09 Gênesis

A árvore se estendia até um ponto que não se era possível enxergar e, com isto, parecia infinita. Os galhos retorcidos pela idade, mas graciosos de uma maneira única faziam espirais nas suas pontas. O farfalhar das folhas ao entrar em contato com a brisa leve do fim de tarde ajudava com a sensação de frescor e alívio depois de um dia de muito sol. A sombra também trazia conforto e abraçava a todos que chegavam. As cores daquela árvore estavam envelhecidas, mas ainda assim eram vívidas quase como se a idade a trouxesse, ao invés de desgaste, sabedoria. Não havia uma pessoa sequer que olhasse para aquele monumento e não repensasse a sua presença, se era ou não digna de estar ali.

Em muitas folhas daquela árvore, estavam chaves penduradas. Algumas já estavam caídas no chão, mas a maioria balançava suspensa seguindo os movimentos das folhas que, por sua vez, seguiam os movimentos do vento. Era um lugar que, ao mesmo tempo que despertava deslumbramento pela magnitude, também trazia certo respeito pelo mesmo motivo. Uma reverência que despertava certo silêncio e ponderar de palavras. Isto se apoderou ainda mais de Hilda quando entrou no tronco.

Apesar de ser uma árvore enorme, não havia dúvidas de que o tamanho que via por dentro era maior que o de fora. Talvez uma ilusão ou truque, mas não parecia. Soava genuíno e, em seu coração, ela tinha certeza de que aquilo não era algo normal, algo que poderia ser explicado em poucas frases e de maneira banal. Havia algo de divino ali, um divino que não presenciara por toda a sua vida. Desejava ter sido avisada sobre o que encontraria para poder se preparar, então se deu conta de que nem ela mesma sabia que palavras usar para alguém que nunca havia estado ali pudesse ter alguma noção do que esperar.

Alguns pontos de luz, que ela não sabia de onde vinha, iluminavam o local. Cada pessoa que entrava procurava um canto, uma quina que pudesse se acomodar. Ela seguiu para dentro e, quase como se estivesse sendo guiada, achou seu lugar. Não sabia como havia tanto espaço para todos, mas, em algum momento, percebeu que ninguém fora deixado de fora. Então alguém começou a falar. Era estranho que conseguisse ouvir de onde estava, pois a voz parecia vir de muito longe dela, mas, ao mesmo tempo, teve a sensação de que não havia uma pessoa sequer que não conseguisse ouvir perfeitamente o que estava sendo dito. Enquanto olhava para a parede, de joelhos como todos, escutava com atenção:

— A deusa Chave separou este dia para que pudéssemos relembrar nossas origens. Saber de onde viemos, para que estamos aqui e para onde vamos é essencial na caminhada da vida. Hoje, iremos visitar os primeiros dias. Não resistam! Não há como fugir de sua voz, ainda que ela esteja apenas sussurrando. Elsutita precisa ouvir, o povo deste lugar precisa lembrar quem é e do que é capaz. A deusa Chave está do nosso lado, então, concentrem seus corações e todos os seus sentidos para sua mensagem:

"No princípio, havia apenas água. As duas raças originárias não se misturavam, mas viviam em harmonia: Marvirinos, de Lagói e Feýnos, os extintos. Até que Apolo, um marvirino, se apaixonou por Amanda, uma feýna. Um amor que foi visto de maneira desconfiada, mas não com completa reprovação por nenhuma das partes. Naquele tempo, não havia conflitos, guerras ou desavenças. Todas as novidades de um mundo eram excitantes demais para o outro e isto tornava as coisas cada vez mais intensas. Eles se amaram de todas as formas e com todas as forças. Era como se, para eles, não houvesse mais ninguém no mundo até que a própria existência se resumisse a amar e ser amado.

