Capítulo 7 - Uma prova exigente


8 anos atrás

Liberty balançava as pequenas pernas no ar enquanto esperava pela sua vez.

Lá estava ela de novo, naquele corredor escuro agonizante que a obrigavam a ir. Ao seu lado estavam mais duas meninas da sua idade, que sempre esperavam com ela, mas nem por isso ela sabia os seus nomes. Éliane, a irmã dois anos mais nova que ela, havia de estar num outro corredor exatamente igual àquele.

A porta metálica abriu-se, por fim, e uma garota franzina saiu do seu interior. Libby conseguiu vislumbrar os vestígios de água que ainda haviam no seu rosto desbotado. Não era a primeira a sair naquele estado e não seria certamente a última.

− Liberty Beaumont – chamou uma voz sem corpo, que provinha do interior da sala.

Sem outra alternativa, a criança encaminhou-se pesadamente para mais uma prova da seleção. Ela sentia-se nervosa mesmo sabendo que não iria mover um músculo sequer durante todo o tempo.

Na sala iluminada, uma única cadeira encontrava-se no centro com um estranho capacete sobre ela. Não precisava de se ser muito inteligente para saber o que eles queriam que ela fizesse a seguir. Então, sem esperar pela voz fantasma, avançou até os únicos dois objetos que os seus pequenos olhos brilhantes avistavam.

Ao colocar o aparelho sobre a cabeça, as agulhas fixaram-se ao seu couro cabeludo sem perfurar a carne. Os seus recetores prontos para captar a mais pequena atividade cerebral. E os seus indutores a estimular o cérebro de forma a processar imagens visuais que não chegavam da retina. Era um processo desconfortável, mas indolor.

Sentada e com todo o rosto imerso naquele equipamento que assustaria qualquer um, a prova começou.


O azul do mar saudou a rapariga parada na areia. A água, ao avistar o magnífico areal à sua frente, ganhava uma força avassaladora e corria, lançando-se na direção dos detritos finos das rochas, acumulados uns sobre os outros. As suas ondas enrolavam-se tingindo-se de branco no ápice da sua vontade enlouquecedora. E desenrolavam-se mais à frente, reclamando novamente o tom azul que lhes era devido, ao perceberem que nunca chegariam muito longe. O líquido estendia-se, influenciando mais alguns dos grãos soltos que apanhava e, depois, regressava para trás ao perder todo o resquício de força que ainda detinha.

O ritual repetia-se à frente dos olhos de Libby e ela identificou-se com aquela porção infinita de água, que nunca esmorecia e tentava sempre chegar um pouco mais longe.

O pé pequeno da menina tombou para a frente num desejo incontrolável de abraçar aquele azul que competia bravamente com o tom límpido do céu que o cobria. Contudo, o outro membro recusou-se a seguir o primeiro num lampejo de consciência.

Isto não é real, pensara a pequena criança que ainda se encontrava sentada na cadeira da sala de prova. De testa franzida e lábios pressionados um contra o outro, o pé daquela outra versão de si recuou sob os seus comandos.

Os seus atentos olhos castanhos conseguiram assim ver-se livres da armadilha montada à sua frente, e analisaram o objeto que se encontrava à sua esquerda. Uma mochila fechada e aparentemente bem recheada desafiava a sua curiosidade incessante. Claro que agora ela estava mais desperta, consciente de que aquilo não passava de uma ilusão.

Do seu lado direito, uma faca afiada do tamanho do seu antebraço enterrara-se parcialmente na areia, que se tivesse recetores sensoriais de dor estaria numa profunda agonia. Mas não, nem sangue derramava.

Atrás de si, uma floresta densamente povoada por estranhos e diversos espécimes de flora desenhava-se com o final do areal. As árvores esticavam-se para o céu e pareciam conhece-lo como ninguém. O verde das suas folhas pintava parte daquele céu que não estava coberto por uma redoma.

Liberty compreendeu então a prova que se remexia dentro de si como nenhuma outra até então. Quem optasse pelo mar estaria a ceder aos seus instintos mais primários de saciar os seus próprios desejos, sem pensar para além disso. Uma vontade imediata que não levaria ninguém a qualquer lado, visto que o mar não tinha fim. A floresta era uma opção mais racional, porque, pelo menos lá, poderia encontrar abrigo ou até uma civilização.

Faltava a questão dos objetos que a ladeavam. De certo, assim que se inclinasse na direção de um deles, o outro desapareceria. A mochila parecia-lhe pesada para carregar nas suas pequenas costas e poderia não ter nada de relevante. Já a faca poderia ser utilizada para a construção de um abrigo improvisado ou em autodefesa, caso existissem animais selvagens. Do lado direito, uma ajuda concreta. Do lado esquerdo, ínfimas possibilidades que poderiam ser, ou não, úteis.

