01 A Serpente Vermelha
Ela estava há muito tempo seguindo aqueles homens. Queria saber o que iria acontecer e o motivo pelo qual sentia que aquela movimentação significava que as coisas estavam prestes a mudar. O que vinha acontecendo no Reino de Elsutita a deixava apavorada. As coisas estavam se transformando muito rápido e ela não reconhecia mais o lugar no qual havia nascido. Estava cansada do sentimento de impotência que ter sua terra tomada por estrangeiros gerava em seu coração todos os dias. Se havia algo naquelas pessoas que traria um resquício de esperança, ela queria fazer parte. Hilda ansiava por fazer algo e essa ânsia a levou até aquele lugar, onde observava, escondida, a história ser feita diante de seus olhos.
Muitas pessoas estavam ali presentes, aglomeradas e trombando umas com as outras para disputar um lugar mais privilegiado para escutar. Queriam ficar o mais perto possível do homem cuja presença imponente atraía olhares de admiração, de esperança, de devoção e segurança. O pátio no antigo Forte do Reino parecia pequeno para toda aquela comoção que se apertava e insistia em acontecer naquele lugar. Os blocos de pedra iam até muito alto, parecendo tocar o céu, o que provocava sombra e, portanto, alívio, mas que se revelou insuficiente dado o aumento gradativo da temperatura devido ao clima e aos ânimos.
Em uma plataforma mais alta que todos, como que intocável, estava um homem grande tanto para cima como para os lados, olhando com expressão impassível para todos abaixo, que, por sua vez, se sentiam privilegiados quando o olhar repousava neles, os fazendo sentir dignos de atenção daquela figura tão além do que eles mesmos achavam que poderiam ser um dia. O rosto dele era tão largo quanto seus braços, e suas veias saltavam como se quisessem fugir daquele corpo. Algumas marcas que pareciam veias eram cicatrizes, que, um dia, pensavam aqueles que as viam, devem ter sido profundas para terem deixado rastros tão robustos quanto seu dono. Também havia marcas auto infligidas, símbolos muito bem desenhados na cor preta que estavam distribuídos até o pescoço. Suas roupas eram do tom da terra molhada, cada peça e acessório com sua nuance. Na parte de cima, seus braços ficavam livres e seu pescoço também devido à falta de gola. Era uma vestimenta robusta, assim como o resto. A calça e os sapatos pareciam surrados, mas não de um jeito pejorativo. Pelo contrário, tanto o homem quanto as peças que carregava traziam histórias. Cada rasgo e desgaste contavam de sua honra, de suas vitórias, da mesma forma o seu rosto largo, que parecia saber cada efeito que sua presença e vestimenta provocava em quem o via. Boca larga, nariz largo e olhos escuros semicerrados, esperava em silêncio pelo silêncio e assim foi sendo acatado gradativamente. Quando separou as pernas e se posicionou para começar o discurso, suas armas chacoalharam levemente, mas o suficiente para que fossem ouvidas de muito longe. Já possuía todo o respeito de maneira unânime e não precisara nem abrir a sua boca.
— Senhores presentes, senhores voluntários, senhores que se importam com o futuro deste país! Peço atenção ao momento mais importante de suas vidas. A partir de hoje, vocês farão parte de algo maior que vocês mesmos. É aqui que vão abdicar de suas histórias para construir uma nova. Este é o momento crucial no qual a honra deve falar mais alto e seus egos serem esmagados. Seus nomes serão apagados e todos aqueles que passarem nos testes serão conhecidos apenas por, de agora em diante, Sicários do Sul.
"Há dois anos, usando de sua misericórdia, o então rei de Sudelne tomou conta destas terras fadadas a serem perdidas para as terras sombrias de Montoceno. Ele interveio numa guerra, sem nada a ganhar com isto, para unificar o nosso território e, hoje, graças a sua grande benevolência, podemos nos dizer um só povo com um só rei. O Império do Sul se ergueu, contudo, ainda existem pessoas ingratas que tentam contra aquele que só quer o nosso bem. Portanto, junto com este poderoso Império, algum inimigo da coroa usou de astúcias para nos fazer ruir por dentro. Não admitiremos tal coisa! Como bem sabem, o entorpecente elik está tomando Elsutita por inteiro. Vemos todos os dias, cada vez mais, pessoas que antes possuíam sua autonomia, perdendo a independência de suas vidas por um vício em uma substância que nada mais faz que trazer de volta momentos vividos com aqueles que já se foram. Não se enganem, eles não vão voltar! Mas estas pessoas fracas não sabem lutar, então estamos aqui para lutar por elas. Passamos todos por um período difícil, não há muitos anos, e sabemos que momentos de guerra geram feridas cujas cicatrizes nunca vão sumir, mas não deixemos o inimigo de nosso povo se infiltrar em nossos lares! Não sucumbamos à nossas fraquezas e à saudade dos que já se foram! Estamos aqui para recrutar pessoas fortes que podem lutar por aqueles que ainda estão vivos, mas já desistiram. Suas mentes não conseguem, mas nossos braços conseguem. Utilizando de nossa força e inteligência, vamos lutar contra a disseminação de elik, caçar os responsáveis e cortar o mal pela raiz. Este é o dia em que, oficialmente, com o recrutamento de vocês, se inicia o legado dos Sicários do Sul. Portanto, usem de força, usem de destreza, astúcia e inteligência. Mostrem a malícia necessária para um campo de batalha no qual o inimigo ainda deve ser reconhecido. Fomos criados para erradicar o mal que aflige os cidadãos de Elsutita com uma mentira. Se este mal se materializar, nós vamos matar. Já posso ver, daqui a poucos anos, nosso trabalho terminado e esta terra voltar à sua tão linda pureza".
