Capítulo 8 - Jantar a dois
− Entre – proferiu a voz de Elroy, denunciado o seu súbito mau-humor.
Lumière ponderou se, de fato, deveria entrar no quarto com o seu mestre naquele estado. Inspirou profundamente pelo nariz pontiagudo e libertou o ar lentamente pela boca, antes de abrir a porta.
O príncipe virava página atrás de página, sem se deter em nenhuma por mais do que um segundo, inclinado sobre a sua secretária. Mesmo quando a porta embateu com força atrás do criado, ele manteve-se firme naquela tarefa questionavelmente produtiva.
− Porque não foi receber a princesa? – questionou o servo balançando os braços para o teto, nada satisfeito com a atitude negligente de Elroy.
− Boa tarde, Lumière. – Arreganhou os dentes para o criado encostado à porta de seu quarto. O homem delgado encolheu-se no lugar.
− Peço desculpa pela indelicadeza, mestre. – Curvou-se numa vénia pomposa. O príncipe revirou os olhos e entregou-se aos papéis, que já começavam a transformar a sua cabeça em água. Lumière decidiu tentar mais uma vez, – Mas o senhor tem que a ver. Ela é ainda mais bela ao vivo.
− Quem disse que eu ainda não a vi – grunhiu ao amolgar uma das folhas entre as suas enormes mãos. Ele lançava o branco da página de mão em mão, formando uma bola disforme.
− Viu?! – O criado encarou-o boquiaberto, seguindo a forma irregular que passava de um lado para o outro. – Então suponho que tenha ficado impressionado pela beleza da moça.
− Fiquei impressionado com o tamanho da boca da moça, isso sim – gritou ao espalmar a bola entre as mãos. Lumière imaginou a sua cabeça no lugar daquela inocente página branca e engoliu em seco.
− Não me diga que o relacionamento já avançou assim tanto – comentou intrigado. O seu mestre estava furioso por causa de um beijo?, o pensamento mais óbvio aflorou-lhe à mente, Talvez a moça fosse mais atiradiça do que aparentava. Suspirou ao recordar-se da sua doce Babette. Tinha sido ela a ter a iniciativa do primeiro beijo dos dois pombinhos.
− O quê? – O futuro monarca rodou 180º na cadeira giratória.
Lumière dava beijos no ar de olhos fechados e com as mãos entrelaçadas junto ao rosto. Os olhos de Elroy afunilaram-se com a piada de mau gosto. A bola de papel, já bem condensada, foi arremetida contra o criado.
− Ei! – reclamou ao sentir o embate no seu corpo delgado. A testa franzida de seu mestre apanhou-o desprevenido ao abrir os olhos. Os braços caíram inertes ao lado do corpo. – Então o que foi que aconteceu? – questionou sentindo-se a criatura menos astuta a viver debaixo da redoma.
− Digamos que ela não é propriamente minha fã.
− Oh, isso.
− Como assim, isso? − A cadeira andou uns centímetros para a frente, quando o homem debruçou o corpo musculado na direção do criado. − Ela falou sobre mim, Lumière?
− Ela vai acostumar-se à ideia, mestre – referiu em resposta, não querendo magoar ainda mais o ego inchado do seu patrão. − Vocês vão entender-se.
− Eu duvido – anunciou ao cruzar os braços fortes sobre o peito. – Ela não é nada daquilo que eu imaginei que seria!
− Só porque a mademoiselle tem opinião própria e não tem medo de a partilhar?
− Não. Bom... Sim. Isso é mais do que suficiente.
− E que tal levá-la a jantar? – sugeriu Lumière ao acercar-se de Elroy. Os seus passos pareciam ter a força hipnótica de acalmar o seu mestre. – Nenhuma jovem resiste a um bom jantar à luz das velas.
− Um jantar a dois? Só eu e ela? – o ceticismo invadira a voz confiante do príncipe.
− Claro! – O criado começava a julgar o caso de Elroy como perdido. O homem não tinha um pingo de romantismo. − Ou está a pensar levar-me para eu fazer de vela?
Elroy passou as mãos nervosamente pelas pernas, limpando o vestígio de suor que começara a libertar-se descontroladamente dos seus poros. Ele temia ficar a sós novamente com Liberty, mas talvez fosse a sua única hipótese de não viver eternamente ao lado de uma pessoa que o odiava.
O príncipe bateu três vezes na porta. De cada vez que a sua pesada mão embatia na madeira, um baque sonoro era propagado no ar.
Silêncio foi o que obteve como resposta.
Revoltado com a displicência da garota, Elroy levou a mão à maçaneta da porta e tentou abri-la sem a sua autorização. Infelizmente para ele, a jovem havia se trancado lá dentro.