Então Apolo a engravidou. O conflito que não ocorria no mundo surgiu dentro de seu coração. A escolha que faria poderia trazer vida ou maldição para o mundo, por toda a eternidade. Quando ele decidiu fugir, se livrou do fardo que o consumia por inteiro, mas feito isto, o conflito saiu de si e infectou o mundo. Alguém precisaria lidar com as consequências dos atos dele, se não ele, então Amanda e os próximos a ela. As culturas eram diferentes e os marvirinos não o questionaram quando, de repente, ele voltou e constituiu família com uma de sua raça. Da mesma forma, os feýnos não incentivaram Amanda a ir atrás do pai de sua criança e buscar por justiça, mas o sentimento de impunidade pairava e fazia sombra sobre eles. As relações entre as raças se mantinham, mas havia um sentimento velado que esquentava e estava prestes a ferver e gritar como uma chaleira no momento em que a água atinge o ponto de ebulição.

Foi neste ambiente que um bebê mestiço cresceu sem pai, mas isso não o impediu de ir atrás daquele que havia deixado um lugar vazio, e procurar por respostas. Amanda disse seu nome, de onde ele tinha vindo e Danilo entrou no território marvirino decidido, mas saiu transtornado. Apolo, feliz com sua nova família, o rejeitou, chamou de mentiroso, não o reconheceu como filho e insultou sua mãe e a raça feýna. O transtorno, então, deu lugar à revolta que arrancaria a paz do mundo para sempre.

Num impulso de raiva e sentimento de rejeição, Danilo pega uma lâmina e fere seu pai com um golpe. O sangue marvirino se mesclando ao azul do mar enquanto os filhos mais novos assistiam a vida se esvair de Apolo. Esta atitude trouxe a rivalidade velada para o concreto, a inimizade fora plantada. Marvirinos ficaram ao lado da viúva que nada sabia e dos filhos que ficaram sem pai, enquanto os Feýnos, por sua vez, abraçaram a mulher e o filho abandonados. Do primeiro sangue derramado, outros se seguiram e, assim deu início ao chamado Milênio do Caos, ou Guerra do Milênio, como era conhecida anteriormente. No último dia de confronto entre as duas raças, a abandonada e a viúva, até então muito protegidas por seus respectivos povos, decidiram se enfrentar.

O primeiro choque entre elas fora tão carregado de força, dor e mágoa que gerou um poder capaz de afastar as águas onipresentes e fazer surgir a terra que hoje conhecemos como Torrídia. Além de tudo, o golpe proferido por ambas carregava consigo a solidão que sentiam, então, da terra ainda úmida nasceu uma nova raça, os humanos. Estes novos seres nascidos da dor da solidão povoaram toda a Torrídia e, com isto, Feýnos e Marvirinos, deixando os anos de guerra para trás, deixaram o mar para conviver num novo mundo.

Enquanto Marvirinos buscaram terras que ficassem mais próximas do mar e de suas origens, Feýnos foram para o lado contrário e de Torrídia e construíram seu reino no fundo da mais densa floresta. A um chamaram de Lagói, a outra de Tikarbarol, respectivamente. Ambos os povos viviam em harmonia com os humanos, mas mantinham a distância entre si. Era como se estivesse tudo bem novamente, mas o mundo já havia conhecido a violência, o homicídio, a mágoa e o rancor. O sangue de Apolo diluído nas águas salgadas nas quais navegavam e nas águas doces nas quais saciavam a sede. A violência como solução já havia sido conhecida como uma opção, não havia como voltar atrás.

Foi então que, dentro de uma árvore como esta, no antigo Reino de Tikarbarol, um feýno desobedeceu às ordens e conheceu a magia. Dentro do tronco, havia dizeres proibidos, mas ele leu de suas paredes. O conhecimento o deixou obcecado, o fazendo voltar vez após vez para ler novamente dentro do tronco proibido. Sua aparência definhava à medida que ele se tornava cada vez mais viciado e louco. Os féynos, cujas bocas e olhos eram absurdamente largos e assustadores para os humanos, conseguiam esconder a verdadeira forma para conviver com os demais. Este, no entanto, não tinha mais controle sobre isto. Até mesmo seus olhos perdiam, aos poucos, as cores de suas íris. Seu nome era Ângelo de Lumo e, após conhecer a violência, através dele, o mundo conheceu o vício.