Se aquela fosse uma situação real, Libby não hesitaria em escolher a mochila e recusaria a faca de bom grado, mesmo que a primeira estivesse apenas recheada de pesadas pedras. Mas aquela era uma prova da seleção, ela tinha de pensar no que eles quereriam que uma futura princesa fizesse no seu lugar.

A prova de há seis meses atrás surgiu-lhe, então, no pensamento.


Duas imagens repousavam sobre a mesa apertada, uma campainha descansava no canto superior direito. A voz indicara que teria de analisar as duas imagens e sinalizar através do objeto sonoro quando descobrisse o que se esperaria encontrar numa terceira imagem de forma a completar a sequência.

A resposta brindara-lhe com a sua presença numa questão de segundos. Ela sabia o que eles queriam ouvir.

Na primeira imagem, uma família de três elementos sorria sentada confortavelmente num sofá. O destaque, no entanto, era dado a uma figura junto à porta iluminada por um grande foco de luz. Uma jovem coberta até às orelhas com um fato negro tinha a mão sobre a maçaneta da porta e o olhar culpado decaia sobre a família que parecia alheia da sua presença.

Numa segunda imagem, a mesma jovem aparecia sob o mesmo foco intenso de luz, mas agora notoriamente mais velha com um lindo vestido esvoaçante da cor do céu. A porta já não estava fechada e, voltada para o interior da sala, dava a impressão que a mulher havia acabado de entrar em casa. Os seus olhos repousavam inertes sobre o mesmo sofá de há pouco, mas que agora se encontrava vazio.

Era óbvio que a figura feminina tinha melhorado o seu estilo de vida, deixando a família para trás à sua própria conta e risco. O cenário ideal, a que o coração de Liberty se agarrava firmemente, era ver a mesma mulher entrar no quarto e encontrar a família unida e feliz tal como a tinha deixado antes de partir. Mas o seu cérebro não se deixava enganar pela ilusão do sonho. Ela tinha de ser pragmática, era isso que esperavam dela. Porque, afinal de contas, o cenário mais provável, mais racional, era encontrar essa mesma mulher, numa terceira imagem, a abandonar de novo a casa, deixando o sofá vazio para trás.


Pragmatismo, era isso que esperavam receber da futura princesa de Villeneuve. No entanto, Liberty não chegara a tocar na campainha na prova anterior e na prova da simulação não mexera um único músculo sequer, apesar de saber que a faca era a resposta correta.

Foi angustiante para ela ficar ali quieta a olhar simplesmente para aquele vasto azul do mar. A sua mente viajou nas possibilidades que poderia encontrar na simulação depois de segurar na faca afiada e correr em direção à floresta. No mundo real, no seu mundo, não haviam florestas, não haviam flores, nem árvores, e até a relva era praticamente inexistente. Pelo menos, foi isso que ela julgara naquela altura.

Na sala adjacente àquela, o examinador olhava para as imagens em tempo real do cérebro daquela criança sem puder acreditar. Liberty Beaumont asseverava-se como um caso raro que ele não conseguia decifrar.

O homem ficara claramente surpreendido quando vira o pequeno córtex pré-frontal daquela criatura disparar numa atividade frenética. Logo a candidata que nunca tinha conseguido realizar uma única prova até então. Julgara-a desprovida de capacidades cognitivas de nível superior, como resolver problemas abstratos, visualizar cenários hipotéticos ou tomar decisões complexas fora da sua rotina diária. Mas ali estava a refutação da sua tese. Liberty mobilizava conhecimentos e memórias anteriores para resolver o dilema que tinha diante de si e o seu grau de insegurança parecia decrescer com o passar do tempo.

Era fascinante ver aquela amálgama de cores vivas a colorir tão intensamente a imagem do seu pequeno cérebro. Quando as cores começaram a dispersar, o homem concluiu que Liberty tinha tomado a sua decisão. E, pela segunda vez naquele dia, sentira-se incompetente.

Os seus olhos fitaram boquiabertos a imagem da garota parada em frente ao mar, sem mover um único músculo sequer. O dispositivo continuava a registar uma atividade intensa no córtex pré-frontal, mas bastante mais subtil. Talvez a moça conseguisse raciocinar de forma correta, mas falhasse em dar o passo final que lhe permitia seguir por um caminho em detrimento dos outros. E agora estivesse apenas a analisar, uma e outra vez, cada uma das hipóteses que tinha sem a força necessária para optar por apenas uma delas.

Quando o homem percebeu que já haviam passado quarenta e cinco minutos, não teve outro remédio se não dar termo à prova que já deveria ter sido finalizada há muito. De qualquer das formas, ela era apenas uma entre centenas de candidatas. Se ela não conseguia realizar as provas, o problema era dela.

Liberty Beaumont nunca seria a futura princesa de Villeneuve, constatou confiante ao ver a bela criança de cabelos castanhos sedosos a sair pela porta.

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