Ele parou e olhou em volta, dentro dos olhos de cada um, se é que isto era possível, como se todos ali precisassem provar se aguentavam o olho no olho, para que, então, o homem pudesse prosseguir.
— Agora, a primeira tarefa de vocês é memorizar o nosso lema. Vocês irão repetir estas frases todos os dias. Ao acordar, antes de dormir, após as refeições e sempre que se lembrarem. Não importa quem estiver ouvindo. Afinal, fazer parte disto é uma honra. Estamos fazendo história, portanto, repousem suas mãos direitas sobre o braço esquerdo e repitam comigo:
"MEU NOME É SICÁRIO E, PELA SERPENTE VERMELHA, SOU VOLUNTÁRIO. DE TODOS SOU MAIS FORTE, O MAL MATERIALIZADO ENCONTRARÁ A MORTE".
Todos repetiram de maneira desordenada na primeira vez, então tentaram uma segunda, terceira. Até que estivessem todos gritando o lema a plenos pulmões em uníssono. O coro trouxe a sensação de unidade e, experenciar isto, levou alguns dos presentes às lágrimas, principalmente quando se lembravam do quão importante era a participação deles no que estava acontecendo diante de seus olhos. Fariam parte de algo grande dali em diante e não havia mais volta. A pátria deles necessitava disto e, mesmo que comandados por um rei estrangeiro, iam ajudar seus amigos e familiares com um problema que se fazia cada vez mais crescente.
Ainda assistindo, Hilda não gritou, mas sussurrou o lema algumas vezes, e foi suficiente para que ela mesma fosse as lágrimas. Desejou em seu íntimo ser uma mulher forte e honrada no futuro, guerreira e respeitada pelos homens.
O sol aquecia sua pele, que brilhava de suor e lágrimas. Seu cabelo ainda estava úmido, pois acabara de voltar de um passeio num lago com a família. Naquele momento, apenas sua roupa estava seca. Então tudo brilhava. Sua pele, suas íris e seus cabelos escuros cintilavam. Ela piscava várias vezes para evitar que o choro se misturasse com o suadeiro que estava seu rosto, pois sabia que, juntos, iam arder os olhos e porque embaçavam sua visão do que estava conhecendo diante de si. Não queria perder um segundo.
E não perdeu. Assistiu aos voluntários gritarem cada vez que o ferro quente beijava o braço esquerdo deles e deixava ali, vermelha como um batom, a serpente com sua boca aberta como um símbolo de que não haveria mais volta. Estava imaginando a si mesma recebendo a marca quando se formou uma grande sombra acima dela.
— Aí está sol, não está com calor? — perguntou, se abaixando como quem pede a mão de uma dama em casamento.
Ele estava maior agora, já que ela o via mais de perto. Portanto, não conseguiu articular as palavras.
— Quantos anos você tem?
— Quatorze. — Era mais fácil responder desta vez, pois a pergunta era mais básica e objetiva.
— O que faz aqui? Está esperando por alguém?
— Eu queria entrar. — despejou, sem pensar. Era verdade que queria entrar, mas não era este o verdadeiro motivo pelo qual havia ido até ali: curiosidade.
— Entrar? Não acha que está muito nova? — havia um leve sorriso em sua expressão.
— Eu quero fazer parte disto, quero fazer alguma coisa.
— Qual o seu nome?
— Hilda.
— Você ainda não tem idade, Hilda. E eu acredito muito nesta força tarefa, então não acho que quando você for madura o suficiente ainda haverá problemas tamanhos que nos dê razão para continuar existindo.
— Então o que eu posso fazer agora? — repousou a mão direita no braço esquerdo — Eu queria poder fazer algo.
Ele mudou de expressão, para que ela sentisse que estava sendo levada a sério.
— Você pode treinar, treinar duro. Nós aceitamos apenas os melhores guerreiros. Você ainda é pequena, mas se treinar bastante, será aprovada caso um dia ainda precisemos de ajuda. — ele levou a mão até o ombro dela. — O importante é que sempre esteja pronta para lutar.
Ela assentiu, sem dizer uma palavra. Ficou ali escondida até ver aquele homem ganhar sua própria marca, então foi embora. Ele não gritou momento algum, sentiu imóvel a sua pele queimar. Seus olhos apontavam para a direção na qual ela estava. Hilda ouviu alguém chamá-lo de Márcio e guardou a informação. Desejou para si tamanha força e determinação. Seria este o nome que traria à memória quando estivesse pensando em fraquejar.
Tomou aquilo que Márcio dissera para si, como verdade para inserir em seu estilo de vida. Quem era já não era mais. Foi dado início a um novo tempo. Seu irmão mais novo e sua mãe precisavam dela. Se viesse o mal, estaria pronta e iria lutar.
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