida? Não sei o que minha mãe te contou, mas você não me conhece. Se estou aqui é por um motivo nobre e se pessoas da minha província morrem é porque se envolveram com o que não deviam.
Ele deu um sorriso com uma mistura de sarcasmo e espanto.
— Nem você acredita nisto. De todas as pessoas, você era a que eu menos queria ter de lutar, mas acredito que a deusa Chave saiba o que está fazendo. — Ele falava com as sobrancelhas arqueadas ao máximo. — Então que vença aquele que ela julgar melhor para os seus planos.
Ela finalmente soltou o braço dele, que se recompôs.
— Senhorita Naíva. — disse, fazendo uma reverência. Então foi embora.
Ela estremeceu ao ouvir o sobrenome de seu pai na boca de alguém depois de tantos anos.
Mais tarde naquele dia, soube que já havia vencido o segundo embate e iria direto para o terceiro. Álvaro fora encontrado morto, dilacerado. Sua barriga aberta e sua pele esfolada onde estavam as marcas das chaves. Seus cabelos brancos tingidos de vermelho carmesim e seus brilhantes olhos sem vida.
Logo em seguida, Hilda soube de mais uma coisa que não a deu tempo de digerir a primeira notícia. Ela estava nervosa, tensa e o medo crescia. Boris seria o seu próximo e último adversário.
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