08 Intrusa
No dia de descanso que antecedia o início da fase dos embates, acordou cedo. Naquela manhã, tentara dormir mais que todos os outros dias, mas acabou alcançando o contrário. Brigava com a cama até que se deu conta de que, na verdade, brigava consigo mesma. Em sua mente, um turbilhão de pensamentos passava freneticamente e, por estar tentando fugir deles, acabavam por dominá-la facilmente e deixá-la desperta usando de todas as suas forças para dormir. Acontece que o sono não vem com a força, vem com o relaxamento, coisa que definitivamente não era uma realidade na sua vida naquele momento.
Sentia a necessidade de lar. Precisava ver como estavam as coisas em casa antes de começar a competir, pois precisaria de toda a sua atenção para as lutas.
Então, se levantou de sua cama minúscula naquele quarto de pedras. Dormira sozinha. Seu colega de quarto não estava mais ali depois do ocorrido. Todos se certificavam de manter ainda mais a distância que já mantinham desde que chegara ali. Não se sentia sozinha, no entanto. Estava sempre acompanhada de pensamentos intrusos. Naquela manhã, por exemplo, imaginara inúmeras vezes que estava com o machado na mão e jogava ele para a frente, mas ele voltava e arrancava uma lasca de sua cabeça. Quando olhava para a arma ao lado de sua cama, às vezes a via tomar vida e a mutilar. Então voltava a si, mas ainda não permanecia no presente. Pensava em sua mãe, em seu irmão, tentava lembrar e manter vivo o rosto de seu pai. Pensava no elik e nas consequências do abuso da substância que sua mãe estava enfrentando. Precisava voltar, precisava ver como eles estavam. Tinha que, ao menos, organizar e colocar nos eixos o que conseguisse no pouco tempo que tinha. Não podia mais fugir.
Colocou um colete de couro que servia como bolso para carregar o pesado machado de duas pontas nas suas costas, afivelou bem forte até sentir um leve incômodo e encaixou a arma ali. Havia aposentado as roupas longas e deixava sempre suas pernas e braços de fora, ambos musculosos pela genética que carregava. Abriu e fechou a porta atrás de si, a trancando com uma chave que carregava sempre que podia, mesmo quando era obrigada a deixar o quarto aberto. Não queria sofrer algum imprevisto por retaliação de seus queridos colegas. Sentia o ambiente hostil no qual estava inserida, não queria ser paranoica, mas tentava agir com cautela equivalente ao lugar no qual repousava sua cabeça.
Desceu os inúmeros degraus em espiral, que emitiam um som oco cada vez que ela pisava neles. As escadas de pedra, protegidas do sol quente de Elsutita, estavam geladas. Era um contraste interessante sentir um certo refresco em meio aquele calor constante, mas não era de todo bom, pois esta diferença somada à escuridão que reinava no lugar, deixava o ambiente mais sombrio que acolhedor.
Hilda pensou que talvez esta fosse ser a sensação ao chegar em casa. Após descer as escadas, atravessar o pátio e os portões do Forte e seguir caminho pela estrada, não pensava em ser bem acolhida ao chegar.
No entanto, depois de passar pela poeira que separava sua vizinhança do seu local de treinamento, ela avistou pessoas nas ruas conversando de maneira animada. Comentavam sobre o clima, os acontecimentos dos dias anteriores, coisas que estavam por vir e todas as demais trivialidades da vida. Estavam em paz e harmonia. Hilda se sentiu levemente intrusa naquele lugar, pois assim que colocou os pés ali, olhares não muito amigáveis se voltaram para ela. Todos eles, sem exceção alguma, repousavam especificamente em seu braço esquerdo. Então se lembrou.
Assim que o rei fora embora no dia anterior, guardas a tomaram pelo braço. O machado longe dela e perto de onde o seu treinador jazia, morto, sem um pedaço de sua cabeça. Hilda não resistiu, se debateu ou tentou se desvencilhar. Apenas seguiu com eles, pois sabia que iriam cumprir a vontade do rei e não havia o que fazer para sobrepor isto. Pararam no meio do pátio, ao lado de um recipiente de ferro grosso e pesado cheio de carvões em brasas. Perto dali, estava um calor quase insuportável, ela começou a suar por isto e porque sabia o que estava por vir. Desejava este momento há muitos anos, mas não estava pronta para as circunstâncias inusitadas nas quais receberia o que tanto almejara.
Um guarda a segurou, enquanto o outro tirou um vergalhão preto com o símbolo de uma serpente vermelha dando um bote no meio de um círculo. Então era isto, este seria o momento. Não era o que pensara, nem chegava perto, mas poderia conviver com um imprevisto. Não era um imprevisto, no entanto, era uma morte que ainda não havia decidido se fora acidental ou não. Quando pensava em toda a sua determinação para cumprir o desafio dado pelo rei, que era basicamente constituída de ódio pelo seu treinador, não parecia tão acidental. Quando lembrava dos assédios dele, se orgulhava de não ter sido acidental. Quando voltava a si, no entanto, a dúvida pairava.