Ele foi expulso de Tikarbarol e passou a viver em Sudelne, onde transformou todo o seu conhecimento no que conhecemos hoje como magia. Ressentido por ter sido rejeitado pelos seus, passou a perseguir outros feýnos e usar seus corpos para praticar necromancia. Não satisfeito, decidiu ensinar aos humanos o que sabia, desta forma os ensinamentos da denominada por ele Ordem de Magia e Necromancia foi passada de geração em geração. Com a entrada da magia no mundo, veio com ela as guerras e fomes. Os conflitos passaram a ser por superioridade e imposição do que se acredita. Desta forma, quem via o outro sofrer e precisar, não estendia a mão por achar que estes mereciam.

Lagói tentou interferir e dar um ultimato para Tikarbarol resolver o problema que eles geraram ao mundo, mas os feýnos alegaram já terem resolvido o problema quando expulsaram o corrompido e que ele encontraria o próprio destino cruel. Isto mudou quando eles começaram a ser caçados para, além de rituais de necromancia, fins de extinção. Tikarbarol foi obrigada a reagir, mas as primeiras tropas mandadas por eles foram dizimadas e, com isto, veio o alerta: haviam subestimado o inimigo. Ângelo, recebendo pelas vozes da magia que sussurravam em seu ouvido uma nova identidade, passou a chamar-se Mállumo.

Se utilizando das tropas feýnas abatidas em batalha em seus rituais, ele se tornou muito mais forte que antes. Na batalha seguinte, mais feýnos caíram e, após esta derrota, Mállumo passou a expandir seu território como um monarca conquistador e a perseguir aqueles de sua raça que ainda restavam. Ele havia sido retirado de seu lar e ninguém ficara ao seu lado, então conheceriam a dor da morte, ainda que fossem imortais. Desta vez, foi Tikarbarol quem pediu ajuda de Lagói, mas esta lavou as mãos, pois não só havia avisado da grandiosidade da ameaça como sabiam que se fossem marvirinos sendo caçados eles não iriam ajudar. Se Tikarbarol ignorara o alerta anterior, então que resolvessem o problema sozinhos.

Em uma última batalha, a rainha feýna decidiu guerrear mesmo esperando um filho. Após lutar até a morte, retiraram de dentro dela a sua criança, que se revelou ser fruto de um romance fora do casamento, pois nascera com traços predominantemente marvirinos. O filho, levado para Lagói, foi reconhecido como um deles. A esta altura, no entanto, já era tarde demais para que pudessem interferir e da guerra, após o Milênio do Caos, nasceu uma nova criança que cresceria sem um de seus pais. Além disso, o bebê viveria sem a oportunidade de conviver com a parte do sangue de sua mãe, pois os feýnos foram apagados até a extinção. O Reino de Tikarbarol destruído e abandonado.

Mállumo, o último feýno, se casou com uma humana mortal e teve filhos e filhas. Sua primogênito, no entanto, não simpatizava com as ideias de seu pai. Mesmo contrariada, ela aprendeu magia, mas se utilizou dela para assassinar seu pai, o transformando em pó. Assim como surgiu, ele acabou. Mas a semente estava plantada na humanidade, e muito seguidores restantes foram para Montoceno, onde a magia se prolifera até hoje. A filha mais velha dispersou a Ordem de Magia e Necromancia e deixou Sudelne, se estabelecendo onde estamos hoje, Elsutita. Aqui, a maioria era de humanos até que ela se estabeleceu e de seus filhos, a população desenvolveu uma nova raça: Súbens.

Nós que aqui vivemos não somos humanos como o resto do mundo, nem imortais marvirinos como Lagói. Viemos da Chave que nos libertou daquele que deu origem ao vício. Somos seus descendentes, filhos da primeira filha. Somos mais fortes e mais habilidosos que estamos acostumados a pensar. Não precisamos viver como humanos para conviver em harmonia com eles, estão que possamos descobrir a nossa força proveniente daquilo que restou dos extintos feýnos."

Após ouvir toda a história da origem de seu povo, Hilda saiu dali extasiada e, enquanto andava de volta para o Forte, tinha a impressão de ainda estar ouvindo a voz daquela mulher bem no fundo de sua cabeça, quase na nuca.

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