De dentes cerrados, o homem chutou a porta com força, que apenas estremeceu subtilmente.
− Mestre, não me parece que esse seja o melhor método – avaliou Lumière calmamente recostado à parede do corredor.
Elroy voltou-se para trás e fulminou-o com os olhos. O criado encolheu a cabeça entre os ombros.
− Como você sugere então que o faça? – cuspiu a pergunta com a raiva a agigantar-se dentro de si.
− Tente... ser menos... − Lumière tentou encontrar a palavra que melhor descrevesse a atitude grosseira do homem, sem que depois o patrão fizesse com a sua cabeça aquilo que fizera com a folha de papel. – Indelicado. As mulheres gostam de ser tratadas como as flores.
− Você sugere que a mergulhe em água, é isso? – retrocou desesperado ao lembrar-se da estufa da mansão.
− Não, Deus! – O criado levou as mãos à cabeça. – Apenas tente falar com ela através da porta.
O príncipe olhou desconfiado para o seu servo, que fez um gesto com as mãos como se estivesse a enxotar o ar à sua frente. Elroy praguejou uma palavra grosseira, antes de se voltar novamente para a porta. Lumière abanou a cabeça em desagrado, mas acreditava que desta vez tudo daria certo e, no final da noite, a bela moça iria lançar-se ao pescoço da fera que era o seu patrão, completamente rendida aos seus encantos.
− Venha-jantar-comigo – pronunciou as palavras numa enxurrada. O empregado bateu na sua própria testa em descrença. – Mademoiselle – acrescentou em dúvida, acreditando que isso melhoraria o pedido torto que lhe fizera. Do outro lado da porta não se ouvia nem um único som. – Não adianta. Talvez ela nem esteja acordada.
Elroy afastou-se da porta, sem ligar aos protestos do criado.
− O que é o jantar? – ouviu uma voz abafada pela porta.
Patrão e empregado entreolharam-se esperançados. Lumière insinuava com as sobrancelhas erguidas e as órbitas arregaladas: "Eu não lhe disse?".
O futuro monarca de Villeneuve encostou a mão à madeira espessa e inclinou o seu rosto para a porta, quase colando os lábios à superfície.
− Pato assado com ervilhas – gritou grosseiramente para a porta. Lumière pigarreou. Elroy olhou para este que sinalizou com as mãos para falar mais baixo. – É delicioso – o volume da sua voz desceu consideravelmente. O criado sorriu orgulhoso com o seu aprendiz.
− Eu aceito o pedido para jantar, − declarou a jovem depois de um longo silêncio, − mas não com você.
− O quê? – As mãos fechadas do príncipe embateram com uma enfurecida força na madeira. – Se você não quer jantar comigo, então não janta de todo! – proclamou decidido.
Lumière tentou demover o mestre, chamá-lo à razão, mas o homem limitava-se a avançar feito louco corredor atrás de corredor. Liberty parecia despertar o que de pior habitava dentro de Elroy, aquilo não tinha como dar certo. Até Lumière, o homem mais romântico da mansão, começava a acreditar nisso.
Liberty olhava a província através da janela do quarto. Nunca se sentira tão presa e sufocada pela redoma quanto a viver naquela casa. Pelo menos, na sua aldeia tinha Anastasie que lhe preenchia os dias vazios com um propósito. Ali, não lhe restava nada.
Pensara em fugir. Escapulir-se pela janela do quarto, se assim fosse preciso. Não lhe parecia que conseguisse passar pela entrada da mansão sem que ninguém a notasse. Lembrou-se da porta que se abrira para ela à sua chegada e teve a certeza que naquela casa havia, pelo menos, um par de olhos postos nela. Mas a muralha que cercava o terreno encarava-a de forma desafiadora. Ela nunca conseguiria passar por aquilo.
Depois, Elroy gritara com ela do outro lado da porta e isso só a fez sentir-se ainda mais infeliz. E, como se isso não bastasse, privara-a do único prazer que poderia obter trancafiada ali dentro: a comida.
Nunca conheci um homem tão grosseiro quanto este, pensou ao deixar escapar um som abafado que transbordava de raiva. Mas sua consciência sabia que isso poderia não ser exatamente a verdade. Suas memórias levavam-na para um outro tempo, para um outro local bem longe dali. Bom, talvez haja um, constatou tristemente.
Liberty sentou-se no chão com a cabeça sobre a porta e ponderou qual dos dois homens a tinha ofendido mais. Por muito que quisesse dar esse lugar a Elroy, memórias, não tão antigas assim, martelavam-lhe a consciência não lhe permitindo uma tamanha injustiça.
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