Sentiu o ferro queimar o seu braço. Uma lágrima solitária escorreu de seu rosto imóvel e caiu gelada em seu pé, escorrendo até o chão.
Ao se lembrar, sentiu novamente a lágrima gelada escorrendo até seu pé, mas era apenas suor. Estava chegando em casa.
Sentiu a serpente vermelha em seu braço esquerdo esquentar com o peso dos olhares em sua vizinhança, contudo, não se importou. Sabia que aquele medo significava que a teriam de respeitar. O mal materializado encontraria a morte, fossem estes seus vizinhos ou não. Que se escondessem e distribuíssem olhares hostis, então. A partir dali esta seria a sua realidade. Havia sido escolhida a dedo pelo próprio rei, não iria se permitir ser intimidada por pré-julgamentos.
Se deteve por um momento ao chegar em sua casa. Queria tentar observar como estavam as coisas antes de entrar, então se afastou da entrada e se locomoveu em direção às janelas. Não acreditou no que viu.
Havia uma mulher na cozinha cortando legumes e sorrindo. Uma fumaça flutuando da casa e invadindo as narinas de quem passava perto com o aroma de pilko, pequenas bolinhas brancas que derretiam na boca e eram feitas para o lanche da tarde. Um garoto chegou e falou algo perto da mulher. Estavam muito animados. Ele puxou a que cortava os legumes e começaram a dançar, a mulher se acabava de rir. A casa parecia mais colorida, com mais vida e mais leveza. Até que a viram do lado de fora. De um sobressalto, ela se sentiu uma intrusa ali, vendo de fora a sua própria casa. Sua família estava feliz, muito mais feliz sem ela.
O irmão Kalil foi até a porta e a abriu, mas permaneceu ali enquanto a mãe de Hilda passava correndo por ele em direção a filha que retornava para o seu lar. Ela fez o contorno e foi até onde a menina estava observando da janela.
O abraço a tomou de surpresa, mas não demorou a reagir. Não era de seu feitio tentar ser carrancuda por orgulho. Já havia perdido seu pai, sabia a importância de se aproveitar cada segundo com quem se ama. Ainda assim, se sentia um tanto deslocada, mas estava processando o sentimento internamente. Afinal, não poderia impedir que pessoas fossem felizes longe dela, portanto, não podia imputar-lhes culpa pois não a haviam feito mal algum, não intencionalmente.
— Venha para dentro! — disse a mãe, animada.
Hilda acenou e a acompanhou até a cozinha.
— As coisas estão diferentes. — O que aconteceu enquanto estive fora?
— Nossa mãe entrou para a Ligação Foríris. Mostra para ela, mãe! — respondeu Kalil, animado.
Elisa abaixou a blusa que cobria a sua clavícula e mostrou as marcas que carregava. Desenhos feitos com tinta branca de várias chaves pelo seu colo, como se fosse um grande cordão.
— Então o elik...
— Não falamos mais esta palavra nesta casa! — Repreendeu sua mãe.
— Você simplesmente largou? — Franziu a cenho.
— O passado fica no passado, Hilda. — Levou a mão até as chaves em seu corpo. — Não devemos remoer o que não vai voltar.
— Entendo...
— E você? — Indagou, puxando o braço de Hilda com força. — O que arrumou com esta serpente no braço? Não me diga que fará parte daquele absurdo...
— Já faço parte, mãe. — Informou enquanto puxava seu braço de volta, tentando não ser brusca. — Fui escolhida a dedo pelo próprio imperador.
— Rei! — Elisa apontou seu dedo indicador para o rosto de sua filha. — Ele não é imperador de terra alguma, ao menos não de Elsutita! Que os lacaios lambedores de chão daquele genocida se contenham em Margenu, não traga isto para as nossas terras!
— Perdão. — disse, abaixando a cabeça.
— Tudo bem. — Suspirou e colocou as mãos na cintura. — Então o que será agora? Vai voltar para casa ou nos deixará como fez quando fugiu?
— Vocês não parecem precisar de mim agora. — Tentava esconder o rancor em seu tom, em vão.
— Você não viu o que aconteceu neste mês em sua ausência, não ouse me julgar agora que peguei os cacos e consegui me reconstruí. — Enquanto falava, a pele de seu colo, sobre a qual estavam desenhadas as chaves se repuxaram, tamanha a intensidade com que proferia as palavras.
