03 Cemitério

Uma gota caiu no chão perto dali. Ela sentiu reverberar pelos corredores estreitos daquele lugar escuro e úmido, com cheiro gelado de esgoto. As grades estavam paradas, mas pareciam tremer toda a sua extensão cinza escura e gerar um som metálico e frio. Não havia cabelo de fogo que pudesse se destacar no meio de uma escuridão cinza, amena e morna a ponto dar enjoo. A desesperança que todos que já se encontravam ali sentiam, contaminava os recém-chegados de tal modo que eles seguiam o protocolo velado de silêncio sem que ninguém precisasse pedir. Estava cheio de pessoas, mas o vazio em seus corações predominava. Não pensavam em outra coisa se não no momento no qual seus próprios silêncios se dariam por seus corpos estarem sem vida, jazendo em paz.

Íris, no entanto, não deixava de imaginar seus pais indo ao seu encontro para retirá-la de lá. Em seus sonhos, eles a carregariam no colo e limpariam suas feridas, então diriam que teriam sido forçados a levar aquelas crianças para longe de seus pais, as salvariam, as levariam de volta e tudo voltaria como era antes. Mas assim como, no fundo, nutria esperança de se ver livre daquela situação, ela também sabia que as coisas não eram tão simples e não só desconfiava como tinha certeza de que sua vida tomara um rumo bem plausível para o estado no qual sempre se encontrou: esquecida.

Acima dela, um teto de pedra que gotejava. A sua volta, paredes de pedra nas quais se encostava toda vez que sentia suas costas doer por estar deitada num banco estreito de madeira. Na sua frente, grades de ferro coladas o suficiente para que uma criança não pudesse passar. No chão, terra e sangue. Íris não sabia se todo aquele vermelho misturado aos grãos marrons eram seu sangue, ou se, antes dela, havia outra pessoa naquela cela que também sangrara. Se fosse apenas seu, então perdera muito sangue. Não desconsiderava a possibilidade visto que seu próprio corpo estava mais vermelho que seu cabelo. Poucas feridas haviam produzido casca, muitas ainda estavam abertas. Estava escuro demais para ver se sangrava, estava latejando demais para sentir escorrer.

Uma gota caiu no chão mais uma vez. Era sua lágrima. Não percebia que estava chorando nem que esta era a primeira vez que externalizava aquilo que sentia. Talvez fosse falta do sol, pensou. Pelo tanto que dormira, já era dia seguinte e ele já havia despertado, mas ela estava separada da luz do dia, que costumava iluminar seus passos e a manter aquecida. Ficar ali era como se não estivesse mais em Torrídia, sentia-se num mundo novo onde sol e lua não existiam, apenas pedra, metal e escuridão, céu sem estrelas e pessoas em um eterno silêncio sepulcral, que, além de não se comunicarem umas com as outras, estavam eternamente conformadas com seus futuros sombrios de morte eminente.

Íris não era assim, e permanecer em um lugar que retirava sua naturalidade a fazia se sentir como um objeto morto. Algo sem vida, sem personalidade, sem perspectiva alguma. Um ser cuja finalidade era apenas chorar e lamentar seu destino esmagado pelas mãos de terceiros, sem nada poder fazer.

— Comida! — ouviu alguém dizer, seguido de um barulho abafado de algo batendo no chão.

Ela estava sentada, encostada na parede. O som abafado se aproximou gradativamente, até que chegou até ela. Não se mexeu. Era difícil a locomoção devido as feridas. Teria que se arrastar, mas não tentou. Não tinha vontade, nem fome. Passos que já estavam longe ficaram mais altos.

— Precisa comer!

Estava escuro, mas sentiu os olhares dos demais repousarem sobre ela enquanto eles mesmos comiam o seu.

— Ei! — bateu nas grades, o que reverberou um latejar pela cabeça que seguiu pelo corpo todo — Estou falando com você, garota! Levanta!

Uma outra pessoa se aproximou deste e o cutucou.

— Esta é a mercadoria danificada, nem perca seu tempo.

— Como assim? — perguntou, virando para trás.

— Já olhou o estado dela? — indagou, chegando mais perto e aproximando também uma das tochas da parede para dentro da cela — Parece que ela irritou muito alguém.

— Minha nossa! Que nojo! — o espanto na voz dele ecoou por aqueles corredores estreitos, escuros e silenciosos — O que a gente faz com isso?

— Tanto faz, não me parece que vai durar tanto tempo mesmo.

— Será que era bonita antes?

— Vai saber! Ainda me parece uma criança.

Com relutância em parar de olhar para Íris e saciar a curiosidade mórbida, os dois se afastaram e continuaram o trabalho. Ela, por sua vez, permanecia imóvel. Não conseguia se ver, mas pelo teor das palavras daqueles dois homens não havia mais o que ser feito de sua situação. Permaneceu em silêncio por alguns minutos, fechou os olhos e dormiu. Minutos depois, quando acordou, se espantou com duas coisas: ela não estava morta e uma pessoa chamava o seu nome.

— Íris, fala comigo! — sussurrou a voz — Acorda!

— Co... — ela não conseguia falar, seus lábios pesavam como uma tonelada, era difícil mexê-los.

— Tenta mais uma vez! — incentivou a voz.

Ela tentou, mas se engasgou e vomitou. Em sua língua, sentiu o gosto de sangue.

— Tudo bem, calma. Você precisa se fortalecer, come alguma coisa.

Encostou a cabeça na parede e voltou ao seu estado imóvel de antes, então fechou os olhos.

— Íris, por favor.

Silêncio.

— O pão não é tão ruim, você vai gostar se experimentar.

Ela estava usando aqueles sussurros como canção de ninar, estava prestes a cair no sono outra vez.

— Ei! ­— a voz estava mais perto e mais sussurrada — É a Marcela!

Ela sorriu, não estava sozinha.

— Íris, você vai acabar morrendo deste jeito! Come alguma coisa! Você precisa se fortalecer — então abaixou ainda mais a voz —, eu tenho um plano.

Sorriu novamente. Com escárnio. Estava cética, mas não era cética. Sua natureza a torturava, fazendo-a permanecer lutando mesmo que sem perspectiva. Então, se arrastou até o pão que estava jogado perto das grades. Era difícil se locomover, tudo doía, a dor a deixava cada vez mais triste e a tristeza, por sua vez, a deixava cada vez mais desmotivada. É difícil quando você deve lutar com ambos, corpo e mente, pois não há um ponto de força, não há algo a se agarrar. Tudo enfraquece e puxa para trás e para baixo. Não Íris. Íris era algo a parte. Se torturava, mas não desistia. Em alguns momentos de sua vida, ela já desejou ser diferente, mas sempre acabava pensando que sua natureza poderia vir a ser a responsável por salvar a sua vida.

Desse modo, comeu o pão assim que conseguiu alcançá-lo. Tinha gosto de terra e sangue e estava gelado. Marcela a parabenizou no mesmo tom de sussurro, mas foi repreendida por olhares. Era como se estivessem em um cemitério, e os moribundos não quisessem seus sonos perturbados por ruídos de esperança.

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