05 Quem dera você me salvasse!

O silêncio sepulcral se fazia presente naquele lugar, como sempre. A escuridão que invadia e enchia os sentidos do nada permitia aos presos que imaginassem coisas tão palpáveis que chegavam ao ponto de duvidar da própria realidade. Sentiam-se dormindo quando estavam acordados no escuro, e acordados quando estavam dormindo e sonhando com o que quer que fosse. Alguns, lembravam de suas vidas e as reviviam no sono. Os lábios que nunca voltariam a tocar, as danças que não mais poderiam participar, as festas, cujo motivo não havia mais, até mesmo os acontecimentos de momentânea aflição eram lembrados, quando estes eram seguidos de alívio. Pensar num sentimento de alívio e bonança após a tempestade dava a abstrata e vaga sensação de que haviam conseguido sair, ou estavam próximos. Não estavam.

Alguns passos podiam ser ouvidos de longe, então aumentaram o volume e intensidade, até que viram todos os guardas passar diante deles e sumirem para um lugar que não tinham mais esperanças de descobrir qual era. A poeira se levantava toda vez que pisavam no chão. O cheiro de terra seca se mesclava ao cheiro de terra molhada das celas que possuíam goteiras. Da mesma forma que o som dos passos se aproximou, ele foi se esvaindo até que se vissem sozinhos. Pensavam, de maneira unânime, como poderiam deixá-los sozinhos, pois podia ser que algum deles tentassem fugir. Mas lembravam, finalmente, de que estavam igualmente fracos para tentar alguma coisa.

Acordada, Íris puxava a casca de uma de suas feridas quando adormeceu. Sonhou com o balanço do mar, a ninando de maneira constante, sem nunca se cansar. Estava quase pegando no sono em sua cama confortável quando estendeu o braço para o lado, então sentiu as pontas de seus finos dedos voltarem molhados. Abriu os olhos. Não podia ser. Acabara de se deitar e estava tudo seco, no entanto, água do mar inundava o seu quarto agora. O navio começou a balançar de maneira cada vez mais brusca e conforme a água ia subindo, ficava cada vez mais difícil de se locomover. Usando de toda a sua força de vontade, conseguiu atravessar o quarto e chegar até a porta. Iria abrir e, com sorte, ainda daria tempo de avisar da inundação. Então, abriu a porta. O navio estava completamente seco e a água do quarto caiu sobre ela e sumiu.

Acordou.

Estava completamente encharcada. Da cabeça aos pés. Levantou-se de um súbito. Se sentia revigorada, melhor. Sentia cada gota em sua pele, roupa e cabelo. Ela andou em volta, procurando pela porta. Encontrou apenas sua cela de sempre. O cheiro de terra molhada subia do chão. Então as gotas se recolheram. Seu corpo e a cela estavam secos. E estava completamente curada. Suas feridas, seus lábios cortados, seus cabelos falhados. Estava nova, como quem nasce novamente. Era uma sensação boa. Até mesmo seu coração parecia ter sido remendado. Não pensava mais em desesperanças ou ficava ansiosa quanto ao futuro. Estava bem, apenas bem. Em êxtase. Riu alto. Riu sozinha, de nada para o nada. Não importava o nada, importava que se sentia maravilhosamente renovada e isto bastava. Se sentia suficiente, linda, não precisava de ninguém.

Não sabia onde cavar em si mesma para conseguir mais daquela sensação, mas sabia que queria mais.

Uma outra sensação a retirou do transe. Era como se seus pés estivessem envoltos do travesseiro no qual recostava sua cabeça no sonho. Olhou para baixo e levou um susto quando viu um vulto branco se mexer. Claro. Ela nunca a deixaria.

Por que você não foi embora?, pensou. Ou por que você não ficou no navio? Por que você veio atrás?

Então se deu conta de uma coisa. Talvez Eizzil nunca a tivesse deixado e estivesse procurando por um momento no qual pudesse se esgueirar sorrateiramente até a sua cela. Sempre fora um animal muito inteligente, aquela bolinha de pelo branco! Se abaixou e a pegou no colo. Era tão pequena, tão leve e frágil. Sentia vontade de apertar e não largar nunca mais. Uma lágrima desceu de seu rosto quando percebeu que de todos que ela esperava que viessem atrás dela, Eizzil fora a única que realmente apareceu. Que tristeza sentia pois, por ser um animal, não poderia fazer nada por ela, não poderia interceder por ela. Só poderia fazer companhia. Fez um carinho na cabeça da pequenina de quatro patas e orelhas pontudas ao sentir seu coração dizer que isto bastava.

— Quem dera você me salvasse! — sussurrou.

O animal fez um som que ela não entendeu o que era, mas deduziu que poderia estar com fome. Então pensou em como seria para as duas sobreviverem ali. Lembrou de sua mãe dizendo para esconder Eizzil pois era uma criatura muito valiosa e poderiam tirá-la de suas mãos. Via como o animal ficava escondido e ressabiado toda vez que algum estranho entrava no navio. Em como o amigo de seu pai tentava a convencer de abrir mão da criatura por dinheiro. Pensou nos guardas que passavam por ali. Juntou os pontos e teve medo. Ela estava na cela como qualquer outra mercadoria que fora jogada ali e não sabia qual serventia todas aquelas pessoas tinham para quem quer que os estivesse mantendo presos. Mas Eizzil era valiosa. De uma maneira que nunca entendeu o motivo, mas havia algo aceso em Íris como um alerta para não deixar sua companheira de todas as horas exposta ao perigo de ser descoberta.

Assim que concluiu isto, percebeu que as horas estavam contadas para a despedida.

Ouviu passos pesados e música alta no teto. Havia uma festa em cima de suas cabeças. Queria poder subir e dançar, mas teve seu desejo interrompido quando pensou em quem estava lá. As pessoas que estavam lá festejavam como se não estivessem culpadas por fazer mal aos que estavam debaixo de seus pés. Não se sentiam culpadas, na verdade. Era parte do que faziam e do modo como viviam. Se uma atrocidade se torna rotina, ela passa a ser vista como rotina, não como atrocidade. Com isso, é possível ver grandes grupos de pessoas que não se importam com o grande elefante na sala, pois o elefante em questão já está acostumado a viver dentro de casa. Ou talvez ele esteja coberto por um lindo tapete que adorna o cômodo. Todos veem sua silhueta, mas é a beleza do tapete que os chama mais atenção.

Quando os pés cessaram, as conversas diminuíram e a música parou, soube que havia acabado. Então abraçou Eizzil e sentiu seu cheiro para que ficasse guardado na memória. Eles voltariam e ela precisava ir embora. Sabia que o animal entendia o que significava sem que ela tivesse de proferir palavra. E assim foi.

Quando voltaram, os guardas estavam agitados e falando alto. Jogaram para eles uma refeição extra, que não estavam acostumados a receber. Íris pegou a sua e percebeu que era um pedaço de bolo de cenoura. Quando provou, quase sentiu gratidão a quem quer que tivesse decidido dar algo diferente a eles. Até perceber que, provavelmente, eram sobras da festa. Então interrompeu o sentimento. Se lembrou de onde estava, como havia chegado até ali e como estava sendo tratada.

A lembrança de que merecia o igual nunca a permitiria se sentir grata por quem só entrega o resto das migalhas. Por enquanto.

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