— Então você fez isto sozinha — constatou, com um riso de escárnio e descrença —, quer dizer que nunca precisou de mim para nada. Poderia ter pego os seus cacos por você mesma há muito tempo ao invés de me deixar catá-los por você.
— Paguei um preço alto, mas consegui me manter viva. Você não sabe o que custou, não sabe como foi para Kalil.
— Eu sei o que me custou e como foi para mim. — A esta altura, não fazia questão de esconder seu tom de incredulidade pelo que estava ouvindo e de quem estava ouvindo. — Sobre isto, você se importa? Ou apenas queria me explorar para poder continuar vivendo seu faz de contas com meu pai morto?
— Pense duas vezes antes de tocar no nome dele! — Elisa avançou bruscamente, então se segurou a poucos centímetros do rosto de Hilda. — Ainda mereço respeito e exijo o mesmo para ele que deu a vida na guerra contra aquele que queimou seu braço com esta marca!
— Uma guerra inútil que não nos levou a nada. — Balançou a cabeça em negação.
— E o que pretende fazer nesta Força Tarefa? — O riso de escárnio da filha havia ido parar na boca da mãe. — Você acredita mesmo que vá levar a alguma coisa? Ao menos nosso povo lutou por sua própria liberdade e autonomia.
— O que acha que sou? — Hilda cruzou os braços. — Acha que me vendi? Também pretendo lutar pelo nosso povo! Também lutarei pela liberdade!
— Uma liberdade de outro, não sua! — Os ânimos já ferviam há muito e já era possível ouvir as vozes de muito longe. — Me espanta que vocês recebam uma marca e não uma coleira!
— Quer falar sobre marcas? E a marca no seu pescoço? — Perguntou, apontando para as chaves. — O que pretende fingindo que está livre daquele vício?
— Não estou fingindo! — Disse, batendo no peito com força. — Estou livre! E você deveria vir comigo para ver como as coisas funcionam antes de me apontar suas críticas. Não deveria ficar contra algo que ajuda a sua família.
— Estas pessoas podem matar você caso apenas desconfiem que você é usuária de magia!
— Eu não corro este risco, você sabe que nunca sofri deste vício.
— Boa sorte tentando convencê-los quando estiverem entediados e quiserem alguma vítima para brincar de caça.
— Você não sabe do que fala. — Suspirou, diminuindo o tom. — A Ligação Foríris e a Ligação Xiaísta são coisas diferentes.
— Não simpatizo com nenhuma delas. — respondeu Hilda, desviando o olhar.
— Isto porque você se recusa a ver os benefícios e foca apenas em coisas que você ouviu por aí.
Hilda respirou fundo e lentamente.
— Não vim para brigar, mãe. — Chutou o nada e suspirou. — A fase dos embates começa amanhã. Vou embora hoje mesmo e não queria perder tempo com discussões que não vão levar a lugar algum.
— Tudo bem. Fase dos embates? Como funciona isto? — Indagou, preocupada.
— Terei que duelar com três pessoas e saio vitoriosa caso ganhe.
— Quantos duelos precisa ganhar?
Hilda olhou para sua mãe.
— Os três.
— Não entendi, achei que tivesse me dito que o próprio rei a escolheu. — Franziu o cenho, confusa. — Qual o sentido de ainda ter de duelar?
— É uma longa história, mas ainda vou ter de participar da fase dos embates, tendo o rei me escolhido ou não.
— Entendo. — Elisa chegou bem perto de Hilda. — Venha comigo para a reunião de hoje da Ligação.
— Mãe, eu não sei...
— Venha! Por favor! — Suplicou, colocando as mãos no rosto da filha. — Ficarei mais tranquila sabendo que vai enfrentar a fase dos embates com a proteção da deusa Chave.
— Tudo bem.
— Hoje vamos relembrar o início de tudo. — Ela repousou a mão sobre o coração de Hilda. — Talvez te traga paz.
Com apenas treze anos, Kalil olhava de longe a irmã discutir com a mãe. Ele entendia poucas coisas das quais elas falavam, mas já ouvira pessoas comentando sobre sua irmã em sua idade ter sido muito mais útil que ele. Mesmo precisando de explicações sobre as coisas das quais elas comentavam, sentia certa admiração pelo jeito imponente da irmã de se posicionar. Sentia, também, certa inveja do fato de Hilda ter dez anos quando seu pai se foi. Ele tinha apenas seis e, além de se lembrar pouco dele, ainda não sentia que compreendia o motivo pelo qual ele havia sumido e quem o havia retirado dele.
O que Kalil não sabia era que ter o mundo nas costas não fazia Hilda se sentir forte, principalmente depois de ver a família muito bem sem ela. Ao olhar para trás, todos aqueles anos em que havia sido o único porto seguro, se sentia explorada.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top