04 Paciência
Passaram-se alguns dias de silêncio e perseverança. Íris comia o que lhe era entregue e voltava ao fundo da cela. Dia após dia. De novo e de novo. Guardas passavam e paravam em frente a ela para comentar e apostar se sua recuperação vingaria. As feridas já haviam formado cascas por todo o seu corpo, inclusive seu rosto. Estava se sentindo endurecida, por conta de sua pele machucada. Sentia muita sede, mas a quantidade de água que levavam para ela era escassa, então já estava começando a se acostumar com a constante sensação de seca em sua garganta, o que, pelo que pareceu muito tempo, afetou suas cordas vocais. Ela ainda não se sentia ela mesma quando recuperou sua voz.
— Ah... — pigarreou, após testar o volume de sua voz. — Marcela?
Passaram-se alguns segundos de silêncio até que Íris resolveu chamá-la novamente.
— Marcela? — sussurrou.
Ouviu-se um arrastar de corpo no chão.
— Você me acordou. — Marcela respirou fundo. — Quando recuperou a voz?
— Não sei. Hoje, de manhã, senti algo de diferente na minha garganta. Então testei para ver se havia voltado.
— Hoje de manhã? — esboçou um sorriso — A gente não tem noção do horário. É tudo escuro aqui embaixo.
— Bem, você entendeu. — pensou por um instante — Espera, como você sabe que estamos embaixo?
— Eu não estava desacordada quando cheguei aqui. — respondeu.
— Eu também não. — disse Íris, voltando a sentir sua pele doer e latejar.
— Você não desmaiou por todo o trajeto? Como conseguiu?
— Do mesmo jeito que você.
— Eu ouvi falar sobre o que aconteceu com você. Foi horrível. — uma pausa. — Se não quiser falar, não precisa, mas é besteira tentar esconder.
Íris ficou em silêncio.
— Você se lembra de chegar aqui? — indagou Marcela.
— Me lembro de pouca coisa.
— Você foi muito corajosa lutando por nós lá no navio.
— Obrigada. — Íris limpava suas unhas.
Mais alguns segundos de silêncio.
— Por que chamou pelo meu nome? — perguntou Marcela.
— Como assim?
— A primeira coisa que você disse quando recuperou a voz foi meu nome. Eu ouvi.
Íris se aproximou da cela à sua esquerda.
— Você disse que tinha um plano.
— Eu tenho — respirou fundo —, mas a gente vai ter que ser paciente.
— Tudo bem, não temos muita escolha. — respondeu Íris, conformada — Pode falar.
— Ainda não posso contar.
— Como assim? — franziu as sobrancelhas com cuidado — O que a gente está esperando?
— Uma confirmação. — A voz de Marcela era simples e objetiva.
— Então você vai me deixar de fora?
— Sim, desculpa.
— Eu já não sofri o suficiente por sua causa? — havia dor e ressentimento em seu tom.
— Você fez o que fez porque quis.
— Eu queria que você estivesse aqui sozinha. — Cuspiu.
— Eu também queria. — rebateu a outra — Você é muito desesperada e pode acabar atrapalhando o plano. Talvez fosse melhor mesmo ser outra pessoa aí ao invés de você.
Marcela mal tinha concluído sua frase quando se assustou com um estrondo. Sentiu a poça d'água em sua cela se mexer e gotas caírem dos pequenos vazamentos no teto. Íris havia acabado de socar a parede que separava as duas. A mão que golpeou a pedra fria da parede estava sangrando e a dor irradiando como nunca pelo corpo ainda sensível.
— Quantos anos você tem, Íris?
— Dez. — era apenas um fio de voz embargada.
— Meu tio estava investigando o desaparecimento das crianças de Montoceno. Nas primeiras vezes que ele foi até o Cais da Neblina, eu o segui. Quando ele descobriu que eu estava indo atrás, pedi para que me deixasse ir junto. Apesar de no começo ter ficado relutante, ele concordou. Sabíamos que era no Cais da Neblina que as coisas estavam acontecendo, então sempre íamos para lá. Mas eles são difíceis de pegar, ficamos meses para conseguir identificar com que frequência o navio do sul aparecia, como iríamos saber qual era o navio certo e como eles faziam para pegar as crianças. Nós acabamos descobrindo que eram os próprios pais que vendiam suas crianças e que, na verdade, os navios vinham de Nordolk, não de Sudelne. Eles passavam uma vez ao mês para pegar a mercadoria, tanto a humana quanto as demais. Um dia, nós finalmente conseguimos encontrar um pirata de cabelos vermelhos como os seus levando um grupo de crianças para o seu navio. Meu tio queria voltar, eu queria ir atrás. Nós discutimos e eu fui. Tenho quatorze. Não deveria estar no meio daquelas crianças, mas acabei sendo confundida por ser pequena demais e estar no lugar errado, na hora errada, sendo precipitada. Não sei o que você viveu, nem o que viu até aqui, mas sei que é muito nova e eu não deveria ter te convencido a me ajudar. Me desculpe.
— Por que você decidiu investigar?
— Pelo mesmo motivo do meu tio. — Jogou uma pedrinha na poça d'água e continuou: — Saber o que aconteceu com a filha dele, minha prima, minha melhor e única amiga.
— Foi o seu tio que a vendeu?
— Não, foi minha tia. — Trincou os dentes — A mãe vendeu a própria filha para conseguir acesso a Circunspecção e poder evoluir em magia.
— O que é a Circunspecção? — perguntou, franzindo a testa.
— Vocês chamam de Ordem.
— Achei que fosse uma história inventada, um mito. — Estava relativamente assustada com o que ouvia.
— Muita coisa do que dizem realmente é, mas sim, existe uma organização com os senhores da magia em Montoceno. — Soava como uma pessoa muito mais velha e fatalista. — Aquelas montanhas respiram vício.
— Então sua tia sumiu?
— Não, ela voltava em casa como se nada tivesse acontecido com a filha. Nunca escondeu para onde ia, mas escondia a oferenda que havia feito. Quando meu tio descobriu, ela não negou. Confessou tudo como se estivesse comentando sobre o clima. — Seu tom de voz era como se estivesse cansada e tivesse desistido de tudo, o que preocupou Íris. — Então meu tio a matou. Eu ajudei.
— Você se arrependeu? — começava a sentir medo.
— Não. Me dá um certo alívio pensar que pelo menos, de tudo isso, eu pude ver a cabeça dela rolando.
— Mas ela era sua tia! — protestou.
— Nem no último momento ela se arrependeu, por que eu deveria? Você devia ver os olhos na cabeça morta estirada no chão, ela sorria com eles. Foi nojento. Não tenho vergonha de ter sentido alívio. Parece que cumpri uma missão, como se tivesse nascido para vingar minha prima e agora pudesse morrer em paz. — Desta vez, era ela quem falava como se estivesse comentando sobre o clima.
— Você não pode morrer. — Íris estava preocupada e , ao mesmo tempo, com medo de ter que confiar na mesma pessoa da história que acabara de ouvir
— Eu não vou, eles não querem que a gente morra, não tem muito o que fazer quanto a isto. Mas eu preciso ao menos tentar descobrir se ela está aqui. É a única pendência que me mantém acordada.
— Você tem mesmo um plano?
— Sim, fique tranquila. Você também é uma pendência, uma pedra no meu sapato. — disse, com um leve sorriso.
— Então... — Íris quebrou o silêncio que se seguiu após a confissão — Paciência?
— Sim, Íris. Paciência.
Nos dias que se seguiram, elas passaram a receber menos comida e água.
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